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S(Ⱥ) e a solidão do psicótico

No documento O feminino e a solidão (páginas 158-162)

Parte 2 – A Solidão e suas versões

3. Solidão: da Angústia ao Desejo

6.4. S(Ⱥ) e a solidão do psicótico

“A solidão está sempre acompanhada da loucura”.

(Escrever, Marguerite Duras)

No artigo Solidão dois, a psicanalista Geneviève Morel (1996) demarca a diferença entre a solidão falsa e a verdadeira, sugerindo para a primeira o matema 𝑈𝑚

𝑎 , circunscrito ao

gozo do Um, sustentado pelo objeto a, o verdadeiro parceiro que habita a solidão do sujeito, dissimulando-a. Em contrapartida, a solidão verdadeira tem como matema S(Ⱥ) e diz respeito ao psicótico, ao analista e à mulher.

Comecemos pela articulação entre psicose e solidão. O operador estrutural da psicose é a foraclusão (Verwerfung), “rejeição de um significante primordial em trevas exteriores (...). Trata-se de um processo primordial de exclusão de um dentro primitivo, que não é o dentro do corpo, mas aquele de um primeiro corpo de significante” (Lacan, 1955-56/2002, p. 174). A foraclusão é a operação que deixa um significante de fora do conjunto nas origens da relação do sujeito com o simbólico. Implica a inoperância do significante Nome-do-Pai, que não responde por carecer do efeito metafórico, provocando um furo no lugar da significação fálica (Lacan, 1958c/1998). O Nome-do-Pai é o significante responsável por engendrar a significação fálica, uma vez que por sua operação ele metaforiza o desejo da mãe, substituindo-o e protegendo o filho da invasão do gozo do Outro. É o significante que produz a metáfora paterna, ordena a cena do mundo, estabelecendo a ordem fálica. Na psicose, a foraclusão do Nome-do-Pai, rejeitado no simbólico, produz como efeito seu retorno no real sob a forma de alucinações e delírios.

159 Na psicose, a questão da existência inunda o sujeito, invade-o, podendo até dilacerá- lo, especialmente no que concerne a seu sexo e a seu ser. O analista capta na fala do psicótico os significantes em estado puro, “no ponto simultaneamente mais inverossímil e mais verossímil: o mais inverossímil, pois sua cadeia que eles formam mostra subsistir numa alteridade em relação ao sujeito, tão radical quanto a dos hieróglifos ainda indecifráveis na solidão do deserto” e o verossímil, uma vez que sua função induz à significação e impõe sua estrutura (Lacan, 1958c/1998, p. 556). A solidão comparece na psicose em função de assujeitamento absoluto à cadeia significante e a escuta analítica do psicótico funciona como possibilidade de aproximação desse deserto solitário.

Num escrito anterior, Lacan (1946/1998) refere-se à fórmula geral da loucura a partir do desconhecimento dela, cerne no qual é possível entrever a solidão. Ao querer impor a lei do coração à desordem do mundo, o louco não reconhece nela a manifestação do seu ser, nem mesmo que essa lei é a própria imagem de seu ser invertida e virtual. Assim, esse desconhecimento é a própria foraclusão da lei simbólica. Morel (1996, p. 53), referindo-se à psicose, diz que “sua solidão é aquela de uma ruptura do laço social (...). Esta solidão ‘verdadeira’, nós a escreveremos com o matema S(Ⱥ) do significante que falta no Outro, aqui, para a psicose, o Nome-do-Pai”.

Na psicose, a solidão é ruptura do laço por causa da inoperância do significante em falta. Lacan (1972-73/2008, p. 136) lembra “do que povoa alucinatoriamente a solidão de Schreber”, remetendo às frases entrecortadas que não fazem laço. O corte em um dos elos que sustentam o nó borromeano retira o Um, desfazendo o sentido. Na psicose, há uma desamarração do nó, que conduz o sujeito à solidão relativa a um deserto de gozo, não amarrado ao significante. Neste sentido, podemos aproximar e distanciar a psicose e o gozo feminino, uma vez que ambos estão referidos à falta de um significante no Outro, S(Ⱥ). Uma importante referência nesse sentido é considerar os efeitos de feminização evidenciados por

160 Freud (1911/2010) na análise do caso Schreber, o eminente juiz que desenvolve inicialmente um delírio persecutório que funcionava como defesa contra uma fantasia homossexual. Num segundo momento, Schreber formula a ideia de sua transformação em mulher a ser fecundada por raios divinos a fim de redimir a humanidade. Freud cita Schreber, em suas memórias:

A única coisa que pode soar como algo irracional aos olhos das outras pessoas é a circunstância apontada pelo senhor perito de que às vezes eu sou encontrado com o tronco seminu diante do espelho ou algum outro lugar, enfeitado com adereços um tanto femininos (fitas, colares de bijuteria etc.). Mas isso só acontece quando estou

só, e nunca, pelo menos até onde eu posso evitar, na presença de outras pessoas (p.

20).

Schreber contempla sua imagem no espelho em solidão e seu gozo se expressa no culto à própria feminilidade e na possibilidade de copular com Deus. Lacan (1973/2003) localiza o gozo de Schreber no “empuxo-à-mulher”, que produz “o efeito sentido como de forçamento para o campo de um Outro a ser pensado como o mais estranho a qualquer sentido” (p. 466). Trata-se de um empuxo ao campo do gozo fora do ordenamento fálico, para o qual o psicótico é convocado e que coincide com o gozo feminino, uma vez que para ambos opera a falta significante. Entretanto, se no início Schreber é assaltado pelo gozo do Outro, que o invade sob a forma da perseguição odiosa e abusadora, no final, consegue localizá-lo na solução de tornar-se a mulher de Deus, que lhe dá alguma ancoragem. O delírio de Schreber parece encarnar a exceção, A mulher toda, que não existe. Sendo assim, não se pode dizer que o empuxo-à-mulher corresponda ao gozo feminino, pois aqueles que se localizam nesse campo estão não-todo nele. A questão concernente ao sexo na psicose dificulta a localização como homem ou mulher, provocando essa solução delirante que inventa A mulher sem barra, que goza sem limites e é toda (Soler, 2007; Maurano, 2006). O

161 gozo psicótico é invasivo, deletério, ameaçador, portanto, mal-vindo. Já o gozo feminino, encontrado na experiência mística, poética e até mesmo analítica, é acolhido pelo sujeito, ainda que o ultrapasse, é gozo bem-vindo (Maurano, 2006).

Lacan (1972-73/2008) recorre ao uso que o escritor James Joyce faz da letra, deslizando-a de letra (letter) ao lixo (litter) e produzindo uma obra na qual o significante se infiltra no significado e convoca os psicanalistas a escutá-la como se escuta um lapso. Poderíamos entrever na obra desse artista um gozo da ordem do feminino? Ao indagar se Joyce era louco, Lacan (1975-76/2007, p. 85) parte do nó borromeano e diz que seu caso responde “a um modo de suprir um desenodamento do nó”. Questiona se seu desejo de ser artista seria um modo de fazer uma compensação da demissão paterna e, precisamente, recorre ao sinthoma, escrito com a grafia antiga, para nomear o quarto anel que enlaça o nó borromeano fazendo dele uma versão em direção ao pai. Conclui que “a arte de Joyce é alguma coisa de tão particular que o termo sinthoma é de fato o que lhe convém” (p. 91). O sinthoma de Joyce é o seu fazer com a letra, o artifício de dizer pela via da escrita algo que faz suplência ao significante em falta. A psicanalista Ana Costa (2009) questiona como se poderia dizer se a produção joyceana é literatura. Segundo a autora,

Joyce conseguiu produzir a inscrição na literatura de um gozo que transbordava, de difícil expressão. Esse gozo não é de ordem fantasmática, se dá na constituição mesma de seu ato de destruição e esburacamento das palavras. Se a inscrição dessa produção foi possível é na medida em que o jogo com a musicalidade da língua retoma sua dimensão primária de leitura. Com ele, temos acesso a essa dimensão mais radical do trabalho da letra, mas que, de qualquer maneira, está inscrita num campo. O ato do escritor tem uma dimensão ética, na medida em que produz inscrição de seu produto – essa dimensão que poderia ser a mais solitária de seu gozo – num campo compartilhado, criando cultura” (p. 30).

162 A inscrição de Joyce no campo literário mostra que a solidão daquele que rompe com o laço social, em função da inoperância do significante Nome-do-Pai, pode sim enlaçar. Evidentemente, trata-se de uma literatura que faz frente ao uso da letra lixo, ou seja, da produção do litoral com o que resta de não simbolizado, tocando de modo esburacado o real, fazendo com seu sinthoma a escrita do significante em falta, S(Ⱥ). O savoir-faire de Joyce parece ser um tratamento com a letra do que estava desamarrado, tratamento solitário que faz laço por ser não-todo engolido pela invasão do real.

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