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O problema do texto ou o dilema da assinatura

No documento : a escrita de si na era digital (páginas 30-35)

2 DA TEORIA À PRÁTICA: OPÇÕES TEÓRICAS, PERCURSOS E

2.1 O problema do texto ou o dilema da assinatura

Ao nos propormos o estudo da escrita de si na era digital, por meio da análise da discursividade produzida em blogs de caráter intimista, acabamos nos defrontando com uma circunstância que nos pareceu, num primeiro momento, muito embaraçosa. E, se ainda agora permanece algum mal-estar, este é sobejamente superado pela compreensão de estarmos diante de uma situação que desafia progresso pessoal e enriquecimento metodológico.

Debruçando-nos sobre o corpus textual produzido em tais blogs, procurando submetê-lo aos nossos esquemas conceituais de interpretação, nos demos conta de que o texto objeto do discurso do Outro nos obrigava a um confronto com o nosso próprio texto. Em nosso caso, esse efeito-rebote pareceu-nos particularmente inquietante, pois, em se tratando da análise de uma escritura intimista, confessional e autorreferente, a característica predominante e comum a todos os blogs selecionados era a forma visceral como os textos eram “assinados”.

Com efeito, nos vimos diante de uma estilística marcada pela autoria, em que os sujeitos se desnudam aos olhos do público-leitor, seja por meio da assunção declarada de suas opiniões, seja pela presença do autor que ressuma do tratamento estético que ele dá ao texto, revelando o cuidado com a adoção de um estilo próprio na condução textual.

De onde, então, o mal-estar?

A partir do estudo de textos tão carregados de subjetividade, que nos obrigavam a “esbarrar” a todo o momento com a questão da autoria, começamos a

nos questionar sobre a posição que havíamos tomado em relação ao nosso próprio texto. Na tentativa de assegurar-lhe um estatuto de cientificidade, havíamos buscado, num primeiro momento, nos esquivar de assumirmos posições muito ostensivas ao longo do trabalho.

Assim, no afã de evitarmos posturas prescritivas, ou excessivamente normativas, que representassem um enclausuramento interpretativo, havíamos investido num estilo mais impessoal de escritura, que diluísse um pouco mais a nossa presença em meio à contribuição de outros autores, de modo a permitir ao leitor um leque maior de possibilidades interpretativas, induzindo-o a um pensamento mais autônomo, uma vez que nos recusássemos ao oferecimento de respostas prontas.

Ressoava, então, em nossos ouvidos, a advertência que nos houvera feito David Le Breton, quando lhe inquirimos sobre a razão de alguns de seus textos não transparecerem claramente a sua opinião, ou o fazerem apenas ao final, e de forma tênue. 19 Sua resposta fora taxativa: “quem milita, limita”. 20 O que nos levou a meditar durante muito tempo, nos abeirando do que ele realmente quisera nos dizer. O fato é que, no refluxo desse diálogo, passamos a adotar um estilo menos incisivo de escritura, esbulhando aos poucos para fora do texto um ou outro posicionamento mais categórico. Sempre no intuito de limar qualquer militância que soasse castradora de uma moldura mais ampla de possibilidades interpretativas.

O problema é que, aos poucos, sem nos darmos conta, fomos desaparecendo do nosso próprio texto, tal era o cuidado em não sufocar o leitor com os nossos pontos de vista. Assim, estávamos de tal modo empenhados em propiciar ao leitor mais elementos para a formação de uma perspectiva autônoma, que havíamos nos “escondido” por trás de uma miscelânea de autores e obras, de diferentes orientações.

Contudo, quanto mais contato tínhamos com a escrita siderada, autorreferente e passional dos blogs em estudo, mais nos parecia asséptica a leitura do que

19

Como é o caso, por exemplo, de LE BRETON, David. Adeus ao Corpo. In: NOVAES, Adauto (org.).

O homem máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 20

Essa rica oportunidade que tivemos de debater com o Prof. Dr. David Le Breton sobre o seu estilo de escrita nos foi dada quando este, a convite dos Professores Doutores Cristian Paiva e Alexandre Flemming, proferiu conferência no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC, em 2006.

vínhamos escrevendo. Assim, a disparidade entre a escritura hiperautoral dos blogs e o estilo originalmente adotado na tese, bem mais blasé e esvaziado de autoria, havia nos obrigado a comparações quase que inevitáveis.

Eis, portanto, o mal-estar.

Foi preciso que revisitássemos a bibliografia de outra autora - Glória Diógenes - para que pudéssemos compreender, aos poucos, que é possível reconciliar as duas preocupações balizadoras do presente trabalho. De um lado, importa preservarmos a liberdade que tem o autor de escrever por fora das molduras, 21 liberando-se de um bacharelismo cientificista, para reencontrar tudo o que pode haver de inventividade e artesania na própria ciência. De outro lado, desejamos assegurar o respeito à liberdade e ao pensamento autônomo do leitor, não lhe impondo conclusões dogmáticas ou interpretações muito restritivas acerca do nosso objeto de estudo.

Assim, ao retomarmos a leitura de alguns dos textos de sua lavra,22 percebemos que havia neles uma presença autoral muito intensa, que nos dava a franca impressão de termos estado ao seu lado durante os trabalhos de campo, partilhando de suas angústias, inquietações e conquistas. Como se de algum modo conhecêssemos a antropóloga em questão, desde os primórdios, simplesmente porque a tínhamos “visto” atuando em campo, ao longo da leitura de suas obras.

Contudo, chamou-nos a atenção o fato de que a presença marcante da escritora não havia implicado uma militância ostensiva de posicionamentos ou mesmo alguma espécie de conspurcação intelectual, tal como temíamos. Muito ao contrário. A autora estava inteira em sua escritura, e nós, leitores, também. Àquela altura, queríamos a todo custo entender como era possível dar a um texto uma estatura de cientificidade sem tornar a sua leitura insípida, inodora e incolor. Onde estaria a chave para obter um resultado assim, em que a presença do autor pudesse

21

A metáfora tem sido usada por Diógenes como um chamamento recorrente aos doutorandos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC, em suas defesas de tese, com o fim de incitar- lhes a pensar ciência como invenção.

22

Vide, por exemplo: DIÓGENES, Glória. 2. ed. Cartografia da cultura e da violência: gangues, galeras e o movimento hip hop. São Paulo: Annablume, 2008. Ou ainda: DIÓGENES, Glória.

atravessar o texto sem roubar ao leitor as suas próprias possibilidades interpretativas?

Aos poucos, fomos nos dando conta de que a resposta estava na coesão estética que se depreendia de sua obra, isto é, podíamos distinguir, entre diferentes textos, uma estilística muito particular ao trabalho de Diógenes, o que lhe permitia assinar seu texto, sem incorrer na “imposição” de uma dada visão de mundo. O resultado estético soava mais como um convite à reflexão, de modo a ampliar o horizonte hermenêutico dos leitores.

Estávamos, portanto, diante de uma questão metodológica que perpassava a própria escritura do nosso trabalho de tese. E enfrentá-la implicava resolver aquilo a que Geertz chamou de dilema da assinatura.

De fato, para esse autor, uma parte substancial da capacidade de um antropólogo de legitimar o seu trabalho, carreando a credibilidade do público para suas pesquisas, não decorre (ao contrário do que pensa a sua grande maioria) do modo como o pesquisador se conduz em relação aos problemas de campo. Mas sim do modo como lida com os problemas do seu próprio texto [!].

Talvez porque a antropologia tenha tradicionalmente se voltado ao estudo de culturas consideradas “exóticas” - ao menos sob o ponto de vista eurocêntrico - os desafios excedentes dessa modalidade de campo parecem ter monopolizado a maior parte das atenções dos antropólogos, desviando-as dos desafios pertinentes ao texto em si, os quais ficavam, muitas vezes, relegados a segundo plano.

Mas, para Geertz, é preciso dar ao problema do texto o valor e a atenção que ele merece, pois de acordo com o autor, “cento e quinze anos de prosa asseverativa e inocência literária (...) são mais do que suficientes” 23 para os antropólogos. É preciso, vez por todas, atentar para o fato de que os bons antropólogos são justamente aqueles cujos textos nos imprimem a sensação de que eles de fato estiveram lá. E mais, diz Geertz: a impressão de que se nós tivéssemos estado lá

23

Cf. GEERTZ, Clifford. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005, p. 39.

(no campo) com eles, “teríamos visto o que viram, sentido o que sentiram e concluído o que concluíram.” 24

Assim, o que há de inovador em sua tese é o fato de que, para o autor, essa impressão generalizada de verossimilhança resulta muito mais diretamente da forma como o antropólogo lida com os problemas textuais, do que, até mesmo, do modo como ele lida com os problemas de campo. 25

E para convencer seus pares, Geertz se vale de um minucioso estudo estilístico de quatro cânones da antropologia, a fim de demonstrar de forma inequívoca que a assinatura de um texto antropológico se dá pela forma inconfundível com que o autor constrói a sua prosa, 26 levando-nos a “estar lá” com ele no campo, mesmo que nunca tenhamos nos ausentado de nossas poltronas.

Em suma, para a estética antropológica de Geertz, forma também é fundo, na medida em que uma descrição factual, por extensa e minuciosa que seja, aliada ao mais rijo aparato conceitual, por si mesmos, não garantem o efeito de verossimilhança que só pode ser obtido à custa de um embate entre o antropólogo e seu texto.

Assim, enquanto a antropologia, e, de resto, as ciências sociais como um todo, não assumirem a importância das “estratégias narrativas” para a obtenção dos efeitos de estilo que creditam ao texto uma parte substancial de sua legitimidade, continuaremos sem saber precisar como e por que alguns textos científicos são capazes de firmar um alto grau de convencimento acerca de suas teses; ao passo que outros, muitas vezes repletos de descrições exaustivamente minudentes, ou de arsenais teóricos monumentais, simplesmente não conseguem capturar a nossa atenção com tanta força. 27

24

Idem, ibidem, p. 29.

25

É bom deixarmos claro que em nenhum momento Geertz menospreza as dificuldades ínsitas ao estudo de campo. Sua preocupação é tão somente a de nos alertar para a necessidade de conferirmos pelo menos igual preocupação ao que faremos, posteriormente, com as informações colhidas no campo, no momento da redação do texto antropológico.

26

Geertz elege como modelo de uma preocupação estilística com o texto: Lévi-Strauss, Evans- Pritchard, Malinowski e Ruth Benedict.

27

2.2 A subjetividade da assinatura: pano de fundo para uma discussão pós-positivista

No documento : a escrita de si na era digital (páginas 30-35)