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As quatro principais ramificações da mitologia irlandesa

OS CELTAS – SOCIEDADE E LITERATURA POPULAR

2.3 Mitologia e lendas irlandesas

2.3.2 As quatro principais ramificações da mitologia irlandesa

A tradição mitológica irlandesa divide-se em quatro ramos principais: o Ciclo Mitológico, o Ciclo de Ulster, o Ciclo Feniano e o Ciclo Histórico, sendo que ao primeiro ciclo podemos atribuir o desenvolvimento de um panteão de deuses e heróis míticos, considerados os ancestrais dos povos celtas. A esses seres sobrenaturais eram atribuídos vícios e virtudes humanos, e a destreza intelectual que lhes era inerente se destacava tanto quanto a habilidade física (ELLIS, 1999, p. 17-18).

O Ciclo Mitológico trata principalmente das aventuras dos Tuatha De Danann. O mito “The Ever-Living Ones” da coletânea de Ellis (Ibid., p. 21-30) narra como essa raça de deuses foi gerada pela deusa Danu, para depois transformarem a Irlanda em seu lar:

Após fertilizar a Terra com suas águas, Danu fez brotar o carvalho Bíle, unindo-se a ele. O carvalho gerou duas bolotas gigantes, das quais nasceram o deus Dagda e a deusa Brigid. Esses seres primordiais edificaram quatro cidades sagradas: Falias, Gorias, Finias e Murias para que fossem povoadas pelos descendentes de Danu; cada uma delas possuindo um objeto sagrado: Falias ostentava a Pedra do Destino, que bradava ao ser pisada por aquele que deveria ser eleito o rei; Gorias possuía uma espada, A Retaliadora, forjada antes mesmo dos próprios deuses; Finias tinha uma lança mágica, a Lança Vermelha, que encontraria o inimigo onde quer que estivesse, e Murias, o Caldeirão da Abundância, que jamais ficava sem alimento.

Após tempos vivendo ali, os filhos de Danu foram convocados a deixar suas cidades, para habitar Inisfáil, a Ilha do Destino, levando com eles os objetos sagrados. Após longa jornada, chegaram à Irlanda, onde enfrentaram os Fir Bolg, expulsando-os da ilha. Mas ali também habitavam os Formorii – nome que em celta antigo significava “habitantes das profundezas do mar” (BLAMIRES, 2009, p. 106) – filhos de Domnu, irmã perversa de Danu. A princípio, os filhos de Danu tentaram aliar-se aos filhos de Domnu, por meio de casamentos entre membros das duas raças, mas os Formorii os traíram e, após muitas batalhas, os Tuatha De Danann tornaram-se os senhores da Ilha.

Blamires (Ibid., p. 105-8) descreve os quatro ciclos. O Ciclo Mitológico trata de histórias que envolvem magia, metamorfoses e seres divinos caracterizados por emoções

violentas. Alguns dos deuses mais conhecidos que têm um papel central nas narrativas populares são: Lugh Lamhfada, deus das artes, dos guerreiros e da soberania. Ele é neto de Balor (gigante de um só olho) e pai do herói Cuchulain. Mananann Mac Lir, deus do mar, exímio navegador, controlava o clima e foi o ancestral fundador da Ilha de Man; Nuada, deus do conhecimento, é conectado ao salmão e porta a espada mágica vinda da cidade mítica de Gorias, a qual foi sendo passada de geração a geração, sendo a arma utilizada por muitos heróis míticos descendentes desses deuses. Temos também Oghma, inventor da escrita ogâmica utilizada pelos povos celtas; Macha, a tríplice deusa da guerra e suas irmãs Morrigan e Badhbh, que se metamorfoseavam em corvos durante as batalhas, influenciando no resultado das mesmas; entre muitos outros (Id. ibid., p. 141-95).

O Ciclo de Ulster compõe-se de histórias de heróis guerreiros, cavaleiros do rei Conchobhar. Eles viviam em Eamhain Macha, antiga capital de Ulster. Trata-se de histórias de batalhas violentas, num mundo de vaidades e traições. A este ciclo pertence o grande herói Cuchulain, maior de todos os guerreiros celtas, cujas narrativas se sucedem desde a Idade do Ferro até os dias recentes. Conforme a crença na reencarnação, Cuchulain teria nascido três vezes, sendo que em uma delas, seu pai seria o próprio deus Lugh. Ele é fortemente associado a cães e cavalos e, embora houvesse um tempo em que os celtas criassem grandes cães para consumo, existem lendas que mencionam a proibição de que Cuchulain os comesse (já que seriam seu animal totêmico) (Id. ibid., p. 177-80) . Há também a grande rainha de Connacht, Medb, retratada nas histórias como grande guerreira. Embora ela exigisse fidelidade e não tolerasse ciúme por parte de seus maridos, os quais foram trocados várias vezes, era comum oferecer seus favores sexuais e os de suas filhas quando se tratava de obter aliados importantes a seu reino (Id. ibid., p. 192-93); além destes, temos Connla, Fand e o druida Cathbhadh, entre outros, cujos feitos notáveis foram perpetuados nas narrativas populares.

O Ciclo Feniano é um apanhado das aventuras do grande herói Fionn Mac Cumhaill e seus guerreiros, chamados de Fianna. São contos violentos, porém com certo romantismo, lembrando os contos arturianos.

O último é o Ciclo Histórico, também conhecido por Ciclo dos Reis. Suas histórias narram a vida dos grandes reis, cuja veracidade não pode ser totalmente comprovada.

2.3.3 Druidismo

Os druidas e druidesas formavam a casta culta da sociedade celta, colocando-se, na prática, até mesmo acima dos reis, se considerarmos que estes não tomavam decisões sem o

aconselhamento desses sábios. Seus estudos eram realizados em segredo pelo período de vinte anos e, uma vez que existia a proibição de escrever seus ensinamentos – pelo fato de atribuírem um significado místico às palavras, as quais não deveriam ser profanadas – eles deveriam se utilizar apenas de sua própria memória. Ao contrário do que se imagina, nem todos os druidas exerciam a função de sacerdotes, guias espirituais ou profetas: podiam exercer qualquer profissão que exigisse erudição, como a de filósofo, juiz, médico, assessor político, professor da nobreza; havendo registros de que alguns chegavam a ocupar o trono. Essa seria uma casta comparável aos Brâmanes do hinduísmo (ELLIS, 2003, p.13; 75; 183- 89).

Dos druidas dependia também a escolha do Grande Rei. Segundo Blamires (2009, p.23-24), por meio de um ritual eles apontavam o sucessor ao trono: matava-se um touro branco e cozinhava-se sua carne. O druida tomava o caldo do cozido e era induzido ao sono, uma espécie de transe, incentivado por uma espécie de canto rítmico entoado por outros druidas. A identidade do futuro rei seria revelada por meio de sonho.

Outro ritual consistia de o druida, intuitivamente, compor um verso para determinar o caráter de alguém ou prever eventos. O mesmo método era utilizado quando necessitavam obter respostas a questões importantes. Mas seus versos podiam tomar a forma de sátiras, fazendo com que os druidas fossem temidos até mesmo por reis. Ao apontarem as faltas de um indivíduo e suas fraquezas de caráter, podiam manchar para sempre sua reputação na sociedade, transformando-o num pária. Havia um tipo de sátira que fazia com que três pústulas surgissem na face da vítima, que dessa forma, ficava para sempre marcada, sendo sua vergonha reconhecida aonde quer que fosse (BLAMIRES, 2009, p. 25-26).

A figura misteriosa dos druidas exercia grande fascínio sobre os demais povos, mas também provocava medo e desconfiança, tanto pelo reconhecimento do poder que detinham sobre seus compatriotas, como também porque ao se dedicarem ao sacerdócio, parte de sua função era presidir os rituais religiosos, alguns deles considerados um tanto macabros por envolver sacrifícios humanos e oferendas de crânios aos deuses. Embora essas práticas ritualísticas não se limitassem ao mundo celta, já que existem indícios de sacrifícios de sangue em todo o mundo Antigo, além do conhecido costume romano de promover a diversão da população por meio de assassinatos públicos em seus anfiteatros, ao registrarem esse aspecto da cultura celta sob uma ótica de povo dominador sobre o dominado, os romanos promoveram a disseminação de muitos conceitos errôneos não apenas sobre a classe druidica, mas sobre a população celta em geral, tendo sido retratada como selvagem. Contrariando a história conhecida, as narrativas populares celtas, como lendas e sagas primitivas, descrevem

os druidas como indivíduos essenciais à sociedade, com um elevado nível de desenvolvimento espiritual, aguçado senso de justiça e uma erudição ímpar sobre os mais variados assuntos (ELLIS, 2003, p. 11-59).

Outro conceito errôneo que, conforme Ellis (1999, p. 4-5; 2003, p.189-91), persistiu por muito tempo, foi o de que os celtas seriam iletrados. Segundo o autor isso se deu pela proibição da escrita religiosa: conhecimento sagrado, a qual não se aplicava a outros aspectos sociais, sendo que muitas inscrições de calendários e documentos legais foram encontradas datando dos séculos IV e III a.C. Além disso, os celtas continentais utilizavam o latim como forma de expressão literária. Há também a escrita Ogâmica atribuída ao deus Ogham, citadas em mitos, mas não se sabe ainda quando surgiu, podendo ser uma escrita pós-cristã, tendo sido incluída nos mitos tardiamente.

Aproximadamente no início do século V, com o advento do cristianismo no mundo celta insular por meio da dominação do Império Romano, o antigo tabu que envolvia a escrita do conhecimento druídico foi superado e registros de sua filosofia foram realizados de forma histórica e mitológica, com maior ou menor grau de influência cristã. Embora muitos textos cristãos retratassem com benevolência o druidismo, utilizando-o para promover seus santos e a nova fé, e muitas lendas sobre a vida de São Patrício, patrono da Irlanda, gradativamente, a sabedoria druídica, cuja autoridade se estendia até mesmo aos grandes reis celtas, passou à categoria de bruxaria e charlatanismo. Entretanto, ao contrário do que muitos acreditam, os druidas não foram exterminados, mas simplesmente se adaptaram à nova realidade, sendo que muitos até mesmo se consagraram padres; além disso, muito locais e tradições sagradas da antiga religião, como o hábito da tonsura dos sacerdotes druidas, foram reutilizados pela fé cristã (ELLIS, 2003, p. 19; 62; 75; 79-103).

A diferenciação entre druidas e bardos pertence a uma época mais recente, o que não ocorria na sociedade celta primitiva. Na verdade, o bardo seria uma espécie de druida menos graduado que os sacerdotes. Ambos eram responsáveis por passar adiante as tradições por meio de poemas e narrativas orais. Havia escolas druidicas paripatéticas até o final do século VI na Irlanda, porém, com a degeneração do conceito do druidismo, quando os druidas já não podiam mais exercer o sacerdócio, nem o poder político, a função do poeta, ou bardo, foi a que prevaleceu. Registros mostram que até o final do século XVII ainda havia escolas bárdicas laicas na Irlanda, com sedes fixas, como uma continuação das antigas escolas druidicas, as quais ensinavam história, literatura e poesia e possuíam em seus currículos muito do misticismo pagão e conjurações mágicas (Id. ibid., p. 184-86).

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