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CAPÍTULO III – SILVIANO SANTIAGO E A AUTONOMIA DA OBRA EM

3.1 O ESCRITOR SILVIANO SANTIAGO

3.1.4 Anônimos

A última publicação literária de Silviano Santiago, o livro de contos Anônimos reúne narrativas de personagens-narradores, a maioria em primeira pessoa, sem delimitação de nomes próprios. Ao passo em que se mergulha em suas vidas e histórias, não se explicitam seus nomes.

O conto de abertura, Calendário, se posiciona como um questionamento à mecanização imposta pelos mensuradores de tempo. Engendrando uma fraca analogia entre as rotinas diárias e uma corrida de maratona, seu baixo poder crítico intenciona uma ideia de subversão aos ditames do calendário. O narrador é um homem solitário e humilde financeiramente. Seu discurso propicia ao leitor uma passagem de reflexão sobre a fraqueza das relações humanas, engenhada sob o ponto de vista de homem solitário, que se rendeu às

dificuldades dessas relações. Ao narrar sua rotina na forma de “Dias”, falando do “Dia do suicídio”, do “Dia da Amizade”, do “Dia dos brinquedos”, o narrador chega à conclusão de que está para inventar o “Dia da conversa”. Com isso, sela a inexistência desse “Dia” em suas atividades, assumindo sua desistência das relações humanas.

Frescobol também se constrói, ainda que não haja remissiva tão explícita no título, com base em uma analogia principal: o homem e a carta. O conto é todo articulado para mostrar a função de um integrante intermediador dentro de um mecanismo familiar. O narrador traça sua trajetória sempre na forma de atributos que qualificam as correspondências. Trata-se da história de uma família mestiça, descendente de ingleses suburbanos e de negros escravos. A única irmã que nasce mais negra que os demais é caracterizada como promíscua. As irmãs brancas obtêm melhor condição social, ainda que levem uma vida parca. O preconceito se personifica na figura do pai, que é negro. O narrador, que é um dos irmãos, mostra-se em favor de um discurso flexível quanto às diferenças e narra como essa sua visão foi tolhida, ao longo de sua vida, por seu pai. O rapaz revela o sofrimento decorrente da morte de sua mãe e, a partir de então, passa a procurar mulheres que supram o espaço vazio deixado pela perda da genitora. Torna-se carteiro, sempre figurando em sua vida através do papel de “leva e trás” das interações de outrem: “Depois da criação em 1969 da Empresa de Correios e Telégrafos, que substituía o DCT criado em 1931, as vagas pululavam anualmente naquele setor do recém-criado Ministério das Comunicações. Uma delas foi e é minha. Sou carteiro. Calço sapatos Vulcabrás. São baratos e duráveis, impermeáveis à água. Dispensam o uso de galocha.” (SANTIAGO, 2010, p. 49 e 50)

O narrador encerra o conto Frescobol aludindo historicamente a um dos movimentos “progressistas” da jornada brasileira, ocorrido com viés propagandístico governamental, paralelo às atrocidades dos “anos de chumbo” da ditadura militar. O advento de empresas estatais com o mote publicitário do progresso, os novos rearranjos governamentais, a mudança da capital para o centro oeste brasileiro são recuperados à memória do leitor. No conto, assim como se deu em Heranças, a historicidade no objeto literário esteve presente, confluídos numa narrativa memorialística ficcional convencionalmente executada, sem os arrojos impotentes de Stella Manhattan e O falso mentiroso.

O conto Multa, uma verdadeira novela de TV, abarca a história de um narrador que relata o sofrimento por ele causado a uma ex-namorada, filha de pais tradicionalistas. Não

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O anjo oferece ao leitor uma dose de questionamento da religiosidade na vida do ser humano. O narrador, ao relatar a influência de um pastor na vida de sua família pobre, traz ao leitor uma visão distinta do ente religioso a partir da visão do menino. É narrado em terceira pessoa e mostra como a imaginação pueril pode gerar uma experimentação religiosa mais envolvida com as reais questões do indivíduo do que a simples obediência aos ditames religiosos convencionais. O contraditório aparece na forma da visão do menino em duelo com o olhar de sua família. A construção de um narrador-garoto, em primeira pessoa, poderia ter desconcertado ainda mais o leitor, que teria “a lição” tomada pela voz daquele que normalmente aprende e não ensina.

O conto Dezesseis anos oferece a narrativa do menino que foge do excesso de proteção dos pais e, ao longo de sua vida, percebe que não consegue crescer longe desse círculo. Separação conta ao leitor a história de um imigrante nordestino que se aposenta como garçom, no Rio de Janeiro. Traz reflexões relevantes acerca da realidade de alguns imigrantes nordestinos que vieram até a capital do Brasil, fugindo da seca:

Será que a nova síndica do Richards se lembrava de que eram o dono das terras, o sol assassino e a terra árida, os três, unidos, que nos tornaram prisioneiros no torrão eleito pelos antepassados? A canção diz que chega o dia em que temos de dar adeus ao pai e à mãe, e tomar o Ita no Norte pra vir no Rio morar. [...]

Para que tomar o Ita no Norte, se é para descobrir que curral, galinheiro e cadeia, os há por toda parte e para todos os que julgamos inferiores? (SANTIAGO, 2010, p. 144 e 145)

O que se percebe após esta breve trajetória por alguns produtos artísticos do autor Silviano Santiago é um destaque para as narrativas memorialistas, como são os casos de O

falso mentiroso e Heranças e do próprio Em Liberdade. Cada um com a sua específica manobra estilística, nenhum desses dois primeiros chegou perto de alcançar a eficácia estética de EL. Ainda que tenham sido objeto de produção de um autor mais amadurecido, provavelmente, a forte presença do autor na obra limitou-as. Muito mais a O falso mentiroso do que a Heranças, vez que esse último mostrou-se um romance com potencial reflexivo

acerca do cotidiano e com uma solução formal casada com os atributos funcionais carregados de pedaços da história brasileira.

A ocorrência do homoerotismo no romance Stella Manhattan é tão fraca estética e funcionalmente quanto a pseudodiscussão de mote ditatorial. Ou seja, o que poderiam ter sido debates acerca da sexualidade homoafim, ou da ditadura militar no Brasil a partir da visão de um brasileiro residente no exterior, consistiu apenas em temas que se fizeram constar na obra, abordados sem profundidade alguma, inseridos em um todo formal fragmentado e desconexo. Não desconexo por ser fragmentado, mas por ser funcionalmente inconsistente.

E, finalmente, o apanhado de contos Anônimos mostrou-se capaz de oferecer boas narrativas acerca do cotidiano, sempre a partir de remissivas ao passado. Abarcou também fracas narrativas, mas pôde estruturar diferentes narradores em vários fios-de-meada reflexivos.

Comparativamente às obras ora resumidamente apresentadas de Silviano Santiago, Em

Liberdade aparece, em termos de qualidade, discrepante diante desse universo de trabalhos do autor. À exceção de pequenas marcas de estilo de Silviano recorrentes em todas as obras mencionadas, como, por exemplo, o uso recorrente de estrangeirismos, resta a sensação de que outro autor a escrevera. E de fato ocorreu. Outro Silviano Santiago produziu Em

Liberdade. Um autor diferente de si próprio, que deixou marcas de um outro modo de pensar, diferenciado de suas marcas enquanto escritor e crítico literário. O que se pretende mostrar a partir de agora é um pouco de Silviano Santiago, o crítico literário. Isso porque se considera que a mudança de tônica ocorre não somente na relação entre EL e as obras literárias, mas também na relação entre EL e o exercício crítico de Santiago.

Para tanto, faz-se necessário o resgate dealguns trabalhos de crítica do autor considerados relevantes para o percurso traçado neste trabalho, com o intuito de expor as discrepâncias entre o trabalho de produção de EL e seus trabalhos de crítica. Silviano autor desse romance é diferente de Silviano crítico literário.

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