• Nenhum resultado encontrado

4. Construção dos casos clínicos

4.1 Caso clínico: Pedro

4.1.4 Analista e/ou intérprete?

A passagem do português oral para Libras se dá por meio da interpretação. A palavra interpretar pode adquirir vários significados, tais como, dar sentido a algo, passar de uma língua a outra ou representar um personagem. É uma posição de quem sai de seu lugar original para falar e sempre há algo que se perde nessa passagem e, também, algo que se acrescenta.

O profissional que realiza a interpretação da língua de sinais em palestras públicas ou no ambiente escolar, por exemplo, é um intérprete. Ressalto que não possuo formação de intérprete da língua de sinais, apesar de possuir conhecimento sobre a língua. A questão é: eu assumi a posição de quem interpretava para a mãe o que o filho dizia e vice-versa? Acredito que para pensar sobre esta indagação é necessário analisar qual o lugar ocupado pela Libras na relação transferencial desta família na análise.

Percebi um risco de assumir, durante os atendimentos, o papel de quem trazia uma língua, que tentava suprir o que faltava na relação da criança com a mãe. E ainda, estar na função de dar conta do descompasso da língua, diminuir o desencontro, mas sem deixar de considerar

que nenhum encontro é perfeito. Havia um pedido de legitimação da língua de sinais pela mãe para que ela a aceitasse como possível e capaz de transmitir o que ela trazia de singular (lalangue) para o filho. Eu trazia um código capaz de dar algum contorno para o irrepresentável. A mãe disse que Pedro associava a minha presença com a Libras e quando chegava o dia do atendimento ela precisava dizer que “hoje é dia de Libras em casa”, para ele entender que eu iria. Quando os atendimentos passaram a acontecer na clínica, o significante utilizado pela família era “dia de Libras”.

A Libras esteve desde o início marcando esta relação e ocasionando movimentos e mudanças de posição. Pedro identificava o dia da análise como o dia de “Libras em casa” e a mãe dizia o quanto aprendia Libras a cada vez que nos encontrávamos. Ela demonstrou frustração com a possibilidade de encerramento das sessões, pois estas eram para ela momentos destinados a circulação/permissão da língua de sinais. A análise possibilitou um lugar para a língua de sinais naquela família. No princípio as perguntas quanto ao significado dos sinais eram frequentes: “o que esse sinal quer dizer?” ou “como dizer isso em Libras?”. E a analista interpretava. Esse movimento de interpretar não era uma mera transmissão de significados ou ensinamentos de vocabulários. Para além disso, percebi que o uso da língua de sinais na relação analítica causava furos e permitia que Pedro aparecesse enquanto sujeito de desejo.

A língua de sinais permitiu que o equívoco aparecesse na relação mãe e filho. Antes a mãe dizia poder prever o que filho queria e, Pedro, na verdade não podia desejar, apenas tinha suas necessidades básicas satisfeitas, como dormir e comer. A mãe não metaforizava as demandas do filho e não se enganava com o que ele queria. O uso da Libras por Pedro, na análise, permitiu que a mãe surpreendesse com cada falar ou atitude do filho e começou a se perguntar o que o filho poderia querer dela. Assim, por exemplo, percebeu que Pedro

trapaceava na hora de comer para escolher o que do prato comeria quando ela não estava olhando. Dessa forma, o saber da mãe foi questionado e o desejo de Pedro apareceu.

As perguntas sobre o significado dos sinais diminuíram até quase se extinguirem. Sônia, em algumas sessões, quase não falava e permanecia olhando Pedro contar histórias. Pedro foi deixando a necessidade de mostrar o quanto sabia sobre o vocabulário de Libras e apresentava para nós, eu e sua mãe, um novo corpo. Um corpo que dizia por si mesmo sem antes precisar da autorização do olhar da mãe e, enquanto dizia sobre suas aventuras, falava sobre sua fantasia e desejo.

Em uma sessão contei para Pedro que eu possuía um sinal/nome dado pela comunidade surda e que me identificava. Ele o repetiu diversas vezes e contou que os irmãos e o padrasto possuíam sinais. Então lhe perguntei se sua mãe também possuía um sinal e ele calou-se. Pedro olhou para a mãe, fazendo os sinais de “não sei” e “o que fazer agora?”. Sônia disse que Pedro não lhe deu um sinal e que ele, quando mais jovem, pronunciava a palavra mãe. Contudo, tal pronunciamento foi silenciando-se e hoje não diz “mãe”. Relatou que Pedro, para chamá-la, emite um som alto sem discriminação.

Fiz para Pedro o sinal genérico de mãe e ele reconheceu que a mãe poderia ser chamada assim. Porém, esta mãe não era anônima e genérica, ela precisava de um nome próprio. Sendo assim, começamos em conjunto a soletrar o nome da mãe em Libras. Pedro também pediu para escrevê-lo e tal ação repetiu-se diversas vezes.

Na sessão seguinte (décima segunda sessão), a demanda por um nome para a mãe surgiu novamente e nós (eu, Pedro e Sônia) começamos a soletrá-lo. O “S” do nome da mãe era o que mais Pedro repetia, esquecendo-se das demais letras. Logo, esse ‘S” que insistia foi o início da construção de um nome para a mãe. Enquanto o “S” era dito por Pedro, Sônia sorria e demonstrava satisfação. Foi então que a covinha do sorriso da mãe foi apontada por

Pedro e o nome, enfim, se formou: a letra “S” junto à covinha da mãe. Sônia renasceu como mãe. Nesta operação, o objeto a caiu, enquanto objeto causa de desejo.

Objeto a como condição de aparecimento do desejo, vem no lugar do falo perdido da mãe, no momento da castração e divisão do sujeito que, como aponta Freud, é um momento de reconhecimento e negação. O sujeito desloca o valor fálico para outro objeto, como se deslocasse uma parte do Outro, e a isto se dará o nome de objeto a, uma condição de erupção do desejo. O Objeto a, enquanto pedaço do Outro, surge ali onde a falta aparece no Outro e cria-se uma ponta, como uma suplência à castração (Quinet, 2002).

A realidade de castração provoca, portanto, a divisão do sujeito entre o sintoma e este objeto altamente valorizado. Isto significa dizer que, diante da realidade da castração do Outro, o sujeito se divide entre significante e objeto a. Essa realidade da castração é a verdade do sujeito da qual só se pode aproximar indiretamente, pois só pode se semidita. Ora, sobre essa verdade, o sujeito nada quer saber, erigindo a tela da fantasia como um anteparo a ela (Quinet, 2002, p. 61).

A ausência de nome para a mãe esteve presente em meus relatos, embora eu não reconhecesse. Quando Pedro nomeia a mãe, a presença desta nas sessões toma espaço e força, e ela encontra um lugar após ter permanecido por um tempo observando minha relação com Pedro.

Quanto à indagação inicial deste tópico, digo que foi frequente e necessário, no início das sessões, o ato de traduzir e oferecer significados para Sônia do que Pedro dizia em Libras ou falar em Libras para Pedro o que sua mãe verbalizava na língua oral. Sônia observava o modo como o filho era capaz de simbolizar, dialogar e criar histórias em uma língua estrangeira, e a Libras deixou de circular apenas nas sessões de análise, para então ocupar a casa da família. Sônia revelou que em sua casa todos estavam falando em Libras “sem perceberem”. E disse, ainda, que mesmo não sabendo tudo o que o filho dizia, o diálogo se fazia presente e quando não entendia algo “demonstrava que está tudo bem para que o filho não ficasse perdido”.

Para que o objeto a caísse do corpo e a falta não fosse obliterada, dando um lugar possível para Pedro dentro do investimento libidinal da mãe, a Libras esteve presente na relação analítica e promoveu um encontro único para além de uma mera interpretação na comunicação.