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Klauss questionou profundamente a incidência dos entendimentos me- trificados, uniformes e ordenados para o corpo, sobretudo a oposição binária excludente. Não obstante, transpostas ao corpo, essas relações or- denadas, materializadas fisicamente no corpo humano, revelam-se prisio- neiras de conceitos muito distantes do que, de fato, ocorre no corpo vivo. Assim, comenta:

A razão impõe a reta como caminho mais curto entre dois pontos, mas esque- cemos que ela é tensa e dificilmente será harmônica, no caso da musculatura humana. Quando o homem escolhe os movimentos retilíneos e conduz seus músculos a um objetivo predeterminado, anula a intuição, sobrepõe a raciona- lidade ao instinto. Isso não aconteceria se fizesse a opção pela curva ou espiral, onde encontraria maior prazer em cada etapa do aprendizado, com gradual aprofundamento e expansão da consciência. (VIANNA, 1990, p. 86)

Chamava atenção para as curvas, o desenho de cada osso indicava uma direção natural e o trabalho levava em conta harmonizar os espaços inter- nos em relação a elas:

Os movimentos circulares são os mais relaxantes para o corpo. De certa forma, eles liberam as articulações e os grupos musculares permitindo o equilíbrio ósseo e muscular, ao contrário da linha reta que às vezes bloqueia e impede a explo- ração das mais diversas possibilidades de movimento. (VIANNA, 1990, p. 101)

O trabalho iniciado com o corpo, necessariamente, revela sua caracte- rística de sistema aberto. Estrutura e função ficam em evidência, por um lado, quando entra em campo a investigação da experiência de corpo. Por outro lado, mostra-se a impossibilidade do entendimento do corpo caber dentro de uma visão reducionista, em que o movimento fica reduzido ape- nas a cálculo e demonstração.

Klauss, em seus estudos de anatomia, iniciados com Antonio Brochado no biênio 1962-1963 – quando este era professor de anatomia aplicada na Universidade Federal da Bahia (UFBA) – verificou que os ossos apresen- tam curvaturas e angulações. Considerado um dos maiores anatomistas da época, dispunha de um modelo de esqueleto tridimensional para mostrar aos alunos como funcionava no corpo, o esqueleto humano. Baseou-se nas direções naturais dos ossos para fazer delas um instrumento que lhe possi- bilitasse construir sua leitura do corpo humano.

Explorar as possibilidades de movimento, a partir dos eixos de cada ar- ticulação dos segmentos ósseos, da sensação, percepção e vivência anatô- mica no próprio corpo, constituía a pedra de toque em sala de aula, que desconstruía esse arsenal de entendimentos equivocados retilíneos. “Mas é preciso reconhecer o local do corpo onde surge a oposição à força que vem do solo: geralmente se situa em pontos em que nossa tensão é mais freqüente.” (VIANNA, 1990, p. 79)

Seguindo essa compreensão, Klauss nos leva, com o seu trabalho, a buscar espirais no corpo, geradas pelos vetores de força em oposição e complementares, eliminando tensões e desgastes desnecessários, liberando fluxos e aumentando a resistência física para dançar. Entre um segmento ósseo e outro, Klauss propõe acionamento entre as partes, em direções opostas, ou seja, de rotação e contra-rotação e, de afastamento proxi- mal, medial e distal1, pois, segundo ele: “Só dessa forma surge a oposição, a resistência que vai abrindo espaço entre os ossos, seguindo sua direção nas articulações”. (VIANNA, 1990, p. 78)

Esse trabalho de resistência dá vazão ao emprego de força no uso de alavancas para o movimento, valendo-se dessas direções e vetores de força, removendo esforço excessivo num tônus considerado optimum. O enten- dimento de espaço nas articulações se dá em função da mobilidade gerada pelo deslizamento ósseo possibilitado pelas junturas sinoviais2.

Para se chegar ao osso, é necessário um trabalho de soltura articular e “descolamento da musculatura”, e lançar mão de recursos como sensibi- lização e percepção que facilitem mente-corpo por monitoração autocons- ciente entrar em contato e sintonia com a instância de ordem física.

Dentro da perspectiva da consciência corporal, essa disponibilidade e a entrega parecem ser fundamentais para mobilizar “espaços internos”. Segundo essa visão, a partir do osso pode-se redesenhar a musculatura e criar um equilíbrio maior para o organismo, graças às intrincadas relações orgânicas entre respiração, fluxo energético e cadeias musculares. Na voz de Klauss Vianna (1990, p. 55):

No seu sentido mais amplo, a ideia de espaço corporal está intimamente liga- da à ideia de respiração – que ao contrário do que pensamos, não se resume à entrada e à saída do ar pelo nariz. Na verdade, o corpo não respira apenas através dos pulmões. Em linguagem corporal, fechar, calcificar e endurecer são sinônimos de asfixia, degeneração, esterilidade. Respirar, ao contrário, significa abrir, dar espaço. Portanto, subtrair espaços corporais é o mesmo que impedir a respiração, bloqueando o ritmo livre e natural dos movimentos.

Nessa vasta reorganização, o corpo redistribui as tensões e poderá ex- plorar uma gama maior de movimentos. É desse modo que Klauss consti- tuiu o seu caminho para desenhar com o corpo e instintivamente dançar.

Dança dos instintos, alusão feita pela atriz Marília Pera, em seu depoimento

de participação no espetáculo O exercício, dirigido por Klauss Viana, em 1977, no Rio de Janeiro. (RIBEIRO, 2003, p. 143)

Ao princípio de direções ósseas, soma-se o princípio dos “espaços internos” e o de espirais, pois que a oposição nas direções ósseas passa a ser trabalhada como elemento necessário à criação dos espaços internos e a combinação de ambas, os chamados vetores de força e distribuição de apoios, torna-se úteis para as alavancas. Resistir à força da gravidade, criar oposições, gerar espaços internos fazendo funcionar alavancas foram transformados em procedimen- tos sistemáticos de seu trabalho, compondo sua metodologia.

Decorre disso sua hipótese das espirais, a partir das direções e oposições ósseas. A contra-rotação dos segmentos ósseos daria vazão a uma força em forma de espiral. Ela tem como função a preservação de uma mobilidade maior enquanto ocorrem os movimentos, respeitando os limites, de forma que os espaços entre as articulações não fiquem prejudicados. A espirali- zação só é possível se o “espaço interno” for recuperado. Essa é uma das hipóteses gerais de Klauss Vianna. Ele adota o conceito das oposições pelas direções ósseas, pautando que a preservação do “espaço interno” entre um segmento ósseo e outro é vital para o fluxo do movimento.

Seguindo-se a concepção de “espaços internos”, a concepção de “con- flito” e a concepção de “espaços intermediários” formam os outros dois conceitos-chave das três doutrinas hieracliteanas que explicam a geração de movimentos com vetores de oposição.