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CAPÍTULO III – SILVIANO SANTIAGO E A AUTONOMIA DA OBRA EM

3.1 O ESCRITOR SILVIANO SANTIAGO

3.1.1 Stella Manhattan

O cenário: Ilha de Manhattan, Nova Iorque, ano de 1969. O auge do período de chumbo da ditadura militar brasileira. O enredo é centrado em um grupo de brasileiros exilados pelo regime militar pós-64, os quais conspiravam contra o coronel Vianna, adido militar, homossexual, que veio trabalhar no consulado brasileiro sob cargo de confiança.

O personagem central da trama é Eduardo, também conhecido como Stella Manhattan, brasileiro, homossexual, que trabalha no consulado e detém relacionamento de relativa proximidade com o militar acolhido em seu local de trabalho. Da mesma forma, haja vista o grupo de brasileiros exilados enxergarem o coronel Vianna como um engendrador de ações do golpe de 64, comungam a mesma visão acerca de Eduardo, que seria uma pessoa envolvida com as práticas da ditadura, um espião que deseja infiltrar-se no grupo de brasileiros.

Ambos os personagens – o coronel Vianna e Eduardo – estão, na verdade, preocupados com sua liberdade sexual, que alegavam não alcançar quando residiam no Brasil e enxergam como possibilidade na cidade de Nova Iorque. Um coronel, em período de governança ditatorial no Brasil, não via como possível o desfrute de sua verdadeira opção sexual naquele país. Já Eduardo, um rapaz que “por temperamento e por opção de vida, não era chegado a uma solidão, ou a ficar curtindo fossa em casa” (SANTIAGO, 1991, p. 20), acabara de terminar um relacionamento e passou a frequentar atividades culturais, em Nova Iorque, ligadas ao Brasil, no intuito de conhecer pessoas.

Segundo o narrador, “para Stella, a substituição do presidente Costa e Silva pela troica militar entrava num ouvido e saía pelo outro.”(Ibidem, p. 20) O arrocho da ditadura brasileira teria motivado o comportamento paranoico do grupo de brasileiros exilados em Nova Iorque,

47 SANTIAGO, Silviano. Stella Manhattan. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. 48 _________. O falso mentiroso: memórias. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. 49 _________. Heranças. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

em relação aos citados personagens homossexuais. Como se tratava de pessoas engajadas com o cenário político do Brasil à época, passaram a olhar com maior afinco Eduardo e o coronel Vianna.

Note-se, portanto, duas possibilidades de visões acerca do personagem central da obra bem como do outro, o coronel. Este último fez-se necessário na obra para justificar o olhar de um grupo sobre Eduardo, a Stella Manhattan. A primeira parte do livro gira em torno dessa paranoia sobre dois personagens que não “mereciam” tamanha preocupação por parte do grupo de exilados. O fato é que os personagens não são exilados políticos e apresentam perfil de desapego às questões políticas brasileiras.

Poderia se esperar de tal trecho da obra que fosse atribuído ao grupo de exilados um papel mais politizado, que pudesse representar um recorte do Brasil a partir de um cenário nova-iorquino acolhedor de exilados da ditadura brasileira. A dedicação do autor a uma estética imagética, que constrói um personagem como Eduardo, exibicionista, exagerado e alienado em relação aos problemas de seu país, não se resume somente ao engenho da composição de características do personagem. Deixa transparecer uma falta de profundidade da obra.

O coronel Vianna é caracterizado como um militar completamente transplantado de uma realidade cruel da história brasileira em prol da justificativade existência de alguns personagens rasos (ainda que centrais) do livro, quais sejam, Eduardo e os brasileiros exilados51. Ou talvez para justificar um pseudo engajamento com um triste pedaço de nossa história, valendo-se de um discurso em favor da representação do homossexual na literatura brasileira. As perguntas a se fazer são: qual o sentido dessa representação? Fazer constar o homossexual na literatura brasileira? Isto seria suficiente para ensejar uma discussão lúcida sobre questões que envolvem preconceito e sexualidade? O cenário longínquo e gasoso contextualizado na ditadura militar estaria voltado para justificar engajamento? A que causa?

Entremeado à primeira parte do romance, o trecho “Começo: o narrador” consiste em um adendo á história de Eduardo. Trata-se de um segundo narrador da obra, não identificado como nenhum personagem do livro e que conversa com um terceiro, de sexo masculino, também não identificado. Ele divaga sobre vários temas correntemente. Despeja na cabeça do

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leitor uma série de comentários referentes a suas experiências pessoais bem como à história mundial, incluindo o Brasil por vezes. Esse trecho que percorre 24 páginas do livro é a parte mais interessante e a que mais apresenta caráter reflexivo.

Nesse adendo, o narrador inicia mencionando suas impressões ao se deparar com um grupo de músicos se apresentando numa estação de metrô em Paris e vai divagando sobre assuntos que rapidamente são trocados. Discute brevemente o judaísmo e a “raça” judia; cita Bob Dylan, Chico Buarque, João Cabral de Melo Neto e outros. Similar a um monólogo direcionado a um outro que não está presente, o trecho retira o leitor da história de Stella

Manhattan e oferece-lhe outra possibilidade de obra. O retorno, no entanto, é rápido.

Entra em cena, na segunda parte do livro, o personagem Aníbal, que proporciona ao leitor uma dose de veia crítica do romance. Trata-se da personificação de uma voz que se incomoda com a dependência brasileira aos ditames norte americanos. A ditadura militar brasileira pós-64, uma malha de marionete americana, é a principal crítica do personagem, que é professor universitário e cadeirante. Ainda que suas explanações carreguem forte teor preconceituoso, são através delas que se enxerga um pouco de vida no romance. Ocorre, entretanto, que o discurso do personagem é completamente isolado e deslocado de um contexto atuante e soa como um eco dentro da obra. Outra marca de pseudo engajamento? Não obstante essa visão sob uma ótica mais distanciada, da obra como um todo, há fragmentos de veia crítica que valem a pena ser mostrados, muito mais pelo avesso do que pelo o que está sendo disposto.

O professor Aníbal, a propósito da visita de um aluno em sua residência, discorre quase que em um monólogo e vai tecendo comentários ardilosos sobre a referida relação de dependência. As impressões, restritas a pensamentos não externalizados pelo aluno Marcelo, também compõem a obra e assim se configura o diálogo entre ambos. Aníbal despeja:

[...] o brasileiro só traz atos de rebeldia e até mesmo de vingança para com os mais velhos. Não há respeito pela voz do passado e da experiência. Os brasileiros só importam o que bagunça mais a incipiente cultura que criamos à dura pena. (SANTIAGO, 1991, p. 125)

A configuração eminentemente imagética também faz parte da personagem Leila, a esposa do professor Aníbal. A tentativa de adensamento da composição dessa personagem dedica-se quase que exclusivamente aos aspectos físicos de Leila, não trazendo ao leitor uma possível profundidade psicológica da personagem. O voyeurismo que alicerça a relação do casal é todo construído com base na descrição física de Leila, que pita doses eróticas ao romance.

A relação do professor com sua esposa não se aprofunda na obra. E logo em seguida ambos saem de cena para abrir espaço para o retorno do personagem Eduardo, a partir da terceira parte do livro e até sua conclusão. Não há uma relação formal literária entre as partes. O que se percebe é a presença de um eixo temático que aproxima os núcleos dos personagens Eduardo e Aníbal: o pano de fundo da ditadura brasileira com a dependência externa. O elo dá-se pela contraposição: ao passo que Eduardo não se atém aos aspectos políticos, Aníbal os enxerga de longe.

Os trechos do romance que giram em torno do personagem Eduardo, os quais apresentam uma ligação discursiva com a situação histórica da ditadura brasileira vista de um ponto de vista exterior, evidenciam os próprios distanciamentos em si: a distância física e o esquecimento, o desapego. Tanto o coronel como Eduardo se desapegaram da realidade ditatorial brasileira. Não por retaliação, mas por alienação. O romance oferece uma solução rasa a essa questão.

Por outro lado, a relação ditadura-dependência externa possui, em sua outra ponta, o personagem Aníbal. Este último, ao representar o elemento que propicia a discussão da dependência externa, consiste em uma solução temática, mas não formal. A ligação temática da citada relação é facilmente percebida enquanto pressuposto histórico. Mas quando isso aparece enquanto elemento interno do romance Stella Manhattan, a desconexão é evidente. Silviano não conseguiu articular tais elementos externos em uma relação formal consolidada. Ambos estiveram estanques no romance. Separados em partes do livro, blocados formalmente e desconexos literariamente. Arrisque-se dizer que o romance poderia vir a ser desmembrado em três contos, tal se enxerga a desconexão entre as partes.

A falta de densidade histórica do romance pode levar o crítico a pensar que o pano de fundo histórico não passou de mero cenário para a evidenciação dos caracteres imagéticos que

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estruturam o livro. As folhas dedicadas às descrições de imagens desconectadas com o pano de fundo histórico da obra são recorrentes.

O passo que Silviano dá ao centralizar no romance um personagem homossexual, na tentativa de se alinhar a uma preocupação com um discurso marginal na literatura, o homoerotismo, volta atrás em decorrência do alheio à historicidade. Vale ressaltar que esse alheamento não se dá em decorrência da necessidade de uma narrativa fiel à história. A questão está no fato de o homossexual estar situado em um espaço composicional ausente de historicidade, podendo vir ser deslocado ao outro espaço-tempo facilmente, sem prejuízo da obra. Registre-se inclusive que a preocupação com a representação do homossexual não deveria concorrer com a historicidade da obra. Historicidade apagada em favor de um discurso pró-grupo marginalizado. Qualquer discurso – independentemente de sua natureza – deveria estar situado histórico-literariamente. Não se trata de enquadrar um discurso como sendo mais importante ou necessário em demérito de outro. A questão não gira em torno da importância temática. Este apontamento indica uma fraqueza da obra em não articular esses aspectos, que não devem se anular, que não são concorrentes.

Não há que ser alienados ao oposto (e ingênuos, inclusive) por achar que, porque era ditadura, a produção artística tinha que abordar o tema, engajar-se e posicionar-se contra. A cultura foi um dos objetos de veiculação das propagandas ditatorial e, posteriormente, liberal. E nem há que ser preconceituosos e desprezar a representação do homossexual só por assim ser. Ocorre que um texto não representa uma práxis somente em decorrência do tema selecionado. Se a literatura pode ser práxis, de que o leitor de literatura contemporânea pode estar sendo poupado ao se deparar com algumas obras? Do exercício da crítica pela literatura. Esse vazio foi enxergado no romance Stella Manhattan.

O romance, portanto, mostra-se fragmentado formalmente e constituído a partir de uma solução histórica artificial. Há que se ressaltar que o problema não é a fragmentação, mas sua desconexão formal. EL é fragmentado, mas está entremeado por um fio condutor histórico-literário carregado de intencionalidade do autor e de autonomia da obra. Sua fragmentação tem razão literária de ser. Fica a impressão de que toda a força histórica vinculada à capacidade criativa de Silviano esgotou-se na produção de EL. O eixo temático de ambas as obras, relacionado com a ditadura militar brasileira, foi energicamente representado na primeira, EL, e deliberadamente apagado na segunda, Stella Manhattan. E como não se pretende ater-se puramente às questões temáticas, ressalte-se a possibilidade de um todo

literário fragmentado como o romance EL, constituir-se intimamente relacionado com seus próprios recortes formais bem como com o fio condutor histórico que perpassa toda a obra, não fazendo da ditadura um simples pretexto histórico para a inserção quantitativa de uma temática homoerótica na literatura brasileira contemporânea.

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