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C APÍTULO 1: A SITUAÇÃO PROBLEMA

1.1. Porque Pesquisar UCs de Uso Indireto na Amazônia Brasileira?

1.1.2. O anacronismo das análises normativas

Percebe-se assim, a partir dessa breve, parcial e incompleta problematização da terminologia e de alguns de seus fundamentos, um primeiro embaraço em que o analista se vê enredado: o emprego dos termos unidade de conservação - ou área protegida - e uso indireto - ou proteção integral - de um modo trans-histórico e transcultural. Este emprego é o que caracteriza as análises sobre as UCs produzidas no âmbito mesmo do conservacionismo. Ainda que vá discutir esse ponto de modo mais detido no Capítulo 2, quero destacar algumas formulações recentes a título de elucidar uma questão que me parece fundamental para a construção mesma do objeto da tese.

O manual que resultou dos talleres sobre manejo de áreas protegidas nos trópicos realizados durante o 3o Congresso Mundial de Parques Nacionais e Áreas Protegidas, em Bali, na Indonésia, em outubro de 1982, destaca, em sua introdução, um edito para a proteção de animais, peixes e bosques, promulgado pelo imperador Asoka,

da Índia, em 252 AC, como “el registro documentado más antiguo de una intención deliberada para estabelecer lo que hoy llamamos áreas protegidas”. Acrescenta, contudo, que “la práctica de reservar áreas como santuarios religiosos o como cotos exclusivos para la cacería es mucho más antigua, y la tradición se ha mantenido en una amplia variedad

de culturas hasta hoy en día” (MacKinnon et alii 1990, 1; ênfase minha).

O já referido documento do GT Temático “Contribuição para a Estratégia de Conservação in-situ no Brasil”, constituído pelo PRONABIO do MMA, afirma que

Um dos mecanismos mais tradicionais utilizados no mundo para a conservação de biodiversidade é o estabelecimento de um sistema de unidades de conservação, geralmente parques e reservas, acrescidos de áreas em outras

categorias de manejo, protegendo frações de ecossistemas naturais sem a interferência do homem. [...]

Apesar de se tratar de um instrumento bastante antigo no trato dessas questões, a expansão do número de áreas protegidas no mundo foi considerado como uma

estratégia particularmente vital para a conservação dos recursos naturais do planeta a partir do III Congresso Mundial de Parques, realizado em Bali em 1982

[Fonseca, Rylands e Pinto 1998, 1; ênfase minha].

Em se tratando de documento elaborado por técnicos e especialistas de distintas nacionalidades, não se deve estranhar o emprego intercambiável dos termos UC e área protegida. Mais significativo, entretanto, é a preferência já anotada (cf. nota de rodapé no 1) pela conservação da diversidade biológica in situ e a indicação das áreas

protegidas e dos sistemas de UCs - em especial as de proteção integral, “geralmente parques e reservas” - como “mecanismo”/“instrumento”/“estratégia vital” “tradicional” e “bastante antiga” para lograr aquele objetivo. Assim, para os formuladores da

Estratégia supra, as UCs são não só o “pilar central” da mesma, mas também uma ferramenta de relevância mundial e histórica “no trato dessas questões” - quais sejam, as de conservação da biodiversidade.

O anacronismo reside em admitir que os protagonistas da criação de diferentes tipos e formas de reservas e áreas protegidas em tempos idos, o fizeram tendo em vista especificamente a conservação da diversidade biológica in situ - admitindo-se, pari

passu, que este é um problema - uma “questão” - de há muito colocada para as

diferentes sociedades humanas. Imputa-se àqueles protagonistas a consciência e o conhecimento de que as suas ações - e o objeto destas - redundariam necessariamente nos atuais sistemas nacionais de UCs.

Há autores como Kenton Miller9 que caracterizam a distinção entre os conceitos

de conservação da biodiversidade e dos recursos biológicos como simples

desdobramento e especificação do conceito agregado de conservação da natureza, por uma separação dos seus componentes (Miller 1998, 11-12). Isso lhe permite ver formas embrionárias das atuais áreas protegidas nos “acordos culturais” que, ao longo de “milhares de anos”, vários povos estabeleceram “para manter vedado o acesso a certas áreas”. Ademais, que esses “acordos culturais”, interdições rituais e/ou eventuais outros mecanismos sociais para vedar, regular ou controlar o acesso a certas áreas, se

fundamentem, via de regra, em razões de ordem propriamente simbólica - valores culturais, míticos, religiosos, estéticos e políticos -, parece importar menos que os seus “efeitos práticos”10: “uma forma implícita de auto-regulação que impedia a exploração

excessiva [dos recursos que são apropriados], com vistas a períodos críticos [relacionados ao seu ciclo reprodutivo]” (4; ênfase minha). O fato de vários povos reconhecerem “valores especiais ligados a sítios geográficos e tomar[e]m medidas para protegê-los” (3), e instituírem “uma rede de sítios especiais dentro do que consideram seus territórios” (4-5), seria um indicador manifesto da antigüidade, tradicionalidade e universalidade deste instrumento/mecanismo de conservação da natureza - ou dos componentes embutidos nesta: a biodiversidade e os recursos biológicos.

Desse modo, expressão da preocupação universal - ainda que implícita, latente, não consciente - com a conservação da natureza, as áreas protegidas são figuradas no âmbito do conservacionismo como práticas instrumentais que datam de longo tempo e encontradas em variados universos culturais. A “nossa” contribuição específica teria sido explicitar e especificar seus objetivos latentes, burilar os princípios da sua aplicação e definir melhor o foco e o objetivo desse instrumento11, numa perspectiva

evolucionista unilinear. Enfim, estaríamos diante um processo de inovação tecnológica, tal como figurado pelos estudos convencionais sobre o tema (cf. Pinch e Bijker 1989). À luz dessa perspectiva, uma investigação sobre as UCs de uso indireto em particular, que vieram a ser criadas por país determinado, em dada região sob a sua jurisdição política e administrativa, e em momento histórico específico, seria apenas mais um capítulo do desenvolvimento quase que imanente desse artefato. Não obstante, julgo ser possível

9

Conservacionista cuja importância para o desenvolvimento de estratégias de conservação e sistemas nacionais de UCs na América Latina e no Brasil, pela ascendência que teve na formação de recursos humanos e na definição de metodologias de planejamento, será objeto de análise no Capítulo 3.

10

Para usar os termos de Roy Rappaport (1987) ao analisar a função latente dos rituais tsembaga. 11

demonstrar rupturas e descontinuidades que justificam a autonomia metodológica concedida ao objeto aqui enfocado.