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CAPÍTULO III – SILVIANO SANTIAGO E A AUTONOMIA DA OBRA EM

3.1 O ESCRITOR SILVIANO SANTIAGO

3.1.3 Heranças

Walter, no fim de sua vida, debilitado, em seu luxuoso apartamento no Rio de Janeiro, narra sua própria história. Executa um relato autobiográfico que espelha a metamorfose de

uma burguesia industrial até a sua fase especulativa. Uma nova forma do capital. Mais uma obra de Silviano com temática memorialista ficcional.

Neste romance, Silviano alcança diferente performance comparativamente às obras

Stella Manhattan e O falso mentiroso. O texto está entremeado de questionamentos acerca do processo criativo de uma narrativa biográfica ficcional. O narrador Walter, a todo tempo, indaga o seu próprio fazer autobiográfico: “Por que não colocar lá na tela do computador o rapazinho de ontem sem as roupas do ancião de hoje? Fica a pergunta.” (SANTIAGO, 2008, p. 45) A interferência do distanciamento do próprio personagem em relação aos fatos narrados propicia à obra reflexões valorosas acerca da vida de Walter, através de seu exercício autobiográfico.

Além do olhar distanciado cronologicamente, a autocrítica do narrador está também presente na tentativa de controlar seu impulso de ficcionalização dos dados biográficos. O limiar entre fato e ficção se mescla. A tendência do narrador mais velho em ficcionalizar o rapaz jovem de outrora representa não somente uma fuga da limitada situação de debilidade física em que se encontra, no âmbito do personagem, mas também espelha uma indagação acerca do próprio fazer autobiográfico, no âmbito da obra literária. Walter vê-se na forma de personagens manuseáveis dentro de uma ficção:

[...] Fiz uma análise tosca do adolescente rebelde que fui, sob as ordens de papai. Há dias em que assumo essa atitude neurótica. Não consigo penetrar na motivação que está por detrás do tratamento rude e ligeiramente irônico, que dispenso ao rapazinho. Canto a primeira pedra. O velho solitário e ranzinza de hoje não estaria travestido no rapazinho? [...] Voltar a ser o rapaz não é o melhor subterfúgio para não meter o pau no quase moribundo, em que me metamorfoseio? Estofar com ideias medíocres e baboseiras o adolescente desprovido de caráter que fui, não é a melhor maneira de eu lavar as mãos e chegar ao velho quase gagá, que sai em busca de lucidez para se despedir dos homens e do mundo? (SANTIAGO, 2008, p. 44 e 45)

O narrador que faz de si vários personagens representa uma afronta ao modo de narrar autobiográfico que se assume simplesmente como factual. Ou seja, para Walter, o fazer autobiográfico também consiste em operar elementos da ficção. A realidade, passado ou presente, é passível de recortes, de omissões, de destaques, de enxertos, de mudanças de

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opinião. A linha tênue que circunda o fato e a ficção se mescla na feitura das memórias de Walter:

[...] Você que me lê e eu já combinamos – nós dois queremos os detalhes de minha vida bem explicados. Aí os terá. Portanto, não importa se tenha de me valer de

recursos artificiais na recordação e na descrição do tempo presente. Aceite, pois, que eu busque apoio na muleta da memória voluntária. Sairemos ganhando. Garanto-lhe. (SANTIAGO, 2008, p. 59, grifo nosso)

Em prol da confecção de seu produto idealizado, a obra, o relato autobiográfico, o trabalho de escritor segue revelando-se no decorrer da obra. Ainda que o descreva, o narrador poderia simplesmente fazê-lo, sem compartilhar com o leitor suas dificuldades no decorrer do processo. E na revelação das dificuldades, percebe-se que não se trata tão somente de uma tomada de decisão por parte do autor das memórias e sim de uma armadilha da escrita. O autor, portanto, a todo tempo desvia de uma tendência ficcional que surge durante o seu fazer autobiográfico. As fronteiras atenuam-se.

Walter ancião requer cuidados de saúde personalizados e possui enfermeira. Dispõe ainda do assistente Cláudio. É um personagem que envelhecera sozinho, sem família, sem verdadeiros amigos. É muito rico, está próximo da morte e não possui herdeiros. Sua história, a do herdeiro único da herança Armarinhos S. José, revela os interesses motores de relações forjadas, voltados sempre para a produção de retorno financeiro imediato. O narrador fez-se herdeiro único à força. A precariedade da sua capacidade afetiva atinge o patamar familiar, tendo como ápice o planejamento da morte de sua própria irmã. Planejamento e prática. Filhinha, sua irmã mais velha, morre em um acidente de carro na ocasião em que fazia seu contumaz deslocamento para cidade vizinha em dias de sábado. Após a morte do pai, Nestor, Walter provoca a morte da irmã e se constitui em herdeiro único da herança de seu pai: os Armarinhos São José e a casa da família em Belo Horizonte.

Filhinha encontrava-se secretamente com Vitorino, segredo que precisa guardar em decorrência da discrepância contida na relação entre ambos: a diferença de classe. Vitorino era pipoqueiro ambulante, mulato e meio corcunda. Seu pai jamais consentiria com a relação. Não somente o pai, mas a sociedade em si. O que não fica claro para o leitor é se a motivação da provocação da morte de Filhinha restringe-se aos interesses de herança ou se o fato de sua

irmã manter relação com Vitorino também foi relevante na tomada de decisão por parte de Walter. Esse último, portanto, caracteriza-se como o indubitável “vilão da história”. Mais uma vez, Silviano peca na construção de seus personagens completamente delimitados, como o fez em O falso mentiroso.

Todavia, em Heranças, há uma solução diferenciada dada ao personagem Walter, que foge da completa delimitação que sofrera ao longo de grande parte da obra. Nos momentos finais do livro, Walter passa a narrar fato presente de sua vida. A escritura de suas memórias ofereceu motivação para reflexão acerca de suas próprias atitudes ao longo de sua vida. As decisões que tomou, as perdas que teve, os ganhos que alcançou, foram repensados.Sem nenhuma “lição de moral”. Ele então pede a seu assistente Cláudio que descubra a atual residência de Vitorino, que teria constituído família e detinha modesta casa.

Ao encontrá-lo, após contato prévio via telefone, Walter resgata a memória de sua irmã e indaga Vitorino acerca da relação que ambos tiveram. Vitorino se assusta mediante a revelação de Walter, que decide conceder-lhe toda sua herança. Para Walter, a quase-relação familiar que poderia tê-los unido motiva a concessão da herança. Essa decisão lhe proporciona conforto em seus últimos dias de vida:

Eu tinha finalmente cumprido minha missão na terra. Podia morrer tranquilo e ter o corpo encaixotado em madeira de lei pela Funerária Botafogo. Pelas mãos do agente funerário seria conduzido até Botafogo e entregue ao coveiro. O velório estava dispensado. Seria imediatamente depositado numa cova do Cemitério de S. João Batista. Ao lançar a primeira pazada de terra no buraco, que o solitário coveiro não tenha a mínima compaixão do cadáver.

Tenho uma certeza. Absoluta. Não há nada mais fervescente de vida do que os subterrâneos de um cemitério. (SANTIAGO, 2008, p. 397)

A herança de Walter, o que lhe era mais valoroso durante quase toda sua vida, deixou de ocupar esse lugar de importância depois da experiência de rememoração pela qual passara. A produção de suas memórias, que inicialmente se constituiu como o último projeto de vida de seu autor, acabou antecedendo a consequente surpresa mais importante e reconfortante: a

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doação de sua fortuna a Vitorino. Uma atitude além do planejado. Diferente de todas as que já premeditou ao longo de sua vida estritamente planejada. De fato, um imprevisto.

Sua fortuna, o resultado de inescrupuloso acúmulo financeiro ao longo de uma solitária vida, constituída sob os diferentes moldes impostos pela transmutação do capital, do comércio à especulação imobiliária; do mercado imobiliário à especulação financeira pelo capital volátil, deixa de ter sua razão, de fazer o sentido que até então fizera. Esse percurso da trajetória profissional de Walter é demonstrado na própria voz do narrador. Dessa forma, Silviano rasga o até então traje de incontestável vilão de Walter. Há, portanto, uma ruptura em relação à completa delimitação dada ao personagem, na forma de um tipo de superação do próprio Walter, a partir de um outro olhar em direção ao seu passado.

Heranças não só se mostra mais perspicaz em relação à delimitação do personagem-

narrador Walter, mas também relativamente à captura do eixo histórico que acompanhou a vida do personagem. As mudanças do ramo de atuação de Walter acompanharam o processo de transformação das relações de produção, das formas do capital multinacional no Brasil. O fio condutor histórico de Heranças acompanhou as rememorações de Walter e esse último romance de Silviano Santiago foi então capaz de oferecer alguma qualificação estética ao recorte memorialista da literatura brasileira contemporânea.

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