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A técnica e o bailado acadêmico, são apresentados como portadores de um redutor comum: a aula de balé. “As cinco posições fundamentais do balé clássico e todas as suas inumeráveis derivadas formaram o meio técnico mais longamente pesquisado, um verdadeiro alfabeto de linguagem dançante.” (VIANNA, 1990, p. 71) O apreço por esta bagagem induzira Klauss Vianna (1990, p. 71)a defender que “qualquer reforma no bailado necessita partir do próprio bailado, levando-se em consideração seu desenvolvimento até então.”

Aqui no Brasil, essa reforma do balé se fazia necessária, sobretudo por razões culturais: no intertexto da década de 50, seria o equivalente a um início de emancipação da dança brasileira, já reivindicada pela semana mo- dernista de 22.

Klauss se ressentia da situação quase nivelada à de ofícios medievais enfrentada pela classe de profissionais de Dança no Brasil. “Esta mesma geração se ressente da falta de um cunho de originalidade, e isso porque procura seguir, passo a passo, modelos russos ou franceses, podendo-se dizer o mesmo dos coreógrafos nacionais.” (VIANNA, 1990, p. 69)

Naquela época visitavam a capital do Rio de Janeiro e mais raramente São Paulo, as companhias estrangeiras de Teatro e de Dança vindas, sobre- tudo da Europa, rumo à Argentina para exibições em Buenos Aires, que vez por outra paravam no Rio de Janeiro. O setor cultural carecia de iniciativas locais, permanecendo dependente ao que vinha de fora do país, isso se refletiu nos rumos educacionais da arte da Dança. Alguns poucos maîtres de balé aportaram por aqui e acolá, exilando-se devido ao contexto da 2ª grande guerra, fugindo da Europa. Eram iniciativas isoladas muitas vezes ministrando curso em domicílios e de difícil acesso. Para quem queria es- tudar Dança, havia alguns manuais em língua estrangeira, poucos livros de arte e de fotos publicados, uma ou outra publicação de dicionários de balé.

Esse irregular desenvolvimento do ensino da dança no Brasil, distante das fontes da linguagem, sem renovação ou conexões com suas etapas históricas, já havia sido objeto de crítica de Klauss Vianna, quando nos anos 50, nas suas estratégias de modernização, propunha uma volta às origens da dança clássica. (NAVAS, 1992, p. 168)

A modernização tinha por objetivo encontrar uma renovação de lingua- gem que refletisse sua ligação com a terra brasilis.

O professor Klauss Vianna propunha um trabalho subversivo. Pretendia virar do avesso o balé clássico a partir do legado da sua própria técnica, lan- çando mão de suas leis como ferramentas para criar uma nova dança, com a força dos princípios acadêmicos. Foram alvos desse esforço de modificação

centrar a investigação nas cinco posições e buscar os componentes mais simples do balé: os elementos imprescindíveis para que o trabalho se cen- trasse no corpo, partindo para as relações dos ossos e músculos com o espaço, sem narrativa, sem música; tudo isso identificado por Klauss, como sendo componentes de valor estético do balé. Algo, porém, não pode ser detido: entre tais componentes, destacam-se os preceitos geométricos, que configuram o movimento do balé no espaço. (AQUINO, 1999)

Nas sequências coreográficas do balé, a presença de trajetórias determi- nadas, espaço percorrido pelo movimento em sua aparente uniformidade, a apresentação de pausas em poses estruturadas, revelam a força das pro- porções geométricas – métricas e harmônicas – e conformam o conceito espacial do “bailado acadêmico”.

A hierarquia centro/periferia é em parte alicerçada pela verticalidade frontal do eixo vertebral em relação aos membros, com sutis e ligeiras inclinações, cuja principal função é dar suporte para a desenvoltura dos membros inferiores que se elevam pelo espaço, pernas altas que fazem proezas e braços leves que sustentam e endossam circunvoluções com graciosidade.

Os acordos encontravam-se previamente firmados. Acordos firmados por convenções trazidas para o corpo, por acertos de ordem social, moral, dramática ou literária. Isso, ainda vinha ocorrendo segundo Klauss Vianna (1990, p. 88):

O que vemos, no entanto, é que o domínio da arte da Dança, em nossos dias, obedece a certas regras e convenções em função de um ideal estético antecipa- damente suposto e proposto. Mas é possível pensar a dança para além desses limites, como uma das raras atividades em que o ser humano se engaja plena- mente de corpo, espírito e emoção.

É importante lembrar que, outro moderno no limiar do pós-moderno- -contemporâneo, Merce Cunningham e seu colaborador, o músico John Cage, uma vez convictos das preferências instintivas e tendência a rotina, passaram a se apoiar na desconstrução, fragmentação e exploração, sem tão pouco abrir mão do aspecto técnico, visando romper e subverter os esquemas das limitações do já conhecido pelo corpo. “Ora, entregue a ‘suas preferências instintivas’, o individuo produz apenas, assim pensam Cage e Cunningham, o já conhecido, a tal ponto o ‘natural’, e mesmo o inconsciente são culturalmente condicionados.” (SUQUET, 2009, p. 531), isto é, reproduzidos; então ambos passam a buscar estratégias não redu- cionistas de aleatoriedade e perturbações do acaso. Segundo Annie Suquet (2009, p. 531): “Cunningham pressente que o movimento é antes de tudo uma questão de percepção: para descobrir potencialidades cinéticas iné- ditas, deve-se em primeiro lugar subverter a esfera perceptiva” nas suas composições.

Klauss Vianna buscará radicalmente transformar “o corpo e a menta- lidade” das pessoas, não somente em relação a Dança, mas em relação a vida, lançando-se ao conhecimento do corpo, valendo-se da estrutura musculoesquelética como ponto de partida. De um modo particular, auto- didata de investigação da anatomia, o corpo passará a ser o cerne central das investigações.

De um lado, a tese de proporções métricas harmônicas para o movi- mento do balé, do outro, o “movimento Duncan”, como antítese, na busca de uma fluência liberada2. O movimento da história nos levaria à sua síntese?

Ilya Prigogine e Stengers, autores de A nova aliança, revelam uma das implicações e desdobramentos do mecanicismo, junto à dialética:

Uma outra interrogação filosófica que podemos reler é a do materialismo dialé- tico e da sua busca de leis universais, às quais responderia o devir da natureza. Como para os materialistas, que queriam conceber uma natureza capaz de his- tória, as leis da mecânica foram para nós um obstáculo; mas não as declaramos falsas em nome de um outro tipo de leis universais. Bem pelo contrário: quando descobrimos os limites do seu campo de aplicação, conservamos o seu caráter fundamental; elas constituem a referência técnica e conceptual que nos é neces- sária para descrever e definir o domínio em que elas já não são suficientes para determinar o movimento. (PRIGOGINE; STENGERS, 1991, p. 217)

Neste ponto, Ilya Prigogine cuida de deixar claro que, na ciência, limites são transpostos, não só por substituição de paradigmas como na visão do historiador Thomaz S. Kuhn3, mas entre outros fortes indicadores, por limi-

visão dialética, desejou redesenhar os limites de aplicação da técnica do balé, sem negá-los. Que novos limites surgiriam a partir daí?

O código do balé encontra-se consolidado nas aulas de balé clássico. “Assim também no bailado artístico as cinco posições e suas derivadas são os instrumentos mais aperfeiçoados até hoje para a sua fixação.” (VIANNA, 1990, p. 71) O jeito como se preparava o corpo servia para criar o jeito como se dançava no palco. As técnicas de barra e centro tinham a finalidade de aprimorar a dança do balé, no palco, conforme as regras estéticas4 do

“bailado acadêmico”. Seria então possível libertar os seus instrumentos, da estética de palco do balé?

A investida se dá tendo três aspectos centrais: (1) a existência do apa- rato técnico do balé; (2) a necessidade de empreender uma modificação; (3) a importância dos princípios acadêmicos para esta empreitada. Visando apropriar-se só do aparato técnico, separando-o do resultado estético. Para isso, na construção de suas aulas técnicas, o professor reteve certos princípios e posturas do balé, isolando-os de sua aplicação direta ao pal- co, procurando abandonar assim, todos os traços de significação estética. A parte do aparato técnico deveria reduzir-se ao mais elementar possível, tudo aquilo considerado supérfluo sairia de cena, chamaremos de apara- to estrutural-postural. Foi descartado o uso de sapatilha, de espelho, de malhas de balé apertadas, de acompanhamento de música, da disposição uniforme de alunos em fila. Os maneirismos de estilo foram retirados. Caminhou-se na direção de uma democratização do uso do espaço co- mum da sala de aula, o que afetou a própria estrutura da aula. A ruptu- ra deu-se na direção de um trabalho meticuloso, sobretudo, da estrutura musculo-esquelética, que veremos a seguir.

Esta forte incidência geométrica no balé será entendida e, tomada aqui, como o pressuposto que liga a forma de organização do movimento no espaço a regras e princípios afeitos a física newtoniana e filosofia cartesiana. Em relação às formulações geométricas, tanto a física newtoniana como a filosofia de René Descartes, abrigam-se sob o mesmo teto: a ge- ometria euclidiana foi fundamental para ambas. Penrose (1993, p. 167) lembra que:

A obra de Newton, como ele prontamente reconheceu, devia muito às reali- zações de pensadores anteriores, entre os quais se destacavam Galileu Galilei, René Descartes e Johannes Kepler. Havia também importantes conceitos implí- citos vindos de pensadores mais antigos ainda, como as ideias geométricas de Platão, Eudóxio, Euclides, Arquimedes e Apolônio.

Também na obra de René Descartes a geometria tem forte incidência. Koyré (1986, p. 400) comenta:

O universo cartesiano, sabemos mais do que bem, é construído com muito pouca coisa. Matéria e movimento; ou melhor – pois a matéria cartesiana, ho- mogênea e uniforme, é apenas extensão, – extensão e movimento; ou melhor ainda – pois a extensão cartesiana é estritamente geométrica –, espaço e movi- mento. O universo cartesiano, sabemos bem, é a geometria realizada.

Com a criação da geometria analítica por Descartes passa a não haver distinção entre espaço e matéria. Comprimento, largura e espessura são as medidas próprias da matéria, e com elas dimensiona-se o espaço, pensado em termos de trajetória, direção e posição. Voltando a Prigogine e Stengers