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4. Construção dos casos clínicos

4.2 Caso clínico: Gabriel

4.2.1 Sobre a surdez

A mãe contou-me sobre a história de Gabriel. Disse que a criança não nasceu com problemas auditivos, contudo quando tinha seis meses teve meningite e perdeu a audição bilateral, adquirindo surdez profunda. Relatou que ele era um bebê agitado e que, quando completou 1 ano e 8 meses, foi colocado um implante coclear. Disse-me, também, que Gabriel rejeitou o implante por muitos anos, permanecendo com o aparelho desligado. Somente aos cinco anos, idade atual, ele aceitou utilizar com tranquilidade o aparelho.

A mãe relatou que, a princípio, começou a comunicar-se com a criança através da língua de sinais (que aprendeu assistindo vídeos na internet), porém quando Gabriel iniciou sessões de fonoaudiologia, ficou proibido de comunicar-se em Libras. Assim, houve primeiro a perda da audição e depois a perda da língua que estava compartilhando com os pais. Durante os atendimentos, percebi que Gabriel utilizava alguns sinais caseiros para comunicar com a mãe e comigo.

4.2.2 “Quero embora” versus “Não quero embora”- Amor e ódio

Gabriel era um menino de 5 anos que amava cavalos, peixes e brinquedos empilhados. Porém, tais amores não apareceram no início e, tampouco, o desejo de Gabriel para brincar com tais objetos se fez presente. Pelo contrário, as primeiras sessões de análise foram marcadas por um intenso desconforto. Primeiro, o desconforto de Gabriel que pedia insistentemente para ir embora, antes mesmo de entrar para sala de atendimento. Depois, meu desconforto diante da reação da criança de rejeitar qualquer aproximação minha. Era cansativo estar presente para Gabriel, mas me mantive e precisei reconhecer meu ódio, para perceber que Gabriel escancarava-me um não-lugar, uma posição de não pertencimento ou reconhecimento diante do olhar do Outro. Diante dessa constatação, o não desconforto da mãe, diante do filho e, de seus pedidos intermináveis para ir embora, não me surpreendia. Começava a aparecer uma posição não sustentada de um Outro diante de seu filho.

Reconhecer o ódio na contratransferência pode tornar-se difícil quando se toma o ódio no seu sentido moral ou de senso comum, como um sentimento ruim que deve ser evitado. Sentir ódio na relação analítica é um absurdo? Longe disso, Winnicott (1947/2000) diz que o ódio do analista, em alguns casos, será a própria condição para o estabelecimento da análise. O ódio, enquanto um fenômeno na contratransferência, deve se tornar consciente e discernível

pelo analista, daí a importância da análise pessoal e da supervisão de caso. Ainda sobre o ódio na contratransferência, Winnicott (1947/2000) aponta que,

O ódio do analista fica em geral latente, e pode continuar assim com muita facilidade. Na análise de psicóticos o analista encontra-se sob uma pressão muito maior para manter o seu ódio latente, e só poderá fazê-lo se estiver plenamente consciente do mesmo. Gostaria de acrescentar que em certos estágios de certas análises o ódio do analista é na verdade buscado pelo paciente, e nesses momentos é necessário expressar um ódio que seja objetivo. Quando o paciente está à procura de um ódio legítimo, objetivo, ele deve ter a possibilidade de encontrá-lo, caso contrário não se sentirá capaz de alcançar o amor objetivo (p. 283).

Winnicott (1947/200) traz o exemplo de crianças que ficaram órfãs e ou viveram em lares provisórios e são adotadas por uma família. Estas crianças podem testar o ódio dos adultos que lhe acolheram e, ao sentir que eles são capazes de lhe odiar objetivamente, poderão acreditar que são amadas.

O ódio sentido por mim, enquanto analista na relação com Gabriel, foi apontado na supervisão e se fez presente no modo como relatei as primeiras sessões. Eu não me referia a Gabriel pelo nome, mas como “criança”. Uma maneira que mostrava a distância do laço estabelecido e minha dificuldade de estar nesta relação. Contudo, reconhecer o ódio foi fundamental para o estabelecimento da relação analítica, na qual se faz presente a ambiguidade de amor e ódio e, por vezes, o paciente requer o reconhecimento da capacidade do analista de odiar para que o outro lado, o do amor, seja possível. Comecei a observar os momentos da análise que me eram mais incômodos e cansativos, dentre eles, aponto a recusa da criança em entrar para a sala, suas corridas para a parte externa da clínica, as palavras repetidas por ele incessantemente e, por fim, a postura tranquila da mãe de Gabriel diante de tais reações do filho.

Se Gabriel demandava um reconhecimento de minha capacidade de odiá-lo, isto não poderia ser feito por meio de uma intervenção analítica, na qual eu lhe contaria com palavras. Haveria de acontecer de outra forma e o lugar para este reconhecimento foi criado por Gabriel

em brincadeiras, nas quais a agressividade e o ódio se manifestavam em personagens de brinquedo. Exemplos: O menininho que ficava de castigo e não podia andar a cavalo, quando desobedecia apanhava até chorar. A cobra que não podia se mexer e quando o fazia levava pauladas até morrer e o assassinato dos fantoches. Gabriel divertia-se neste jogo de punição dos brinquedos e observava atentamente minha reação (enquanto aquela que animava os brinquedos odiados) e, vez ou outra, eu fazia com que os brinquedos também demonstrassem ódio. E assim eu fazia os brinquedos saírem da posição de vítimas para algozes, virando o jogo e fazendo Gabriel reinventar seu modo de brincar. E claro, quando os brinquedos demonstravam sua raiva, Gabriel ainda mais se envolvia e demonstrava entusiasmo.

Dessa forma, Gabriel testava meu ódio nas brincadeiras e dramatizações. Quando a sessão acabava, perguntava se poderia voltar no outro dia. Eu lhe explicava que poderia voltar na próxima semana e ele confirmava algumas vezes. Quando voltava para nova sessão, Gabriel queria saber se os objetos estavam no mesmo lugar e se a analista também estava, e o amor transferencial tornou-se possível. Assim, Gabriel não queria ir mais embora ao final da sessão, tentava driblar o tempo, inventava uma nova brincadeira quando aproximava-se o final da sessão e dizia que ia comprar para nós (eu e ele) os brinquedos que encontravam-se quebrados na clínica.