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Análise: lugar de falar da solidão do Um

No documento O feminino e a solidão (páginas 132-136)

Parte 2 – A Solidão e suas versões

3. Solidão: da Angústia ao Desejo

5.4. Análise: lugar de falar da solidão do Um

A solidão do Um faz o falante localizar-se no gozo fálico, limitado, suportado pelo significante, efeito da submissão à castração. É assim que o analisante busca análise, queixando-se da mentira que o sustenta numa solidão que faz da sua parceria com o objeto

a um isolamento em relação ao Outro. O discurso analítico responde ofertando escuta e

promovendo um novo e outro enodamento (Fingermann, 2015). O analista responde fazendo henologia, a ciência do Um, isto é, colocando o S1 no lugar da produção.

Fazer ciência do Um implica, a partir do lugar de semblante de objeto a, causa de desejo, convocar o sujeito barrado à produção do enxame de significantes que se encadeiam e o representam. Numa análise, o Um comparece nos seus dois níveis: o Um da repetição, própria à estrutura significante, bem como o Um que se produz no gozo fálico, aquele que se refere ao Há-Um.

O Um de que se trata no S1, aquele que o sujeito produz, ponto ideal, digamos, na

análise, é, ao contrário do que se trata na repetição, o Um como Um só [Un seul]. É o Um na medida em que, seja qual for a diferença existente, sejam quais forem todas

133 as diferenças que existem e todas as quais se equivalem, existe apenas uma: é a diferença (Lacan, 1971-72/2012, p. 159).

Para chegar a esse Um só, que não faz laço com outro significante, Um só da diferença que se distingue do Um da repetição, será necessário a escuta do que constitui a estruturação do sujeito do inconsciente, dividido pela linguagem, produzido pelo efeito do encadeamento significante. Há aqui uma diferença importante a ser demarcada em relação ao Um, cujos dois níveis são descritos no Seminário ... ou pior. O primeiro deles é o que se constrói a partir da leitura empreendida por Lacan (1961-62/2003) acerca do einziger Zug freudiano, o traço unário, essência do significante, traço distintivo que funciona pelo seu apagamento, fazendo aparecer o sujeito. O traço unário tem origem no campo do Outro, dividindo o sujeito e promovendo a identificação. A partir dele, inaugura-se a série que funda a insistência da cadeia significante.

O traço unário funda o Um da repetição, inscrevendo a cifra da diferença a partir da perda de gozo oriunda do traumatismo das primeiras experiências de satisfação. Ele não tem sentido, não representa nada, é a condição de possibilidade do advento do sujeito. O Um da repetição retorna nas formações do inconsciente e na associação livre, daí a análise ser o lugar do deciframento da repetição significante oriunda do traço unário (Soler, 2011).

As formações do inconsciente – sonhos, sintomas, chistes e atos falhos – foram submetidas por Freud ao deciframento, que colocou em evidência a “diz-mensão significante pura” (Lacan, 1974/2003, p. 514). Essa dimensão do dito e lugar do dizer é a matéria prima da análise, que reconhece no significante o elemento cifrado, signo do Um.

Com efeito, é pelo fato de todo significante, desde o fonema até a frase, poder servir de mensagem cifrada (...) que ele se destaca como objeto e que descobrimos ser ele que faz com que no mundo, no mundo do ser falante, haja o Um, isto é, o elemento

134 Assim, o Um, na sua face significante, proveniente da repetição instituída na origem pelo traço unário, é um elemento fundamental que institui o falante. A mensagem cifrada será recolhida pelo analista que não buscará o sentido, pois esse escapa, escorre, não sendo possível calculá-lo. Decifrar não é dar sentido, é sustentar o que há de equivocação na ordem do signo, uma vez que “a cifra funda a ordem do signo” e este é substituível e decifrável (Lacan, 1975/2003, p. 551). O inconsciente é um saber a ser decifrado e o que ele revela é o gozo cifrado, do qual se extrai o sentido do sintoma, com a condição de que se leve em conta que “existe um saber que não calcula, mas que nem por isso deixa de trabalhar em prol do gozo” (p. 556).

Segundo Soler (2012c), o caminho percorrido por Lacan vai da interpretação do sentido à decifração, ou seja, do significante, sempre articulado ao menos em pares (S1-S2),

ao signo, sempre signo do Um. Essa direção, que aponta para a decifração de signos gozados, não aponta um fim, um ponto em que se coloca termo à decifração. Uma das direções tomadas por Lacan para esse fim foi o escrito, o fim pelo escrito. Defende que a decifração da fala produz efeito de escrita. Lacan (1972-73/2008) esclarece que o que se escreve numa análise é o Um fálico, o desejo como contingência, isto é, aquilo que pára de não se escrever e se produz como o significante do gozo, S1. Esse é o “ponto ideal” da análise, tal como diz

Lacan (1971-72/2012, p. 159). É nele que se escreve o Um como Um só [Un seul], que só tem a ver com a solidão.

A escrita é feita da letra, que confere suporte à escrita do Um. Na análise, trata-se de produzir uma escrita ímpar, que possa bordejar o que não para de não se escrever, isto é, contornar o impossível, o real. Se uma análise não conduz à possibilidade de escrever o impossível, ela confronta o sujeito com a possibilidade de escrever a borda do furo, o que se faz com a letra. Esse é um conceito importante na obra lacaniana, desde O Seminário sobre

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razão desde Freud (1957/1998), entre outros escritos, e chegando a Lição sobre Lituraterra

(1971/2009). No primeiro tempo, década de 1950, a letra, conceito retirado da linguística, fora tratado como suporte material do significante, como a letra/carta (lettre) que é desviada no conto de Edgar Alan Poe e produz um efeito de feminização no sujeito, ou seja, faz com que ele seja lançado ao lugar de objeto. No segundo tempo, Lacan (1971/2009) define a letra como o que faz borda entre o saber e o gozo, entre simbólico e real.

A letra desenha a “borda do furo no saber”, ou seja, é um fazer simbólico que escreve algo delimitando o que o saber relativo ao significante não alcança. É do literal que se faz litoral. E com a literalidade, com o que se diz ao pé da letra, que o analista conta para a escuta dos signos de gozo. “Entre o gozo e o saber, a letra constituiria o litoral” (Lacan, 1971/2009, p. 110). A escrita literal entre o gozo e o saber diz respeito a estabelecer com o

Há-Um certo contorno do impossível, escrever um limite tal qual o litoral que separa e, ao

mesmo tempo, faz o encontro entre mar e terra, entre real e simbólico. Não se trata de buscar sentido, ou interpretação, mas de fazer com a letra uma escrita que toque o real, escrita que rompe o semblante e invoca o gozo. Tocar o real com a letra é um modo de dizer a solidão, o exílio em relação ao Outro. Escrever o Há-Um é também um modo de representar o que sustenta o sujeito no laço possível com o Outro, ou seja, escrever o enodamento borromeano, uma vez que ele é “a mais eminente representação do Um, no sentido em que (...) encerra apenas um furo” (1972-73/2008, p. 136). Com a letra, escreve-se o Um, em solidão, sem excluir a contingência do encontro com o Outro, que inclui, para além das ficções imaginárias e simbólicas, o encontro com o real e sua impossibilidade de escritura.

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Capítulo 6. Solidão Outra: héteros para além do Um

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