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CAPÍTULO III – SILVIANO SANTIAGO E A AUTONOMIA DA OBRA EM

3.1 O ESCRITOR SILVIANO SANTIAGO

3.1.2 O falso mentiroso

O falso mentiroso é um romance em primeira pessoa, no qual o narrador Samuel registra sua história de vida. Em meio a várias quebras cronológicas, aos registros desgovernados de sua memória que resgata após os seus sessenta anos de idade, o narrador personagem rememora seu passado.

Não obstante o caráter autobiográfico do relato, o narrador é ironicamente construído por Silviano Santiago na figura de um elemento onipresente, semelhante a um narrador em terceira pessoa, que tudo vê, sobre tudo opina. Sua capacidade de rememoração alcança passados dificilmente resgatáveis. Sua forma aguda de trazer à tona os episódios de seu nascimento, seu abandono pela mãe biológica, sua adoção por uma família desestruturada psicologicamente ainda que estruturada financeiramente, evidencia um caráter distanciado de Samuel em relação à sua história de vida. Ou seja, Silviano constrói uma narrativa de caráter biográfico deixando transparecer uma relação de distanciamento entre o narrador e sua própria história de vida, como uma tentativa de caracterizar uma superação do personagem.

Os pontos de artificialidade dão-se no decorrer da obra, em meio às rememorações frias e emblemáticas do personagem Samuel. O dia em que deixa a maternidade, com dezenove dias de vida, é um exemplo:

Não me despeço de mamãe. Será que ainda está por aqui? Posso olhar, pensar, chorar, ainda não posso falar. Abro o bué. [...]

Sou transportado de ambulância para a casa dos meus pais. Os falsos.

A enfermeira menos graduada me entrega na porta dos fundos da casa de Copacabana. Como carrocinha, que entrega pão e leite em domicílio. “Padeiro!”

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recebidos pela cozinheira. Madrugadora. Satisfazem a fome matinal dos burgueses, sem despertar os dorminhocos.

Cheguei depois do pão e do leite. (SANTIAGO, 2004, p. 43)

A solução formal dada por Silviano para a incompatibilidade narrativa de Samuel conseguir lembrar-se e contar o fato ocorrido em seu décimo nono dia de vida é a atribuição das características de um narrador em terceira pessoa a um narrador em primeira. O resultado é conjugado com toques de ironia do narrador e empacotado como um romance que se faz crítico da burguesia. Ocorre que o fato de Samuel não se enxergar o mesmo burguês que eram seus pais, “os falsos”, pelo fato de ter sido de origem humilde e abandonado pela mãe biológica, é manobra do autor para colocar esse personagem em posição privilegiada e legítima para criticar o retrato burguês que evidencia.

Samuel, adotado clandestinamente por família abastada, foi um dos caprichos de sua mãe, sempre prontamente atendidos por seu pai, desde que se pudesse alcançá-los por intermédio do dinheiro. Por ser infértil e rica, sua mãe sofria com os pérfidos comentários de suas irmãs pobres e férteis.

O personagem é constituído por uma problemática em sua identidade. Por ter sido vendido aos verdadeiros pais, ter tido sua própria data de nascimento alterada, ter sido menosprezado pelo pai adotivo, sua identidade em relação à família e/ou ao círculo social a que se atrelava fez-se fragilizada, resultando em um ser frio relativamente à sua própria história: “Vou mexer em história de enjeitado. Fede à distância.”(SANTIAGO, 2004, p. 49)

O pai de Samuel, Eucanaã, casado com Dona Ana, detinha várias amantes, as quais, frequentemente, engravidava. Até então, sempre geraram meninas. Seu pai as oferecia para adoção a sua esposa, que as enjeitava alegando querer um filho homem. Assim que uma de suas amantes pariu um garoto, Eucanaã pagou uma das enfermeiras do hospital para que ela o entregasse em sua casa. Após adulto, com o pai recém morto, Samuel encontra a enfermeira que o vendeu a seu pai e esta última conta-lhe as peripécias conjugais do mesmo, que dispensava uma mesada à enfermeira, em troca da manutenção do segredo, até o dia de sua morte.

Os personagens, portanto, são bem delimitados, não apresentando as tenuidades entre limiares que perpassam as contradições inerentes ao ser humano: Samuel é incondicionalmente frio; Eucanaã é indubitavelmente traiçoeiro; Dona Ana é inquestionavelmente a mulher enganada; a enfermeira é indiscutivelmente aproveitadora. Cada um em seu papel: as vítimas, os agentes traumatizantes. A história esdrúxula, construída sob o alicerce da frieza nas relações humanas, motivada pelo interesse pecuniário impulsionador das dinâmicas sociais.

Trata-se; de um cenário burguês, de falsidade, de mentiras, a partir do qual setorna mais simples engendrar uma crítica à sociedade. O que poderia vir a ser um questionamento dos limites da representação memorialista não alcança tal funcionalidade em decorrência da fraqueza estrutural do livro. Algumas perversões da sociedade burguesa estão exageradamente dadas na obra e, a partir delas, o autor constroi uma tentativa de indagação sobre as práticas da representação memorialista na ficção contemporânea brasileira, coloca-se aquém de um questionamento das estruturas burguesas no Brasil.

As quebras cronológicas da obra que, primordialmente, causam certa confusão no leitor, secundariamente, poderiam abrir uma discussão mais aprofundada sobre a representação ficcional memorialista. Entretanto, a obra não avança muito nesse ponto. Conjugando o espontâneo com o artificial, a combinação dosa muito mais para a segunda tendência e perde sua força formal. Se as quebras cronológicas poderiam significar uma confusão narrativa, a dificuldade em rememorar, essa tentativa causa muito mais uma confusão desfuncional no leitor, dada a artificialidade das rememorações registradas na narrativa. Não se defende, entretanto, que o narrador que confunde o leitor representa uma falha estética da obra. O que ocorre em O falso mentiroso é que a confusão, que deveria estar ligada à dificuldade de resgate das lembranças, dá-se de maneira estancada na obra, aparece desconectada de tal função. Fica mais relacionada à “pura” intencionalidade de “enganar” o leitor, de fazê-lo passar pelas dificuldades de se relembrar, sem conectá-lo a um possível questionamento dos valores da sociedade burguesa. Forma e função aparecem desconexas entre si, incoerentes.

Samuel debocha de sua própria história de vida. Expõe todas as perversidades de seu pai. Narra cansativas passagens da ilimitada dubiedade de caráter de Eucanaã, na tentativa de desenhar a genealogia de sua existência. Desenha o sofrimento de sua mãe, relaciona-o com

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falsa relação conjugal; falsos sentimentos; falsas opiniões; falsas relações. O jogo presente no próprio nome da obra, “falso mentiroso”, permite dúbias possibilidades de “verdade”. Se o mentiroso é falso, ele pode dizer a verdade. O tecido de falsidade joga com a verdade do relato ficcional, que é plural, não pode ser una.

Em EL é perceptível o esforço voltado para o questionamento dos limites da ficção a partir de um “falso” relato autobiográfico. Ocorre que, nesse romance, a historicidade das discussões está fortemente presente, entremeada aos aspectos formais. A história preenche o arrojo formal que Silviano executa. Em O falso mentiroso o espaço histórico é vazio. Mais uma vez, agora já livre da temática ditatorial, percebe-se esgotada a possibilidade de questionamento dos valores de uma sociedade que amparou a existência do personagem Samuel. Por mais que o autor deseje fazê-lo, a matéria social estrutural permanece intocada.

Se o pai de Samuel, com todos os seus valores, alimentou sua existência sôfrega e parca de relações humanas, a motivação construída por Silviano nesse cenário restringe-se ao âmbito pessoal, individual do personagem. Os personagens de O falso mentiroso estão destituídos de caracterização no espaço-tempo que ocupam. Não foi permitido, através da obra, identificar as condições históricas constitutivas do recorte dessa narrativa ficcional. As culpas estão simplesmente nas pessoas que sofrem e fazem sofrer. As marcas são exclusivamente pessoais. A história não foi “responsabilizada” e não está relacionada com as questões individuais.

Ocorre que, nas ocasiões em que Silviano desenha sutis marcas históricas na obra, elas não possuem fôlego para deixar ver fundo histórico-estrutural algum. Se “a contradição está na cabeça do observador” (SANTIAGO, 2004, p. 74) e não nas coisas em si, caberá àquele que as narra deixá-las serem vistas. Essa opção para o leitor não foi dada pelo autor de O falso

mentiroso.

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