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4 ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL NO QUE SE REFERE À CONCESSÃO DE MEDICAMENTOS DE ALTO

CUSTO

No que concerne à pesquisa jurisprudencial, inicialmente, a partir dos filtros selecionados, foram encontradas 43 decisões. Desse conjunto, três foram excluídas, por não apresentarem pertinência temática com o recorte proposto neste estudo, especificamente as apelações cíveis números 70069999746, 70037026291 e 70029603149. Embora a temática destes três versasse sobre o pleito da assistência farmacêutica, em tais apelações o Tribunal não foi instado a decidir sobre a manutenção ou reforma da decisão de primeira instância que concedeu ou negou medicamento de alto custo, mas dizem respeito a recursos de apelação que tratam de questões processuais.

Com base na análise de cada uma delas, foi possível depreender que o Tribunal possui um entendimento firmado favorável à concessão de medicamentos. Dos 40 acórdãos restantes, 95% determinaram a concessão pelo ente demandado, se opondo às 5% que foram contrárias a este posicionamento, sendo as fundamentações de ambos os grupos abordadas ao longo deste capítulo. Importante mencionar que todas as demandas visam a concretização do direito fundamental à saúde, e o mencionam em suas fundamentações para sustentar seus argumentos. Nas decisões, os desembargadores reafirmaram que a concretização de tal direito se dá, em regra, por meio de políticas públicas elaboradas e ordenadas pelo Executivo, o qual detém a competência e o dever de fazê-lo nas suas três esferas de poder.

Quando o cidadão, titular do direito à saúde, se vê dele privado em função da insuficiência da política pública à luz do caso concreto, demanda o Poder Judiciário para que este, com base no direito de quem pleiteia, conceda o fármaco essencial.

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Nessa senda, o sujeito ativo da demanda, conforme entendimento do Tribunal em questão, em congruência com os Tribunais Superiores, deve provar três fatores que condicionam a concessão: a imprescindibilidade, a hipossuficiência e a efetividade.

A imprescindibilidade se refere à capacidade que detém o fármaco de reestabelecer a saúde do paciente, ou, não podendo essa ser plenamente reestabelecida, provar que este proporciona melhoras no quadro clínico e, consequentemente, nas condições de saúde e de vida do paciente, fato que não será possível sem o seu uso. A atividade probatória quanto a tal condição se dá através de laudos assinados pelo médico que vem acompanhando o paciente, sendo dispensável sua confirmação através dos laudos desenvolvidos dentro do processo pelo ente demandado, por intermédio dos médicos da rede pública.

Trata-se de um argumento frequentemente utilizado pelo Poder Público na sua defesa processual, entendendo este que além de possuir laudo que configure a patologia e a necessidade do fármaco, deve haver a comprovação pelos médicos do Estado do mesmo quadro clínico e a correspondência entre o fármaco e a doença no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT), vez que esta é a finalidade de tal norma administrativa. Sobre o tema, embora Estado e Municípios insistam haver cerceamento de defesa, o Tribunal é pacifico ao afirmar que, basta laudo médico daquele que acompanha o paciente para que se configure a necessidade do tratamento, independentemente de reafirmação em sede processual.

O segundo requisito refere-se à hipossuficiência, qual seja, incapacidade do demandante de arcar com tratamento por conta própria, sem prejuízos ao próprio sustento e de sua família. Este critério vem adstrito ao princípio da dignidade da pessoa humana, e conforme explicitado, não exige condições como miserabilidade ou carência, mas que o custeio do tratamento por conta própria inviabilize que arque com seus custos de vida essenciais. Foi com base nesse critério, que o Tribunal sustentou um dos dois casos de não concessão encontrado a partir do recorte proposto, mais precisamente na apelação n. 70035667369, fundamentando a negativa da concessão do medicamento no fato de a família comprovadamente possuir condições financeiras para adquirir a medicação pleiteada.

Por fim, é ainda essencial a prova da eficácia do fármaco ao quadro clínico do paciente, de forma que o Poder Público não seja condenado a gastos em função de medicamentos com efetividade duvidosa que igualmente não cumprirão a função de garantir o restabelecimento da saúde do paciente. Entretanto, cabe ressaltar o entendimento que considera a prevalência da prescrição efetuada pelo médico, que acompanha o paciente. Nesse ponto, cabe mencionar que a segunda decisão que determinou que o medicamento não fosse concedido – apelação cível n. 70069999746 –, tinha por fundamento o descumprimento de tal requisito. Tal critério, novamente, independe da correspondência prevista no PCDT, bastando a comprovação médica de que o resultado é efetivo e favorável ao quadro do paciente,

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à luz do caso concreto.

A demanda alvo do presente estudo tem por sujeito passivo qualquer um dos entes federativos, com base na divisão de competências estabelecida no art. 23, II da CF. Deste dispositivo, o Tribunal em foco, em consonância com os Tribunais Superiores, firmou o entendimento de que entes possuem responsabilidade solidária no que tange a assistência à saúde. Dessa forma, será responsável por fornecer o fármaco pleiteado o ente que for demandado pelo titular do direito subjetivo, tendo este o poder de escolha de quem deverá cumprir a obrigação, podendo fazê-lo em conjunto ou separadamente, independentemente de regionalização e hierarquia que estruturam a prestação do serviço público de saúde, tratando-se, portanto, de um litisconsórcio facultativo.

Na prática, verificou-se que, embora tanto a União, quanto os Estado e os Municípios possam configurar o polo passivo da demanda, em 57% das decisões analisadas, foram demandados o Estado do Rio Grande do Sul e o Município de residência do demandante conjuntamente; em 40% das decisões analisadas foi demandado isoladamente o Estado do Rio Grande do Sul; por fim, em 3% das decisões foi demandado isoladamente o Município no qual residia o demandante.

Nessa senda, surgem alguns elementos trazidos nas defesas de Estado e Municípios, analisados pelos acórdãos, as quais são atinentes a este estudo.

Alegam estes que, embora o texto constitucional, em seu artigo 23, II, determine a competência comum dos entes para cuidarem da saúde, existe uma organização administrativa que orienta a forma como o Poder Público irá concretizar tal direito fundamental. Inicialmente, há uma divisão articulada de competências aos três níveis de gestão, segundo a qual cada ente é responsável por uma classe de fármacos, de acordo com critérios como a complexidade e os custos, conforme já mencionado.

Logo, quanto aos medicamentos de alta complexidade, o ente demandado deveria, necessariamente, ser a União, os de média o Estado e os do componente básico o Município.

Além disso, reafirmam que existem normas administrativas que orientam a política pública de saúde, como por exemplo, a RENAME e o PCDT, os quais igualmente dividem a competência dos entes em relação a cada classe de fármacos e associando a doença com o respectivo tratamento, devendo estes serem respeitados na concessão judicial, vez que são as balizas de tal prestação pública.

O tema é pacífico nas decisões analisadas. Adota-se o entendimento de que a solidariedade dos entes em tal matéria faz com que qualquer um deles possa ser demandado, independentemente da estrutura administrativa adotada no âmbito do Executivo para a materialização do direito. Dessa forma, parte-se do pressuposto de que tais normas que estipulam a divisão, conforme mencionado, servem para orientar a ação do próprio poder público, conforme trecho extraído da apelação cível nº 70060168317:

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Verifica-se que foram ‘instituídos diversos requisitos para a dispensação de medicamentos e produtos pelos entes públicos.

Segundo tais regras, é imprescindível na esfera administrativa a observância dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas e, na falta destes, das competências estabelecidas na própria lei’. Da leitura dos citados dispositivos, fica claro que as disposições são

‘direcionadas aos próprios entes estatais, cabendo a eles fazer acerto administrativamente dos regramentos estabelecidos’.

Nesse contexto, inegavelmente a decisão que concede tal categoria de fármacos o faz pelo caminho oposto ao adotado para as demais prestações de saúde em forma de política pública. Esta se dá através da estruturação administrativa, articulação dos órgãos e normatização do âmbito de atuação de cada um dos entes, de forma a prestar um serviço universal, igualitário e gratuito a toda a população. Enquanto que aquela se concretiza a partir de uma decisão judicial de órgão jurisdicional provocado por um titular de direito subjetivo à saúde, que o não vê materializado plenamente.

Portanto, embora seja de competência do Executivo a materialização da saúde, o Judiciário vem desempenhando um papel de coadjuvante nesse cenário.

É nesse ponto que se sucedem uma gama de argumentos utilizados pelos entes públicos ao recorrerem das sentenças de primeiro grau. Embora o Judiciário detenha competência constitucional para reparar lesão e ameaça a direito (art. 5º, XXXV, CF), como no caso em tela, quando o faz, interfere diretamente no orçamento do ente que condena, sobretudo no dos Estados e Municípios, os quais configuram-se como os principais demandados. O primeiro argumento utilizado na defesa dos entes consiste no Princípio da Reserva do Possível, segundo o qual condiciona-se a concretização dos direitos sociais à existência de condições materiais e financeiras para fazê-lo.

Significa dizer que estes possuem um orçamento fixo para gastos com saúde da população como um todo, devendo despender parte desse para o cumprimento das decisões judiciais de tutela individual.

Seja pela imprevisibilidade ou pelo custo do tratamento que o ente deverá suportar, este sustenta que se trata de interferência de outro poder no seu âmbito de competência, bem como nos seus gastos. O Tribunal, por sua vez, ao analisar tal fundamento justifica que, embora seja essencial a possibilidade orçamentária de concessão do fármaco, meio pela qual se concretizará o direito à saúde, tal princípio não deve consolidar-se como impedimento à sua efetivação através do Judiciário, vez que não possui caráter absoluto, devendo ser ponderado à luz do caso concreto.

Dessa forma, embora reconheça a existência e validade de tal princípio como fundamento, tal argumento só será acolhido caso haja a comprovação de que “os recursos arrecadados estão sendo disponibilizados de forma proporcional aos problemas encontrados, e de modo progressivo a fim de que os impedimentos ao

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pleno exercício das capacidades sejam sanados no menor tempo possível” (SCAFF, 2005, p.215). Por um lado, os entes federativos prelecionam que não poderia um Poder exógeno determinar como estes entes devem usar seu orçamento ou como devem se estruturar para cumprir seus deveres constitucionalmente impostos, uma vez que tais decisões interferem na execução das políticas por estes de forma que parte de suas verbas impositivamente devam ser direcionadas ao cumprimento de decisões.

Por outro, ao analisar os acórdãos foi possível depreender que a postura de tal órgão jurisdicional se legitima na competência para apreciar as lesões e ameaças de direito, conforme supracitado, que decorrem da ineficiência ou omissão do poder público em cumprir o que lhe compete. Pelo fato de que a suposta interferência decorre de um dever constitucionalmente imposto, não há que se falar em afronta à independência dos poderes, vez que seus atos são legalmente previstos constituindo-se como dever de agir.

Acrescenta-se a este, o argumento recorrente dos entes demandados de que a concessão de uma tutela individual pelo Judiciário violaria os princípios orientadores do SUS, qual seja, prestação igualitária e universal. Afirmam que a finalidade do SUS é o atendimento da população como um todo, com o objetivo de concretizar o direito à saúde, por meio do tratamento gratuito e integral, como já abordado.

Em contraponto, na apelação cível nº 70060653631, resta elucidada a posição consolidada do Tribunal sobre o tema, que entende que incumbe ao Poder Judiciário assegurar o cumprimento das políticas públicas, e também as voltada para a saúde, principalmente quando estas forem insuficientes ou ineficazes, sendo possível:“a sua revisão judicial com a concessão de medicação, exame ou procedimento não previsto. Com tais medidas, não se privilegia um interesse subjetivo, porque o interesse social é de que a política seja suficiente e eficaz”.

Sendo assim, firmou-se o entendimento de que o Judiciário atua quando o Executivo deixa de cumprir o dever que lhe é legalmente imposto, não sendo possível se referir às decisões concessivas como afrontas ao princípio da reserva do possível, da separação de poderes ou da isonomia. Por fim, no que se refere à decisão do acórdão, a condenação dos entes ao fornecimento, obedecidos os critérios e fundamentos esmiuçados neste capítulo, quando concessivas não determinam como se dará o cumprimento da obrigação imposta. Quando o demandado é, isoladamente, o Município ou o Estado, não há maiores dificuldades, vez que este deverá fornecer o fármaco da maneira que lhe aprouver.

Mas, quando ambos são demandados, a decisão não especifica como se dará tal cumprimento, se haverá rateio da obrigação, dividindo os custos, se haverá transferência de valores de um ente ao outro, ou qualquer outra forma. Partem, portanto, do pressuposto de que existe uma organização administrativa que irá coordenar a forma de cumprimento da decisão, um dos poucos momentos em que

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foi possível depreender a validade desta quanto às lides levadas à apreciação do Judiciário, no recorte abordado.

Ademais, a possibilidade de ressarcimento do ente condenado ao fornecimento do fármaco que não era de sua competência de acordo com a organização administrativa, já supramencionada, não fora apontada em todos os acórdãos analisados, mas em 8 deles, sendo 7 de relatoria do Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, transcreve-se, especificamente, da apelação cível nº 70059954073:

Esclareço, no entanto, que cabe a cada ente público buscar o ressarcimento cabível dentro do próprio sistema público de saúde. Ou seja, se os protocolos apontam que o fornecimento de determinado serviço, medicamento ou alimento especial é de responsabilidade de outro ente público, que não está sendo demandado, cabe ao demandado buscar o repasse dos valores gastos ou, então, promover a cobrança administrativa (ou mesmo judicial) junto ao ente público obrigado, consoante os convênios e protocolos que orientam o sistema público de atendimento à saúde, que é o SUS – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE.

Observando o histórico dos acórdãos, foi possível identificar que esse posicionamento aparece pela primeira vez na apelação cível n. 70028658201, também de relatoria do Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, na qual o Estado pleiteia pelo reconhecimento de sua ilegitimidade passiva, tendo em vista ser do Município a responsabilidade pelo fornecimento. Na oportunidade, o relator pondera justamente sobre a importância da repartição de competências para a concretização dos princípios que norteiam o Sistema Único de Saúde (SUS).

É com base nesses fundamentos que o relator reconheceu a procedência do pleito feito pelo Estado, para então reconhecer sua ilegitimidade passiva e reconhecer a competência do Município de Porto Alegre para fornecer o medicamento solicitado.

Entretanto, o revisor abriu divergência, destacando justamente a responsabilidade solidária entre os entes e reconhecendo a igual responsabilidade do Estado no fornecimento do fármaco, posicionamento que terminou sustentado pela jurisprudência do STJ e STF, e sagrou-se prevalecente também na apelação cível em comento.

Exposto o resultado da análise dos fundamentos extraídos das decisões, este pode ensejar distintas abordagens e reflexões críticas. Porém, para os fins do presente estudo, sejam estes argumentos dos entes demandados ou dos membros do Judiciário em suas decisões, voltou-se especificamente à verificação de como se dá o enfrentamento dos limites administrativos e orçamentários, quando há concessão do medicamento solicitado.

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