• Nenhum resultado encontrado

Do Um ao Outro

No documento O feminino e a solidão (páginas 136-140)

Parte 2 – A Solidão e suas versões

3. Solidão: da Angústia ao Desejo

6.1. Do Um ao Outro

Para tratar da solidão Outra, que ultrapassa o Há-Um, ou seja, que não se refere apenas ao simbólico, serão destacados e diferenciados três significantes que auxiliam a articulação do campo do sujeito ao Outro. São eles: o muro, a fronteira e o litoral. Haveria, no percurso de uma análise, uma passagem pelo muro, pela fronteira e um ponto de chegada no litoral? O muro que se estabelece entre o homem e o mundo, tal como no poema de A. Tudal, retomado por Lacan (1971-72/2011) em Estou falando com as paredes, é uma barreira de interposição que revela a impossibilidade do senso comum, isto é, do estabelecimento de um sentido compartilhável.

Nessa direção, La Sagna (2007) propõe que o muro entre o sujeito e o Outro produz desenlace e isolamento, que se diferencia da solidão. Se a consequência de haver o muro é o isolamento, a solidão se diferencia dele porque nela há uma fronteira entre o sujeito e o Outro. A fronteira abre possibilidade de separação e de laço com o Outro. Esse limite entre um espaço e outro, característico da fronteira, desenha uma linha que divide territórios que compartilham uma mesma materialidade. Na geografia do laço social, podemos inferir que a fronteira se faz no campo do significante, e é o que possibilita o laço no simbólico, ao contrário do isolamento. Quando se faz fronteira entre sujeito e Outro, essa separação garante a solidão relativa ao falante, que, mesmo diante dos impasses da comunicação, não deixa de promover laço.

Em Lição sobre Lituraterra, Lacan (1971/2009) diferencia fronteira e litoral, pois “o litoral é aquilo que instaura um domínio inteiro como formando uma outra fronteira, (...), mas justamente por eles não terem absolutamente nada em comum, nem mesmo uma relação recíproca” (p. 109). O litoral é o limite entre campos absolutamente heterogêneos, terra e

137 mar, enquanto a fronteira limita territórios homogêneos. Muro, fronteira, litoral se aproximam por seu caráter de ‘entre’, de limite, cada um promovendo respectivamente isolamento, separação, contorno. No litoral, a letra faz a função de contornar simbolicamente o furo no saber, isto é, circundar o real. Tal como a borda do vaso esculpido pelo oleiro contorna o vazio, a letra circunscreve o real, por meio do escrito.

O exercício da letra rompe com o isolamento radical imposto pelo muro entre o homem e o mundo, e, por meio da carta de amor, uma ponte pode ser construída nesse espaço. “Entre o homem e a parede há, justamente, o amor, a carta de amor. O que há de melhor nesse curioso elã chamado amor é a carta” (Lacan, 1971-72/2011, p. 102). A carta (lettre) de amor é letra de amor, que busca escrever o que não cessa de não se escrever, por isso faz escrita bordeando o real. Como não é possível escrever a relação sexual, e do amor só se pode falar de maneira imbecil ou abjeta, a carta/letra de amor é a possibilidade de fazer suplência a esse impossível, de fazer o amor falar por meio do endereçamento ao Outro. É assim que um analisante se dirige a um analista, remetendo-lhe sua letra/carta de amor, que pode encontrar no destinatário, que faz semblante de objeto a, um leitor da sua carta/letra de amor. O analista é um leitor dos hieróglifos do analisante, que com sua fala dá voz à articulação significante e é escutado ao pé da letra. Nesse litoral, entre saber e gozo, entre o que pode ser alcançado pelo dito e o que não pode, situa-se a letra. Nele, o analista coloca- se como leitor da letra pulsional do analisante, é o destinatário de sua letra/carta solitária (Costa, 2009).

Do muro passamos à fronteira e desta ao litoral, lugar onde o encontro entre mar e terra produz indefinições, e lugar onde a letra encontra sua morada, por sustentar o banho do mar e ancorar-se apenas parcialmente na terra. Essa letra é solitária porque seu portador assim o é. Aliás, o psicanalista Antonio Quinet (2009, p. 168) associa letra (lettre) ao ser (l’être), pois em francês há uma homofonia entre ambos, que permite o entendimento de que

138 “o sujeito é a letra”. O sujeito do inconsciente é efeito da articulação entre os significantes, que fazem par, no entanto “o sujeito-letra, o falasser é sozinho, pois a letra é solteira, por ser idêntica a si mesma não faz parceria. (...) A solidão do falasser é estrutural, entretanto, não o impede de se vincular aos outros nos laços sociais” (p. 168-169). A análise seria esse laço que não faz par, é um laço singular, em que a letra/carta de amor poderá ser lida. O que será lido remeterá o sujeito ao que não cessa de não se escrever, isto é, ao que sustenta a própria escrita da carta.

É ao real que uma análise remete, ainda que isso custe o sacrifício da pretendida felicidade. No Seminário 7, A ética da psicanálise, Lacan lembra que numa análise a felicidade é demandada e transformada em política de ação dos psicanalistas pós-freudianos que esqueceram a antinomia articulada por Freud no Mal estar na civilização. Diante disso, a resposta lacaniana é retomar a letra freudiana, para a qual a análise é um juízo acerca do desejo, do modo como o analisante pôde responder quanto “à invasão da morte na vida” que sustenta a questão do desejo. Se o analista não dá a felicidade, ele dá “o seu desejo, como o analisado, com a diferença de que é um desejo prevenido” (Lacan, 1959-60/1997, p. 360). O encaminhamento ético da psicanálise denuncia a trapaça moralizante que pretende levar o sujeito a encontrar seu bem, pois “a função do desejo deve permanecer numa relação fundamental com a morte” (p. 364). Tal como o encontro da terra com o mar, o desejo encontra seu limite na morte, cujo emblema é a heroína e solitária Antígona. A questão é que a análise levada às suas últimas consequências conduz o sujeito muito além das metas morais, confrontando-o com a condição do mais absoluto desarvoramento, à Hilflosigkeit, isto é, ao desamparo à desolação mais radical “onde o homem, nessa relação consigo mesmo que é sua própria morte (...) não deve esperar a ajuda de ninguém” (p. 364). O desarvoramento produzido pela travessia de uma análise conduz assim ao (re)encontro com a solidão.

139 A psicanalista Dominique Fingermann (2016, p. 74) explicita essa questão, ao dizer que “o discurso analítico produz no fim o silêncio e a solidão que legitima a criação e autoriza o criador, passando do ‘estou sozinho!’ ao ‘eu sou sozinho’, que valida o ato e suas consequências”. A condição de ser sozinho é aquela que se refere à solidão estrutural, que não comporta a contingência dos fenômenos de desencontro com o semelhante, mas implica no reconhecimento de que há um real que é impossível de responder com a ajuda do Outro. Trata-se de um desamparo fundador e que não se apaga pelos efeitos da inscrição significante, da alienação e separação relativas à constituição do sujeito pelo Outro. Nesse âmbito, o sujeito do inconsciente se localiza entre os significantes, que se apresentam sempre pareados. Mas o caminho de uma análise levada mais longe, convoca o sujeito a responder pelo que o marcou para além do simbólico, ou seja, a aproximar-se do que rompe com o semblante, derivado da nuvem da linguagem, e escorre no corpo, provocando-lhe rasura, marca de gozo, escrita.

Nesse sentido, Lacan (1971/2009) interroga acerca da possibilidade de haver um discurso que não fosse emitido pelo semblante e responde recorrendo à literatura de vanguarda, que é de litoral, não sustentada no semblante, isto é, na significação fálica. Essa possibilidade de criar a partir de um outro lugar que não seja o Um fálico, tal como nesse exemplo, implica a autorização do criador a partir do silêncio e da solidão, tal como diz Fingermann (2016). O que se faz com a letra é diferente do que se faz com o significante, pois este está no simbólico, oferecendo materialidade para o exercício da fala, enquanto aquela está no real, produzindo efeitos de escrita. Depois de tanto falar em análise, algo da ordem da escrita, do fazer com a letra, que é sem par, algo de uma parceria singular pode se produzir, promovendo laço. A própria análise, para conduzir o sujeito ao encontro com o real da sua solidão, se sustenta no laço transferencial, sem elidir a solidão ineliminável.

140 Uma análise conduz à escrita do furo, que se faz com a letra, por efeito do trabalho de esvaziamento de gozo, de perda de gozo. Esse trabalho de escrita do furo, de bordejamento do que não se pode saber, é solitário, ainda que acompanhado por um analista e produz a singularidade de um sujeito, que o distingue dos outros. Fingermann (2008, p. 86) equipara a literatura, as artes em geral e uma análise, dimensões nas quais é possível encontrar “uma forma que, embora única, inédita, inaudita, tenha valor para o laço social. A singularidade pode encontrar uma forma que, embora ím-par, produza alguma parceria”.

Esse percurso de construção do contorno do furo no saber, isto é, de reconhecimento de que há algo que escapa ao sentido, se faz pela aproximação do que resta irrepresentável e por isso mesmo provoca o sujeito radicalmente: a morte e o sexo. O que se pode saber sobre a morte? E sobre o sexo, a diferença sexual? Falta um saber sobre a finitude e sobre a diferença sexual e é esse o nome do real. O trabalho de uma análise implica, assim, o atravessamento de um luto decorrente da escrita do furo no saber, que se processará num segundo tempo, a posteriori. “Então, toda clínica pode ser pensada como essa relação necessária com o registro da perda, dizendo respeito ao atravessamento de um luto” (Costa, 2015, p. 131). O luto que uma análise promove é também um trabalho com a letra, na medida em que é por meio dela que se faz litoral, contornando o vazio do sentido perdido.

No documento O feminino e a solidão (páginas 136-140)