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Da solidão do analista

No documento O feminino e a solidão (páginas 162-165)

Parte 2 – A Solidão e suas versões

3. Solidão: da Angústia ao Desejo

6.5. Da solidão do analista

Avançando na articulação da falta significante no Outro relativa à posição do analista, recorro inicialmente a um trecho da fala de Lacan na Abertura da seção clínica, no qual ele aproxima a prática psicanalítica ao delírio:

A psicanálise é uma prática delirante, mas é o que de melhor se dispõe atualmente para obter alguma paciência com esta situação incômoda de ser homem. Em todo caso é o que de melhor Freud pôde encontrar. E ele sustentou que o psicanalista não deve jamais hesitar em delirar. (...). Se fosse mais psicótico provavelmente seria melhor analista.

A aproximação chistosa entre o analista e o psicótico não deixa de ser intrigante, especialmente porque para ambos algo do real comparece, convocando contorno. O delírio é uma tentativa de dizer o inominável, pela via de um artifício qualquer, que pode variar desde um fazer com a letra, tal como Joyce, até uma construção analítica. Apesar da proximidade, analista não é sujeito, é função que engendra um discurso a partir do lugar que ocupa como agente no laço com o Outro. É como semblante que funciona movendo o sujeito barrado a produzir a teia em que está enredado. Talvez seja justamente como objeto a que o analista se aproxime do psicótico, na medida em que se presta ao campo do Outro, numa

163 posição feminizada, donde extrai um saber acerca do real, ultrapassando os limites do sentido fálico.

Segundo Maurano (2001), o ponto mais extremo de uma análise é Ⱥ mulher, pois esse é o lugar que que corresponde ao limite do sentido, do saber. Ⱥ mulher, barrada por ser não-toda fálica, é o lugar que incita a ultrapassagem das ilusões, as quais mascararam o desejo ou reduzem-no à demanda. O caminho de uma análise conduz a ir até o fim com o desejo, a não ceder dele, o que não se faz sem pagar o preço do não-ser. Um analista, que para tanto leva sua análise até esse fim, faz uma passagem que pode autorizá-lo a ocupar o lugar onde ele não é enquanto sujeito, onde faz semblante de objeto a e coloca em andamento uma outra análise. Essa função é solitária?

Em Proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan (1967/2003, p. 248) parte do princípio de que “o psicanalista só se autoriza de si mesmo”, ainda que a escola sustente que um analista dependa da sua formação. Além disso, retoma esse princípio na Nota italiana para contrapor autorização a auto(rituali)zação, ou seja, não há rito que sustente a falácia o ser do psicanalista, uma vez que “é do não-todo que depende o analista” (Lacan, 1982/2003, p. 312). O não-todo diz respeito a frequentar uma posição feminina, que pode advir com uma análise, a qual se endereça à falta significante no Outro, escrita com o matema S(Ⱥ). Não havendo como sustentar o ser que o engessaria numa fantasia imaginária, a proposição lacaniana é que não se faz um analista sem levar em conta o real. “O analista aloja um outro saber, num outro lugar, mas que deve levar em conta o saber real” (p. 312). O desejo inédito que sustenta a causa analítica advém do lugar de resto, rebotalho, ao qual ele será lançado por efeito da destituição subjetiva, ao final de uma análise. O lugar do analista no seu discurso é o de resto, objeto a, que se deixa cair do Outro, marcando a perda de gozo que institui a barra no sujeito e no Outro. A humanidade nada quer saber acerca do real, e o analista, sendo seu rebotalho, “porta essa marca do desejo de saber. (...) O desejo de saber,

164 assim, seria aquele que emergiria após a fantasia ter sido atravessada e, portanto, estaria intimamente articulado com o real” (Jorge, 2006, p. 250-251).

Por um lado, o percurso em que analisante faz a passagem ao lugar de analista o levará à sua destituição enquanto sujeito, e daí se constatará resto do Outro. Por outro lado, sua passagem a analista é um fazer com esse resto, que se presta a causa de desejo provocando novas análises, um fazer que se sustenta no desejo de saber do que toca o real. O psicanalista Antonio Quinet (2009, p. 144) associa a marca de rebotalho relativa ao analista aos significantes mestres que o marcaram enquanto sujeito e conferiram a ele uma posição na fantasia, “que será ratificada no final descortinando sua solidão: a solidão do analista sem o Outro em sua relação com a causa analítica”. É em solidão que um analista atravessa sua própria análise e se presta ao lugar de rebotalho para um analisante, ainda que a autorização por si mesmo se faça em companhia de alguns outros. A solidão que um analista conhece, derivada da sua análise, deixa-o sem o apoio no todo da função fálica, pois já está advertido que não há Outro a responder seu apelo.

No Ato de fundação, Lacan (1964/2003, p. 235) declara: “Fundo – tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a causa psicanalítica – a Escola Francesa de Psicanálise, da qual garantirei (...) pessoalmente a direção”. Alguns anos depois, retoma essa frase para esclarecer a diferença entre a solidão do analista em seu ato, seu ser só (être seul) e a convicção de “ser o único” (être le seul) (Lacan (1967/2003). A solidão do ato de fundação da escola não faz de Lacan o único, afinal funda a escola que é lugar de muitos. A questão é que, ao se revestir desse “ser o único”, o analista demonstra a miragem que faz dele uma exceção frente aos outros. Lacan denuncia o narcisismo e a vaidade implicados no funcionamento do “ser o único”, que serve “de casula para o objeto a que do sujeito faz a miséria” (p. 267). Ser só não se confunde com ser o único, mas a solidão do ato pode fazer com que o analista se vista contrafobicamente com a autonomia egóica. É como se nessa

165 condição de “ser o único”, o analista se identificasse, de maneira megalomaníaca, com o Outro, sustentando um isolamento que nada tem a ver com a solidão do ato analítico (Quinet, 2009).

No ato analítico, o analista está só, mas não isolado, pois é uma solidão que faz laço social, pela via do discurso do analista. Além disso, a experiência da escola é um laço, via transferência de trabalho, que não abona a conta que cada um paga, sozinho, por responsabilizar-se por seu ato. Não procede de um Outro a decisão do ato analítico, a não ser de sua própria análise, lugar em que, a par da companhia do seu analista, realizou a sós uma travessia singular, que o destinou ao encontro com o real, com a falha no Outro, S(Ⱥ). Restará ao trabalho na escola a possibilidade de publicar os efeitos do ato solitário, endereçado ao real e não-todo amparado na lei simbólica.

No documento O feminino e a solidão (páginas 162-165)