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Quão antigo inato x adquirido possa parecer, habita forçosamente o ima- ginário popular, tal como dualismos de outra ordem.

A corrente do inatismo deve muito à filosofia cartesiana, donde decorre a ideia de mente desencarnada, que inculcou uma categoria de ideias livres do impacto do sensível: são elas as concepções de Deus, da Matemática e da

própria estrutura de pensamento. G. Lakoff e Mark Johnson (1999, p. 404) traçam um paralelo, “[...] o que é distinto à respeito dessas ideias é que elas não surgem dos sentidos e, portanto, devem estar presentes já ao nascimen- to.” Livre da obscurescência dos sentidos, essas ideias “essenciais” ao ser, seriam inquestionáveis, como as intuições. Isso colocaria em questão o que é dado pelo corpo e o que é dado pela mente e colabora para explicar a impor- tância do raciocínio matemático para corrigir e sanar eventuais falhas prove- nientes dos sentidos. Essa visão opunha corpo e mente como coisas a parte.

O cartesianismo encontra eco no mecanicismo por sua própria máxima, “dualismo de substância pensante e substância extensa, dualismo pelo qual cada uma delas se comporta segundo uma lei própria, sendo a liberdade a lei da substância espiritual, e o mecanismo a lei da substância extensa.” (PORTO, 1997, p. 17) O corpo submetido às leis da mente responde me- canicamente como um subalterno ao comandante de um navio.

Tendo isso em vista, Prigogine e Stengers (1991, p. 7,20) ressaltam:

[...] das leis matemáticas simples às quais, segundo se julga, os comportamen- tos elementares estão submetidos – e que constituiriam, por conseqüencia, a verdade última do Universo – quase sempre concebidas sob o modelo geral das leis dinâmicas. Ora, como veremos, essas leis descrevem o mundo em termos de trajetórias deterministas e reversíveis [...], em um mundo mecânico e mate- matizável regido por uma força universal.

A matemática confere o grande poder de articulação ao inaugural pen- samento racionalista daquela época, diferenciando-o do pensamento ba- seado na autoridade medieval antes vigente, em crise desde a época do renascimento.

As crenças, reunidas sob o estigma de fatos inalteráveis em relação a vida, devido ao princípio de conservação, e por serem inatas ou adquiridas: con- formadas dentro de uma visão estática; encontram-se ainda em voga hoje e alinham-se ao pensamento newtoniano seja por seu aspecto mecânico, seja por seu aspecto determinista. Desse modo, manter a forma seria importante para não deixar mudar o corpo, não aceitar que ele muda, porque isso seria

deixar que o corpo não ficasse conservado e se estragasse. No desdobra- mento dessas crenças, torna-se ainda mais forte a crença que atribui uma equivalência entre o antes e o depois. Ela vale tanto na direção da afirmação de que “não há nada que se possa fazer”, “o corpo só envelhece”, como na onipotência oposta de “eterna juventude”, a todo custo e pondo a toda prova a natureza do organismo e de seu metabolismo, anulando-o ainda quando afirma o desejo do “corpo continuar sempre o mesmo”, só dando sinais pela dor, pelos esforços desmedidos e pelo adoecimento.

O mecanicismo, projeto de domínio da física newtoniana que se disse- minou, estendeu-se por todas as áreas de conhecimento que se confir- mavam científicas. Todas as ciências se pautaram nas descobertas da física recém-nascida na idade média, constituindo os novos campos de saber com base nas mesmas descobertas. A elétrica, a química, a biologia, as ciências humanas, as ciências médicas e as ciências exatas incluídas, rendiam-se aos mesmos pressupostos sobre a natureza dos fenômenos.

Assim, no século XX aparecem perpetuadas ideias que proliferaram na França e na Inglaterra duzentos anos antes, no limiar da era industrial, na Europa. Prigogine e Stengers resumem; a ciência newtoniana se reúne em torno da descoberta de que uma só força, a da gravitação, é determi- nante para o movimento dos planetas, dos cometas e dos corpos celestes. O universo inteiro comunga a lei da gravidade. Foi um momento de enorme

efervescência científica, que por fim acabou pondo em questão o próprio limite do universo da física newtoniana. A lei gravitacional atinge à todos os corpos sem exceção na face da terra. É algo comum a todos. A dança moderna investe no reconhecimento dessa lei para tudo como base para o trabalho com o corpo.

Além disso, a ciência newtoniana se estabelece como uma ciência práti- ca, advinda claramente do saber dos artesãos da Idade Média e dos constru- tores de máquinas: ela proporciona os meios de agir no mundo, de prever e modificar o curso de certos processos, de conceber dispositivos próprios para utilizar e explorar certas forças e recursos materiais da natureza. Eis assim, o grande argumento do racionalismo científico. A matemática dota “o saber” de precisão através do cálculo exato e da verificação ne- cessária que o diálogo experimental vai gozar, impondo-se, de certa forma até hoje, como passaporte de certidão, fonte de legitimidade e veracidade. Os fenômenos eram medidos dentro de um projeto de universalização da física. A comprovação empírica se torna o meio irrefutável de confirmação da nova base científica. A experiência interessa tão somente como instru- mento de medição do fenômeno.

Explica-nos Moura (2007), que a experiência vai aos poucos toman- do forma de instrumento para a ciência. Hoje essa expressão se encon- tra totalizada pela ideia de experimentação científica, aquilo que torna

inquestionável o discurso científico, porque foi comprovado cientificamente. Essa ideia de experiência contem dois elementos básicos: a) isola o objeto, b) relaciona sua identidade de forma mecanicista às leis naturais.

Como será visto no capítulo X, Klauss Vianna propunha experimen- tos – e tais práticas anunciaram uma nova era em Dança – que relaciona- va trabalhos de corpo com anatomia aplicada e investigação individual do movimento.

Eis uma passagem da física newtoniana para compreender o que está en- volvido entre causa e efeito, ação e reação do mecanicismo. A equivalência antes e depois é possível graças à ideia de que toda ação corresponde a uma reação igual ou de mesma intensidade na direção contrária, fundada a partir das condições iniciais. A cerca do assunto, o autor revela:

A lei geral da evolução dinâmica não permite qualquer predição especial en- quanto, um dos estados do sistema não estiver definido; desde o momento em que esteja, a lei determina integralmente o sistema e permite deduzir sua evolução, calcular seu estado para qualquer momento anterior ou ulterior. (PRIGOGINE; STENGERS, 1991, p. 46)

Aspecto que, se por um lado tem garantido suas leis gerais, por outro lado suscita a total manipulação do fenômeno. E vai além:

Sendo a lei conhecida, qualquer estado particular é suficiente para definir intei- ramente o sistema, e não somente a sua evolução futura, mas também a que, pertencendo ao passado, atingiu esse estado. Em cada momento, portanto, tudo é dado. A dinâmica define todos os estados como equivalentes, pois cada um deles permite determinar todos os outros, predizer a totalidade das trajetórias que constituem a evolução do sistema. (PRIGOGINE; STENGERS, 1991, p. 46)

O que incorre em erro é o fato desta visão entender as condições que marcam a existência de um ser vivo como sendo a de suas capacidades e faculdades fixas. Poderíamos especular sobre a relação disso com a dança clássica, pela crença de repetição exata na execução dos movimentos.

No entanto, é preciso comentar o plano de dominação irrestrita susci- tado neste terreno:

Tudo é dado, mas também tudo é possível. O ser que teria o poder de mani- pular um sistema dinâmico tem a liberdade de imaginar qualquer estado para esse sistema e, desde o momento em que esse estado seja compatível com a definição dinâmica do sistema, é possível calcular um estado inicial tal que o sistema chegue ‘espontaneamente’ ao estado escolhido no momento escolhi- do. À generalidade das leis dinâmicas responde a arbitrariedade das condições iniciais e, portanto, a arbitrariedade das evoluções particulares [...] O homem, estranho ao mundo, se apresenta como senhor desse mundo. (PRIGOGINE; STENGERS, 1991, p. 46)

Decorre disso a crença que o homem pode dominar a natureza, pode conquistar, vasculhar e encontrar os meios de conhecimento para exercer o controle total sobre o fenômeno. Nasce assim o conceito de técnica, e a crença na possibilidade de desvendamento completo dos fenômenos. Nesse contexto então, a posição antropocêntrica que o homem assume diante da natureza, revela um conflito e uma vontade de supremacia. Na dança tomaria o lugar a crença de domínio e controle total e precisão dos movimentos. Em jogo: a sua execução e reprodução exata.

Na dança, a noção de técnica se fez fundamental para a noção de virtu- osismo e excelência. Na concepção de Klauss, somente a desestruturação dos condicionamentos possibilitaria uma abertura. Abrir os espaços articu- lares para criar os espaços intermediários era preciso para desfazer os gran- des nós dos condicionamentos impeditivos no corpo, desfazendo a segunda natureza para o artista criar com mais liberdade. A forma de movimentos que já estavam no corpo treinado pela técnica, impediria em certo grau o lado criativo de movimentos, preponderando sua redundância.

O caráter absoluto de domínio sobre o sistema, pois que ele se mos- tra previsível e controlável sustenta a ideia de reversibilidade: há uma simetria temporal representada pela possibilidade de retorno às condi- ções iniciais.

Na simetria postulada entre causa e efeito, tem-se que é possível recuperar a condição inicial porque toda e qualquer mudança é corrente na medida em que existe uma força em jogo. Ele nos esclarece a respeito do movimento como um efeito:

[...] esta equivalência entre força e aceleração dá a versão matemática da estru- tura causal própria do mundo da dinâmica, mundo onde nada se produz, onde movimento algum começa, varia ou termina senão como efeito de uma força, e isto a cada instante. (PRIGOGINE; STENGERS, 1991, p. 44)

Essa perspectiva sobre movimento se mostra nas concepções técnicas de Dança e nas construções de códigos nos corpos.

Dessa forma, evidencia-se o antropocentrismo do mecanicismo, que resistirá ao tempo, e é propagado ainda mais por certa herança iluminis- ta, corrente de pensamento que se julgou capaz de combater fanatismos e visões dominantes, exercendo crítica e autocrítica, capaz de descobrir a verdade e resolver os conflitos da humanidade.

Na definição de Rouanet (1987, p. 28), “[...] iluminismo para designar uma tendência intelectual, não limitada a qualquer época específica, que combate o mito e o poder a partir da razão.”

Traçamos um caminho da teoria das essências, racionalismo científico e iluminismo, e da mecânica clássica, amplamente disseminadas na Dança, através do balé, para entendermos melhor o nó da reversibilidade no corpo.

Poderíamos indagar se Klauss alinhava-se com a maiêutica socrática ou com a raiz iluminista de chegar à verdade e, assim, atingir o pleno domí- nio do corpo a partir de sua estrutura. Muitos seguidores ligados à Klauss identificam que muitos bailarinos que trabalharam com ele alcançaram um domínio extraordinário e grau de excelência. Muita gente verificou incom- pletude de suas propostas nos corpos que não eram treinados o suficiente em Dança para alcançar esses resultados.

Sua proposta do desfazimento de tensões crônicas, couraças e condi- cionamentos nocivos via reestruturação, somado ao resgate da primeira natureza do corpo via oposições, através da autodescoberta do corpo, per- mitindo um aprimoramento e ampliação do repertório, e assim chegar a um equilíbrio mais perfeito do esqueleto humano, contam nessa direção.

Estaria aí a base para “um projeto iluminista” de corpo, que alia a con- cepção de leis universais à liberdade de imaginação de tudo poder fazer dentro de um sistema de mudanças prédeterminadas? E ainda mais: valen- do-se do conhecimento e da techné, seria possível desvelar um fenômeno inteiramente e aperfeiçoá-lo?

Chegamos a um impasse. Ao vermos mais de perto a proposta de Klauss, haveria fissuras evidentes à esse modo de pensar. Adepto às contradições, o mestre evocava exatamente o oposto ao esquematismo do pensamento tecnicista, e decorrente uniformização dos corpos. A técnica considera o controle e precisão de movimentos de execução ordenada e uniforme; ela submete o sujeito a uma ordem de comando externo e padrão repetitivo, com a visão de melhor reprodução de movimentos. Ao contrário, seu in- teresse pela intencionalidade era justamente incitar a curiosidade pelo co- nhecimento, a descoberta das diferenças e o exercício da reflexão crítica.