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2 NA MUSSUCA EU NASCI, NA MUSSUCA EU ME CRIEI PRIMEIRAS

2.6 A ANCESTRALIDADE E O TEMPO ESPIRALAR

A compreensão do que é ancestralidade dialoga com o entendimento de tempo e de espaço ancestral. Eduardo Oliveira fala que “ancestralidade é tempo difuso e espaço diluído” (OLIVEIRA, 2003, p. 245), este tempo não é linear, é um tempo que se recria, crivado de inúmeras identidades. Segundo Lêda Maria Martins, o conceito de tempo espiralar corrobora estas sensações e pensamentos, pois

O tempo espiralar é uma percepção cósmica e filosófica que entrelaça, no mesmo circuito de significância, a ancestralidade e a morte. Nela o passado habita o presente e o futuro, o que faz com que os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estejam em processo de uma perene transformação e, concomitantemente, correlacionados (MARTINS, 2000, p. 79).

O entendimento de tempo espiralar de Martins (2000) também não passa pela visão linear, ocidental, em setas, que separa presente, passado e futuro. Esta última se alimenta da visão mercantilista do ser humano, o enxergando como mão de obra e não como sujeito. Pressupõe-se, no tempo espiralar, elos que proporcionam a presentificação. No momento da celebração traz a possibilidade de habitarem numa mesma sincronia presente, passado e futuro materialmente. Onde estamos, aqueles que nos constituíram estão, aqueles que vão nascer também estão; a ideia de um presente não apartado, mas constituído. Celebrar a ancestralidade é experimentar a presença do antepassado constituindo a si mesmo, em todos os tempos em que estamos.

Celebrar a ancestralidade não está diretamente relacionado a questões religiosas, mas sim ao entendimento de identidade coletiva da comunidade. Ao reviver práticas que as fazem

permanecer, dialogar e se entender um coletivo, acionamos este tempo espiral, ancestral. Assim, o Samba de Pareia é uma forma de presentificação dos integrantes da comunidade da Mussuca.

A teia de conexões, de informações com as que o corpo interage no momento de uma experiência ancestral/comunitária é a principal forma de construção de conhecimento proposto pela cultura de matrizes africanas. O Corpo é a memória dinâmica de mitos e ritos tradicionais utilizados como construtores de identidade e resistência, é a unidade mínima para qualquer aprendizagem e a unidade máxima para qualquer experiência (OLIVEIRA, 2007). Além de seu papel de existir como ser único, o corpo na comunidade é integrado, a comunidade também é considerada corpo, ou seja, uma vez que afeta a um de seus componentes, afeta a todos. “Na Mussuca, todo mundo é parente”, diz D. Nadir. Esta ideia de família extensa, solidariedade, fortalecimento individual e de grupo faz com que o sujeito seja importante porque é parte de um todo, de uma rede de relações sociais, e sua singularidade é construída no coletivo.

É característica comum das culturas afro-brasileiras tanto o princípio da inclusão quanto o da complementariedade. A inclusão é considerada a capacidade de adaptação e transformação do meio geralmente hostil, é um diálogo dos seus conhecimentos com o que já existe, é o cruzamento dos saberes para melhor convivência e reexistência da cultura negra. Vemos, quase sempre, este princípio hoje na Mussuca, em especial em algumas ações do Samba de Pareia, como, por exemplo: o acolhimento aos turistas que, há pouco tempo, eram indesejados devido ao fator histórico de agressividade aos habitantes locais, mas, pouco a pouco, foram fazendo parte do ambiente da comunidade. Outra identificação da inclusão é o compartilhar: no Samba de Pareia, todo mundo bebe, todo mundo come, todos fazem parte da festa, inclusive os que já morreram; afinal, quem não joga um gole no chão antes de beber sua meladinha?

A ideia da complementariedade é que nada existe sozinho. Neste sentido, perceber o chão de terra e areia, o sol e, posteriormente, o sereno na pele, os olhares inicialmente de estranhamento e em seguida de acolhimento, a gentileza de um anfitrião que se identifica com quem chega, a felicidade festiva regada ao som percussivo, o ritmo pulsando interna e externamente, de uma forma tão integrada que não se entendia direito quem comandava as batidas percussivas, se eram os músicos ou os corpos dos brincantes, a bebida, a comida, o suor que escorria por consequência de uma euforia construída e vivenciada em grupo, a experiência, simplicidade e traquejo das senhoras dançando e cantando contrastando com a efervescência das jovens brincantes, com o prazer de alimentar seus costumes e os

ensinamentos que aconteciam direta (com a explicação dos mais velhos) ou indiretamente (com a observação, repetição e compreensão dos mais novos regados de influências dos tempos atuais) é perceber a ideia de complementariedade.

Acredito que, como afirma Eduardo Oliveira (2003), este é um processo de aprendizagem que se constrói com o entendimento da uma lógica ancestral, que acontece com a experiência múltipla, sem reduzir a multiplicidade da experiência a uma verdade, mas, pelo contrário, abrir para uma polivalência dos sentidos. Dizendo: “O corpo é um texto aberto para a leitura de quem o vê. E o escritor é a comunidade. portanto meu corpo não é meu, mas um texto coletivo, mas não alisado. Pelo contrário: será sempre cheio de sinais, símbolos e marcas” (OLIVEIRA, 2007, p. 124).

O entendimento do corpo como ancestral é importante porque passamos a perceber o corpo como sujeito. A consciência do corpo ancestral passa por um entendimento de si e de suas relações em que pessoas, lugares, coisas, situações etc. fazem parte dessa percepção. As abstrações do corpo, como os sentimentos, as experiências, as vivências, os improvisos, fazem parte, também, de seu conhecimento. Não seria um corpo preparado com exclusividade para o mercado de trabalho, que é visto como uma máquina, onde os estímulos externos, os seus fenômenos mentais e físicos o resumem; mas um corpo que se entende inteiro, neste pensamento ancestral, assume-se a ideia da mente corporificada e que tudo está conectado com o mundo visível e invisível. O presente, o passado e o futuro acontecem ao mesmo tempo, o corpo é o lugar da encruzilhada, é um saber de organizações cosmogônicas e cosmológicas52.