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3. Língua: o dizer do Outro sobre o sujeito e sua posição no discurso

3.2 Língua materna

Segundo Sieiro (2013), a linguagem não é algo imaterial posto que, ao direcionar sua fala ao Outro, a fala carrega as imagens corporais do sujeito. Há uma rede de significantes interconectados que aparecem em cadeia e determinarão o modo de estar no mundo quando o sujeito é apresentado à linguagem por meio do outro. Acrescenta que “o sujeito surge na falta entre os significantes para dizer dele, ou seja, nos intervalos e na descontinuidade da cadeia: um sujeito de alíngua (p. 23)”.

Para inferir que o inconsciente assume a estrutura de uma linguagem faz-se necessário a exteriorização deste inconsciente e a via privilegiada por Lacan é a linguagem falada, ou seja, a língua e em especial, a língua materna. Essa língua materna é definida como única e singular em cada sujeito, exprime seu caráter de gozo e, mais precisamente, sua ligação com o corpo carregado de sentido (Nasio, 1993). A voz humana, concebida como veículo da língua, foi considerada por Lacan um poderoso poder de sedução e o neologismo alíngua liga o desejo à língua, sendo definido como o saber que escapa ao controle (Roudinesco, 2011).

Faz necessário, antes de prosseguir, definir alguns termos que são utilizados nesse trabalho, os quais são: língua da mãe ouvinte, língua de sinais, língua materna e lalangue. A

língua da mãe ouvinte diz respeito à língua portuguesa de modalidade oral e auditiva. Já a língua de sinais, em especial, a Língua Brasileira de Sinais (Libras), compreende a língua que possui origem na comunidade surda. Quanto à definição da Libras, em 24 de abril de 2002 foi sancionada uma lei que diz:

Reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constitui um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil. A Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa (Lei n. 10.436, 2002).

Quando fala-se sobre a língua materna entende-se seu caráter linguístico com os padrões e regras que lhe conferem o estatuto de língua e, também, algo que lhe é inerente e diz respeito ao que é irrepresentável e não passível de significantização, ou seja, a lalangue.

Considerar a língua como um real calculável implica em acatá-la como causa de si, entendê-la como algo representável por meio do cálculo e passível de ser formalizável pelos signos, palavras, frases e sons. Nesta perspectiva, o ser falante seria considerado como sem nenhum desejo para além da enunciação e a comunicação efetiva se daria por dois pontos simétricos (emissão e recepção). Este cálculo do real apresentará falhas, já que algo não será redutível a ele, a isto que escapa pode-se chamar de lalangue ou alíngua, local de reduto do desejo e do gozo. A lalangue não é passível de ser domesticada, relaciona-se do Real da língua que está para além do que se diz (Milner, 2012).

Uma característica comumente atribuída à língua pela ciência é a arbitrariedade. Sobre isso, Milner (2012) esclarece,

Que tal som remeta a tal sentido, que tal signo remeta a tal coisa é pensado atualmente como puro encontro; sobre o porquê de ser desse jeito, e não de outro, o arbitrário diz que não se tem o que saber. Mais exatamente, o arbitrário do signo equivale a afirmar que ele não teria como ser pensado diferentemente daquilo que ele é, já que não há razão alguma para que seja assim. O arbitrário encobre com exímia precisão perguntas que não serão feitas: o que o signo é quando ele não é o signo? O que a língua é antes de ser a língua? - ou seja, ele encobre a questão que se expressa comumente em termos

de origem. Assim sendo, dizer que o signo é arbitrário é afirmar em tese primária: há língua (p. 60).

Ao realizar pontuações sobre porque uma língua pode ser considerada como tal perante às já existentes, por vezes tem-se a ideia que as línguas possuem elementos em comum que lhes definem e que estes elementos poderiam se unir e não se contradizerem. Contudo, não é isso que se mostra. Haverá ao menos um elemento que se mostrará incomensurável com relação aos outros. A língua materna não pode ser comparada às outras e tal singularidade de uma língua pode ser compreendida como um modo particular de fazer equívocos (Milner, 2012).

Quanto a isto, o termo locução também favorece a compreensão do que de cada língua não pode ser comparado. Locução é a expressão formada pela união de duas ou mais palavras. Em termos de locuções não é possível dizer que uma língua é idêntica a si mesma porque ao ser estabelecido relações entre elementos, aparecem os duplos sentidos e os equívocos. Dessa forma, não é possível uma proposição universal que diga sobre todas as línguas. Não há como dar uma única designação para os equívocos da língua e chega-se novamente à definição de alíngua. Esta possui maior relação com a língua materna, não pode ser acomodada a uma língua ou a um lote comum, não é possível estratificá-la e seu caráter não permite dizer o que lhe torna incomparável. Se existe algo da língua que não é representável, como compreender como é transmitido? A compreensão escapa à razão e pertence ao Real(Milner, 2012).

A lalangue não terá a função de transmitir um saber na comunicação e está além daquilo que pode ser enunciado. Ela comporta um saber enigmático que escapa ao saber do falante, “que eu falo sem saber. Falo com o meu corpo, e isto, sem saber. Digo, portanto, sempre mais do que sei” (Lacan, 1972-1973/1985, p.161).

O funcionamento da língua para um sujeito terá características particulares à sua rede de relações familiares e estabelecerá modos de estar na linguagem e na cultura. A mãe, a

princípio, ocupa a posição de plena, inequívoca e tesouro dos significantes, para depois ser substituída pela mãe simbólica, aquela que também responde às leis da língua e é sujeito de linguagem, por isso não é sem falhas e operará simbolicamente com o filho. O pai simbólico funcionará como interditor na relação alienante entre mãe e filho, para que a criança se desloque da relação com essa mãe onipotente, para uma relação com a língua materna. O contato com esta permitirá uma mudança na relação com a mãe, que agora compreendida como não toda, não responde a tudo e não pode atender a tudo que a criança quer (Formigoni et al., 2005). Acrescenta-se que

A língua comporta um defeito de realização que dá lugar à sua riqueza, posto que esse defeito permite que o sistema da língua possa vergar cada um de seus termos em qualquer sentido, a depender das versões assumidas pela encarnação da interdição operada pelo pai simbólico (Formigoni et al., 2005, p. 195).

Quanto à língua materna, Moraes (1999) aponta que

Nessa língua, o sujeito não fala como mestre, é falado por ela, o que não assegura ao sujeito sua identidade, só garante sua movimentação como sujeito embaraçado, por não poder dizer tudo, isto é, articular plenamente seu desejo. A objetividade impossível dessa língua coloca o sujeito numa posição de desconhecimento de si próprio, que constitui, segundo Freud, sua atividade por excelência, pois a língua dita materna está sempre referida ao impossível da conjunção entre os sons das palavras da mãe e o corpo da criança, remetendo-a a um Outro lugar, de onde está separada do corpo pela linguagem (p. 79).

A linguagem possui relação com o simbólico e com o modo de inserção do sujeito no campo do discurso e na cadeia de significantes. Ela é anterior à chegada do sujeito, mostrando que este já é falado antes de nascer. Dessa forma, a inserção do sujeito na linguagem ocorre de maneira singular e a língua materna traz esse caráter único e incomparável do modo de constituição de cada um. Quando o simbólico é instaurado, há um resto dessa operação, uma falha daquilo que não é simbolizado, representado por um vazio. A língua materna permite envelopar o objeto voz e vem para silenciar o vazio ruidoso do Real.

Quando há uma solidificação do primeiro casal de significantes, este amálgama impede o deslizamento da cadeia, uma vez que um significante não pode designar o outro, não havendo espaço para a falha e para a falta onde aparece o desejo. Esta solidificação concerne ao processo de alienação, “a significação se iguala à mensagem enunciada, o sujeito já é dado na mensagem” (Vorcaro, 2005, p. 33).