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C APÍTULO 2: E SBOÇO D E H ISTÓRIA S OCIAL D AS Á REAS N ATURAIS P ROTEGIDAS

2.2. O Experimento Brasileiro: o problema florestal e os parques nacionais como documentário e espécimes do país

2.2.3. Nacionalismo, recursos naturais e os primeiros parques

As décadas de 1920 e, principalmente, 1930 caracterizam-se por uma enorme

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O próprio Serviço Florestal, a Inspetoria de Águas e Obras Públicas do Ministério da Viação, os Jardins Botânicos estaduais e outros. Note-se que, segundo Dean (1996), o efeito imediato da criação do Serviço Florestal foi a troca da placa do Horto Botânico da capital federal, tendo ele se limitado, num primeiro momento, apenas a arborização da cidade. Ele teria o seu regimento interno aprovado apenas em 1928 e só paulatinamente ele estenderia a sua malha administrativa para abarcar os demais hortos botânicos do país para constituir uma rede.

produção legislativa e pela criação de um conjunto de instituições vinculadas à gestão dos recursos naturais (Dean 1996 e Drummond 1997a). O ano de 1921 marca a criação do Serviço Florestal e a primeira menção da categoria parque nacional num dispositivo legal. Em 1934, além de uma nova Constituição Federal, foram promulgados os

primeiros “Códigos” Florestal, de Águas e Minas, e de Caça e Pesca. No mesmo ano, criou-se o Conselho Florestal Federal - por determinação do Código Florestal - e os Serviços de Saúde Vegetal e Animal, e de Irrigação e Reflorestamento do Ministério da Agricultura. Um ano antes havia se instituído a fiscalização das expedições artísticas e científicas no Brasil (cf. Grupioni 1998).

A Constituição Federal de 1934 introduziu na legislação brasileira a categoria de

monumento público natural, enquanto que o Código Florestal de 1934 introduziu a

noção de área reservada - ainda que de forma limitada - reconhecendo naquele momento três categorias básicas: parques nacionais, florestas nacionais, estaduais e municipais, e florestas protetoras. A responsabilidade pela administração dessas áreas coube ao Serviço Florestal. Este foi criado em 1921 como “seção especial” do

Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, com o objetivo de conservar, beneficiar, reconstituir, formar e aproveitar as florestas. Pelo Decreto-Lei no 982 de 23.12.1938, o Serviço Florestal ficou subordinado diretamente ao Ministro de Estado da Agricultura, sendo integrado pela então Segunda Seção do Serviço de Irrigação,

Reflorestamento e Colonização do Departamento Nacional da Produção Vegetal, qual seja, a de Reflorestamento e Hortos Florestais, e pelo Jardim Botânico do Instituto de Biologia Vegetal do mesmo Departamento. Percebe-se que o serviço Florestal, na verdade, reordenou administrativamente instituições pré-existentes. Em 1939, com a aprovação de seu regimento, teve a sua Seção de Parques Nacionais criada.

Pode-se dizer que esse conjunto de medidas suprareferido, proposto e adotado no governo Vargas, objetivava tanto uma ordenação territorial quanto uma estrita regulamentação do uso e da apropriação dos recursos naturais, colocados sob a propriedade do Estado. A “hemorragia legislativa” (Dean 1996) verificada nesse período expressaria uma tentativa de inibir a propriedade privada sobre os recursos naturais - flora, fauna, água e minérios - existentes no país, de dissociar o conjunto de recursos naturais do país das forças do livre mercado e teria sido influenciada por preceitos de uso racional dos recursos naturais (Drummond 1997a).

É importante sinalizar que essas medidas foram tomadas num contexto histórico e social de transição do liberalismo para a ampliação do papel do Estado na condução

da modernização capitalista do país e na articulação, centralizada e autoritária, de sua unidade nacional (Costa 1988, 45). Elas respondem, em parte, a demandas do meio científico e de setores da sociedade civil - clubes de excursionistas e associações de caráter diverso. Em 1934 a Sociedade dos Amigos da Árvore em pareceria com a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres realizam a Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza, como forma de pressionar o governo pela promulgação do Código Florestal. Resultaram no fortalecimento - formal, pelo menos - do controle estatal sobre os recursos naturais.

Dean (1996) argumenta que, em termos da relação entre Estado e sociedade civil, tamanha produção legislativa e institucional teria provocado o refluxo da

sociedade civil. Drummond (1997a), por sua vez, observa que o Estado, ao antecipar-se à capacidade de reivindicação da sociedade civil, tendeu a desmobilizar o exercício da cidadania no que concerne à gestão dos recursos naturais. A ciência, por sua vez, estava institucionalizada no aparelho de Estado. Assim sendo, o lobby científico sofria de limitações estruturais como força de pressão, pois, sendo as instituições científicas governamentais, os cientistas eram funcionários do Estado.

A segunda metade da década de 1930 também assistiu à organização da proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional, e à criação dos três primeiros parques nacionais brasileiros: Itatiaia (1937), Iguaçu e Serra dos Órgãos (1939) - todos na região sudeste. A ênfase, sugere Dias (1994), concentrou-se na proteção de ecossistemas de grande valor estético e/ou cultural - os “monumentos públicos naturais”.

O Parque Nacional de Itatiaia é criado no mesmo ano em que se institui o Estado Novo Getulista e o seu caso parece exemplar dos parques criados nesse período no sudeste do país. Serrano advoga que a instalação do Parque apenas formaliza um

estatuto para práticas já tradicionais na região do Itatiaia. Partindo da literatura francesa, ela se refere à “invenção” do Itatiaia, o lugar e o Parque, como “um processo que

monumentaliza o seu espaço, distinguindo-o de outros através de um movimento silencioso de repetição, de um lento amadurecimento, de um ‘trabalho do imaginário social e da norma para torn[á-lo] próprio ao exercício de uma tecnologia’” (Serrano -

d’après Michel Marié - 1993, 6). Sua etnografia é a de um processo de atribuição de

sentidos ao espaço do Itatiaia e ao estar neste espaço, ou seja, da transformação de

espaço em lugar (163).

Entre os “modos de conhecer e conquistar o Itatiaia”, “os diferentes momentos, artifícios e mediações da invenção do Itatiaia enquanto lugar exemplar da natureza”,

Serrano busca desde o aparecimento da região na corografia, na cartografia e na

literatura científica, passando por um levantamento histórico das forma de ocupação do local ao longo do tempo, em que vestígios das atividades humanas anteriores à criação do parque são buscados até chegar ao movimento para a proteção do maciço (Serrano 1993, 7-8). Destacam-se, aí, as polêmicas em torno da altitude do pico e da sua ascensão por diferentes freqüentadores, e a sua apropriação como estação de lazer e de repouso curativo. Segundo ela, tratam-se de posturas e visões sobre a natureza e de um regime de freqüentação condizentes com as práticas e imagens rotineiramente associadas aos parques nacionais. É assim que ela observa, a partir de relatos e narrativas históricos, e de fichamento dos livros de visitantes, que muito antes da delimitação do Itatiaia como espaço protegido da intervenção humana pelo trabalho – ou seja, da sua transformação em parque nacional – é possível falar de “sua apropriação enquanto paisagem, lugar de lazer e virtudes curativas, e de estudo científico”, ou seja, de diferentes modos de estar no Itatiaia e de múltiplos olhares sobre a montanha63 (Serrano 1993, 114 a 116) que

“preparam o terreno” para a criação do Parque.

Serrano observa que, no caso do Itatiaia, os argumentos em favor da criação do parque seguem uma linha diversa daquela verificável nos debates sobre a criação dos ParNas norte-americanos. A novidade é a ênfase sobre a relevância científica. É

interessante notar que nas conferências e textos do jornalista austríaco José Hubmayer e de Paulo de Campos Porto, naturalista do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, se enfatiza que seria de “grande alcance científico reservarem-se terrenos desnecessários ao

Núcleo [ou Colônia] Itatiaia para o estabelecimento de um parque nacional” (apud Serrano 1993, 145-6; ênfases minhas). A semelhança dos proponentes dos primeiros parques norte-americanos, há um esforço por descaracterizar a importância econômica e utilitária imediata do Itatiaia.

Antes de tornar-se parque nacional, o Itatiaia foi uma reserva florestal –

inexistindo documentação satisfatória que ajude a esclarecer quando e de que modo isso foi feito64 - e depois uma estação biológica subordinada ao Jardim Botânico do Rio de

Janeiro. Serrano observa que isso vai dotar o lugar de características mistas de horto, jardim e reserva de recursos no sentido estrito do termo (149), mas onde, ao mesmo

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Já vimos como a imagem de montanha é especialmente significativa em termos da estética do transcendentalismo.

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O primeiro relatório do Ministério da Agricultura Indústria e Comércio a trazer informações sobre a Reserva Florestal do Itatiaia é o de 1922, onde se menciona a existência de dependências para estudos de biologia vegetal, aclimação em geral e silvicultura.

tempo, se verifica o surgimento e a consolidação de uma rotina turística (152) – como já sinalizamos para diversas outras áreas reservadas desde o século XIX

Serrano também não deixa de observar que a tradição oral sobre os primeiros tempos do parque guarda histórias sobre supostos interesses estratégicos que área teria tido para o movimento constitucionalista de 1932. O planalto do Itatiaia teria

eventualmente “servido de posto de observação do movimento das tropas paulistas no Vale do Paraíba”. Conta-se também da abertura de uma estrada dando acesso ao

planalto para um possível plano de fuga de Vargas, envolvendo também a construção de uma barragem para pouso de hidroaviões (Serrano 1993, 154).

Enfim, a fundamentação do Decreto de criação deixa claro que, antes de ser baixado, já havia um parque “pronto”, tanto em termos da sua invenção como lugar exemplar, quanto do ponto de vista da estrutura administrativa e das rotinas turística e científica. A criação também foi favorecida pelo que representava de “facilidade de execução” (Serrano 1993, 157). No caso do Itatiaia, portanto, segundo o argumento de Serrano, “a preexistência de uma situação efetiva de parque, traduzida no

reconhecimento de seu valor simbólico, estético, lúdico e biológico” teria sido marcante em sua escolha como lugar a ser protegido, do mesmo modo que a situação de domínio público da quase totalidade de suas terras e o seu interesse estratégico (158-59).

Veremos no próximo capítulo que a criação das UCs de uso indireto na Amazônia brasileira diverge radicalmente desta situação. Ainda que se perceba – nos casos do Jaú e de Anavilhanas - sinais incipientes de apropriação localizada dessas áreas pela visitação turística e pela pesquisa científica, é a decretação delas que vai

estabelecer a sua “vocação” – e não o oposto, como indica Serrano para o Itatiaia. A rigor o estabelecimento das UCs de uso indireto aqui enfocadas representa uma ruptura com as modalidades de apropriação tradicionalmente obtidas nas áreas em que se projetam. Trata-se, antes, como sugere Neumann (1998), de uma imposição de uma paisagem de consumo sobre uma paisagem de trabalho65. Essa mudanças já se mostram

significativas na criação dos primeiros parques no Centro-Oeste do país.

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Justiça seja feita, Serrano também aponta, a partir dos registros nos livros de visitantes do ParNa do Itatiaia, que são raros os momentos em que se faz referência à presença humana. A presença e o trabalho humanos diluem-se “no olhar previamente armado pelo interesse estético ou científico” (Serrano 1993, 124). A oposição ideacional entre o mundo do trabalho e o refúgio seguro em um ambiente natural prepara o terreno para a invisibilização da presença e da transformação humanas operadas nessas áreas.

2.2.4. A década de 1960: o espectro da marcha para o oeste e os parques