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Análise da origem sociocultural dos elementos constituintes de “The black horse”

Sequência de encaixe

4.3.3 Análise da origem sociocultural dos elementos constituintes de “The black horse”

4.3.3.1 Elementos de origem primitiva e mitológica

O herói da história segue à risca o percurso do jovem púbere no ritual de iniciação das culturas primitivas: deixa o lar, recebe o meio mágico (espírito ancestral), chega ao Outro Mundo (reino dos mortos) e, após um período de provações, assume seu papel de um novo homem apto ao casamento, indo viver na tribo da noiva (PROPP, 2002, passim).

O auxiliar mágico do herói é um cavalo com poderes mágicos, capaz de voar (atributos do pássaro totêmico). Já no Outro Mundo, que se situa sob a água, o animal leva o jovem ao reino da Grécia por três vezes, sendo que na última, deve atravessar montanhas de gelo e neve, entrando num lago de fogo. Esse percurso revela a natureza ígnea e aquática do cavalo mágico do herói.

Em muitas concepções religiosas, o cavalo está conectado à concepção de fogo, que também é mediador entre dois reinos. Em muitos ritos, o morto chega ao Paraíso por meio do fogo, o que se reflete no sacrifício de vítimas em fogueiras e no costume de se incinerar cadáveres. Em mitologias do mundo todo, a natureza do cavalo mescla-se com a do fogo e a da água. Na religião védica, temos o deu Agni, flamejante, conduzido por uma carruagem de

cavalos de fogo, ao mesmo tempo, que o Rigveda informa que ele surge das águas, ou as habita. Agni é identificado com Apam Napat, que é descrito como o fogo resultante da água. Também o cavalo Pégaso se relaciona com a água, tendo feito brotar a fonte Hipocrene e os cavalos de Poseidon, que surgem do mar. Neste conto, o cavalo apresenta conexão com o dragão, tradicionalmente ígneo e aquático, soltando fogos pelas orelhas e narinas. Imaginava- se que dragões viviam em lagos, sendo que a entrada ao reino dos mortos era feita passando- se pela água e pela goela do dragão, guardião do Outro Mundo. Na concepção de morte egípcia, havia também um lago de fogo associado ao engolimento e regurgitação do morto. Segundo o autor, o cavalo de fogo como meio mágico é uma concepção tardia quando comparada ao cavalo alado, que remete ao pássaro de culturas primitivas (PROPP, 2002, p. 208-14).

Com relação ao casamento do herói, verificamos que ele vai ao reino do sogro (Grécia) para lá casar-se com a princesa. Essa forma de união conjugal é a mais antiga encontrada nos contos, já que remete a épocas em que o genro sucedia ao governo do sogro e não ao do pai (Id. ibid., p. 422).

O fato de o cavalo mágico ser o irmão da princesa metamorfoseado, também remete aos antigos ritos de iniciação, já que o animal totêmico – auxiliar mágico do neófito – era aparentado com a noiva, sendo um espírito ancestral de seu clã, e não do clã do noivo (Id. ibid., p.119).

4.3.3.2 Elementos de origem celta: sociedade e mitologia

O cavaleiro que se torna doador do meio mágico vem do Oeste, o que remete às regiões do Outro Mundo da cultura celta (EVANS-WENTZ, 1911, p. 333).

O fato de o Outro Mundo localizar-se no reino Submarino também aponta uma característica comum à tradição desses povos, que acreditavam que seres espirituais viveriam sob a água (MOORE, 1891, p. 4). Como em outros contos celtas, a presença de um ferreiro é sempre mencionada, remetendo à importância dessa função na sociedade celta.

É importante observar que o fato de o reino do sogro do herói ser o da Grécia, pode remeter à pseudo-história da Irlanda que teriam conexão com a Grécia e com os gregos da Cítia (BLAMIRES, 2009, p.81-102). Dessa forma, há uma relação do herói e da princesa com uma raça de deuses, ancestrais fundadores dos gaélicos.

Sobre o cavalo mágico do herói, já mencionamos anteriormente sua conexão com o deus hindu Agni. Segundo Ellis (1999, p.8), muitas vezes a mitologia dos celtas se entrelaça

com as dos hindus. Os cavalos considerados como atributos dos deuses celtas têm uma forte natureza aquática: Epona é a deusa celta dos cavalos, fontes e rios, cujos mitos atribuem-lhe a função de guiar as almas ao Outro Mundo. O cavalo de Manannan Mac Lir, deus dos mares, era aquático. Assim, pode-se inferir que a tradição popular celta pode ter se misturado à natureza ígnea e aquática dos cavalos hindus, estando assim representada neste conto.

4.3.3.3 Aspectos socioculturais gerais e a representação feminina em “The black horse”

Aqui a única personagem mulher presente é a princesa do Outro Mundo. Pouco é dito sobre ela e sua performance é quase passiva, até que se percebe, no decorrer da história, que seu capricho em não decidir casar-se até obter certos objetos se traduz por astúcia, sendo sua ação final decisiva para o desfecho do conto, quando empurra o pretendente no poço: “’Fique aí’, ela disse. “Se eu me casar, não será você o homem com quem me casarei, mas com aquele que realizou cada façanha para que tudo isso fosse feito e, se ele por isso se decidir, eu o terei’”(JACOBS, 2002, p. 74).

Assim, suas exigências, que levam o herói a ter que realizar várias tarefas difíceis não servem apenas para adiar o matrimônio, mas também para testar o valor daquele que escolheu para esposo, o que demonstra que ela sabe muito bem o que quer e tem a competência para realizá-lo de forma dissimulada, até o golpe final – o que remete à educação feminina até o século XIX, de acordo com Wollstonecraft (s.d., p. 19-29), quando a mulher, privada de uma formação científica, era estimulada a utilizar subterfúgios para obter vantagens em seu meio, de acordo com seu papel social, sem incorrer no desagrado dos homens e da sociedade como um todo.

4.3.4 Análise do percurso dos personagens principais sob uma perspectiva actancial (COURTÉS, 1979)

Neste conto, o destinador inicial das ações do herói é a morte do pai () aliada à falta de recursos decorrente disso (a), o que o leva a deixar o reino ( ) em busca de uma nova vida – primeiro objeto de valor visado. Neste ponto, o herói já possui a modalidade do querer fazer. Quando lhe é dado o cavalo mágico, obtém as modalidades do poder fazer e saber fazer.

No decorrer do enredo, o príncipe do reino Submarino, cujo objeto de valor é o casamento com a princesa Grega, torna-se o novo destinador das ações do herói. Ele lhe impõe as tarefas difíceis (M) (ele o faz fazer), sendo a princesa uma espécie de co-destinador,

já que a partir da segunda tarefa em diante, é ela quem influencia as ordens do antagonista direcionadas ao herói. Entre a princesa e o antagonista é estabelecido um contrato de troca, segundo o qual ele deve fazer com que suas vontades sejam realizadas e ela deve se casar, mas a moça não cumpre sua parte no acordo.

Agora o objeto de valor visado pelo herói passa a ser sua própria liberdade (desembaraçar-se das ameaças de encantamento do antagonista), por meio do cumprimento das tarefas (N) que lhe são impostas. Ele obtém ambos os objetos visados quando, por meio da morte do príncipe do reino Submarino (U), consegue sua libertação e casa-se com a princesa (W0), estando subentendido que viverá no reino do sogro. Assim, por meio de suas ações transformadoras, conjuntamente com as ações da própria princesa, o herói altera seu estatuto inicial, caracterizado pela pobreza, solidão e incerteza sobre o futuro, que se transforma na conjunção com riquezas, matrimônio e um novo lar (situação que lhe traz estabilidade em todos os sentidos).

Com relação à princesa, o destinador de suas ações é seu desejo de casar-se com quem escolheu, tendo que, consequentemente, livrar-se do primeiro pretendente. Ela já está investida com as modalidades do querer fazer e saber fazer, obtendo a do poder fazer como consequência de seus próprios atos transformadores: ao causar a morte do pretendente, pode casar-se com o herói, transformando seu estatuto de noiva contrariada para o de noiva satisfeita.

O cavalo – meio mágico – também é digno de nota. Podemos inferir que o objeto de desejo visado é sua libertação da metamorfose (pois o animal é um príncipe encantado). Seu destinador, então, seria também seu próprio desejo de voltar ao normal: ele auxilia ao herói porque, além de ser essa sua função óbvia no conto, somente este pode lhe dar o que precisa (ao contrário de seu antigo dono). Também há um contrato de troca entre os dois: o cavalo auxilia-o a vencer os obstáculos, colocando sua própria vida em risco no lago de fogo, e o herói, por sua vez, restitui-lhe a antiga aparência ao cortar-lhe a cabeça. O cavalo tem as modalidades do querer fazer e saber fazer, mas somente o herói, com relação a ele, tem a do poder fazer; sendo que o animal o faz utilizar essa modalidade em seu favor (o faz fazer, tornando-se seu destinador). Assim seu estatuto inicial animalesco torna-se o de um belo príncipe, cunhado do herói.

Grande parte das diferenças encontradas neste conto, com relação ao padrão do gênero, já foi evidenciada por meio de comentários contidos nas análises posteriores; entretanto, neste tópico, faremos uma síntese de todas elas, de forma a torná-las mais claras.

a)Transformações na forma e estilo

A sequência morfológica deste conto segue o padrão do gênero de forma bastante uniforme. As principais alterações na narrativa são observadas por um motivo que não tem conexão com o conto original, o do cavalo no lago de fogo, e pelo motivo cego no final do conto, em que o herói se esquece do cavalo por três anos, cuja função na história é inexistente (LÜTHI, 1986, p.61), podendo ser atribuído à falha na transmissão oral ou esquecimento do narrador. Não se sabe por onde os jovens andaram durante esse período, nem por que a princesa ficaria tanto tempo com o herói sem se casar.

A representação feminina nele também denota uma diferença: a modalidade do saber fazer relativa à princesa, que segundo Courtés (1979, p. 166) é incomum.

b)Transformações nos elementos de origem mítica e ritualística

Uma alteração evidente, conforme Propp (1971, p. 255-56), é a ausência da cabana e da floresta no momento em que o herói encontra o doador do meio mágico (D e F). Embora isso seja comum nos contos, normalmente, há substituição por elementos que cumprem a função das mesmas enquanto obstáculos à chegada do herói ao Outro Reino, mas aqui absolutamente nada é mencionado, caracterizando uma redução radical desse motivo, o mesmo se dando com a travessia ao reino distante (G): nada é dito sobre o cenário transposto. A distância geográfica é observada apenas pelo tempo decorrido: o herói só chega ali no dia seguinte.

A característica do Outro Reino (sob a água), remete à tradição celta, o que demonstra este ser um motivo tardio, já que o motivo nacional é mais novo que o internacional (PROPP, 1971, p. 254), além disso, o palácio padrão que normalmente o herói lá encontra não é

mencionado, apenas sabe-se que existem castelos ali pela fala da moça ao antagonista: “‘[...].Até que construa um castelo, não me casarei com você. Não vou eu morar nem no

castelo de seu pai nem no castelo de sua mãe.[...]’” (JACOBS, 2002, p. 72). Além disso, o fato de o reino dos Gregos pertencer ao Outro Mundo também implica em uma modificação no padrão do gênero, influenciada pela história mítica de ocupação da Irlanda.

A introdução do elemento ígneo relativo ao cavalo, no cumprimento da terceira tarefa (M e N), como já mencionado acima, relaciona-se às mitologias hindu e egípcia, indicando entrelaçamentos com contos estrangeiros. Embora motivos internacionais sejam considerados os mais antigos, a presença deste como se dá no conto, demonstra ter sido ali encaixado de forma a não pertencer à narrativa original, pois permanece desconectado do todo.

A tabela abaixo auxilia na localização das alterações evidenciadas:

TABELA 3 – “The black horse”: Localização das principais transformações da narrativa

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Funções e outras formas de localização Alterações da forma fundamental

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Encontro com doador (D) Ausência de floresta, cabana ou qualquer outra

localização.

Deslocamento entre dois reinos (G) Ausência de descrição geográfica ou de qualquer outro obstáculo transposto.

Outro Mundo Sob a água; não há palácio;

Localização do reino dos Gregos;

Motivo desconectado: cavalo no lago de fogo (possível entrelaçamento com motivo de outro conto);

Motivo sem função: esquecimento do cavalo pelo herói por três anos (possível falha da transmissão oral ou do narrador).

Princesa: apresenta modalidade do saber fazer.

Casamento (W0) Herói casa-se no reino do sogro:Grécia

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