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OUTRAS POSSIBILIDADES DE DISPARADORES CRIATIVOS

2 NA MUSSUCA EU NASCI, NA MUSSUCA EU ME CRIEI PRIMEIRAS

5.1 OUTRAS POSSIBILIDADES DE DISPARADORES CRIATIVOS

Durante esta pesquisa várias possiblidades de investigação surgiram, além das já encruzilhas e vistas no capítulo anterior. Estes disparadores não foram experimentados por falta de tempo ou por necessidade de maior aprofundamento dos processos que estavam vigentes no momento. Mas, acredito, se encruzilhados poderiam se tornar mais uma vertente para a apropriação do entendimento de aterrar a partir do Samba de Pareia. São alguns deles: mulher negra, cordão umbilical e quilombo.

5.1.1 Mulher negra

O Samba de pareia é dançado por mulheres, e estas, na comunidade, são as principais mantenedoras das famílias e têm destaque nas representações políticas locais, tornando-se vereadoras, líderes comunitárias, mestre cultural, entre outros. Esta talvez seja a reverberação do empoderamento da mulher no mundo contemporâneo ou mais um reflexo da cultura afro- brasileira em que as mulheres quase sempre tiveram um destaque em ativismos político, cultural e social.

Quando estava ainda em processo de pesquisa, paralelamente surgiram diversos convites de diretores de teatro para participar e coreografar peças com temas sobre gênero

associadas com reflexões raciais e sociais, como: “Oduduwá”, leitura dramática de que participei com o personagem Oduduwá, no IV Fórum Nacional de Performance Negra, com texto de Fernanda Júlia, que questionava: - Quem criou o mundo na mitologia africana, foi o homem ou uma mulher?; “Antônia” trabalhei com a direção de movimento, a peça que trata da violência contra a juventude negra pela perspectiva feminina; “Revêlo”, na qual tratava de casamento gay e revelava as frestas preconceituosas da nossa sociedade, que definem que tipo de corpo temos que ter, o que devemos assistir e que pessoa devemos amar, trabalhei na coreografia desta peça; “Rebola” (ganhadora do Brasken84

no ano 2016), fui responsável pela coreografia juntamente com bailarino e coreógrafo Elivan Nascimento, peça que discute a necessidade de espaços, onde a comunidade LGBT se encontre para se divertir, se articular e principalmente existir; e “Libertê”, fui responsável pela direção de movimento da leitura dramática, que tratava da história de uma mulher negra, escravizada, que olha nos olhos do poder e questiona o que a história nunca a permitiu fazer.

Imagem 35: Foto de Andréia Magnoni na leitura dramáticaOduduwá”

Com estas produções artísticas os questionamentos sobre a situação social da mulher negra passaram, de alguma forma, a fazer parte de minhas reflexões pessoais. O contato com estas produções cênicas trouxe, pra mim, alternativas para personagens interpretados por mulheres negras fora dos padrões impostos pela grande mídia. Ao assistimos na TV ou em algum tipo de cena (comumente em teatros, escolas etc.), que não têm a preocupação em questionar sobre os estereótipos associados ao povo afrodescendente, geralmente, os papéis

84 Prêmio respeitado das artes cênicas da Bahia tendo todas as áreas que envolvem o teatro premiadas em uma grande festa cerimonial, destacando melhor peça, diretor, ator, atriz e dramaturgo.

para mulheres negras estão associados a empregadas domésticas, amantes com caráter duvidoso, mães solteiras, prostitutas ou mulheres hiper sexualizadas, pessoas que estão, quase sempre, associadas a um submundo em situações improváveis de revolução ou mudança. Isso não quer dizer que as empregadas, prostitutas, amantes, mães solteiras não façam parte da realidade negra, mas não é a única realidade, e geralmente quando estas interpretações são propostas não aparecem seus contextos e raramente discutem a complexidade da personagem. Estas reflexões me fizeram ampliar e entender a importância do empoderamento de D. Nadir, na verdade de todo grupo do Samba de Pareia da Mussuca e do meu próprio empoderamento em realizar uma pesquisa como esta dentro da Universidade. Questionar este imaginário imposto sobre a mulher negra, impulsionar reflexões e análises sobre as armadilhas que o sistema colonial branco nos submete percebendo que este constrói sua branquitude a partir da absoluta negação do outro, neste caso, da depreciação da mulher negra (KILOMBA, 2016); e despertar possíveis quebras dessas imposições podem ser importantes vertentes para disparadores criativos futuros.

5.1.2 Cordão umbilical

Pensando na ampliação do disparador criativo ancestralidade, algumas pessoas acreditam, que o entendimento do termo Samba, que deriva da palavra Semba em Kibunto e quer dizer umbigo. A umbigada entre homens e mulheres é muito comum nas celebrações de origem africana. E sabemos também que o umbigo é o principal laço entre a mãe e o(a) filho(a), percebo que este cordão poderia trazer importantes interpretações para esta pesquisa. Minha mãe me contou que na sua época, quando a criança nascia uns esperavam secar o cordão umbilical e faziam uma bolsinha para colocar no pescoço e outros enterravam no fundo do quintal da casa, todas estas ações tinha a intenção e o sentido de ancestralidade, de não esquecer de onde veio. Perguntei sobre meu cordão, ela disse: - Mamãe quem sabe, eu sempre morei em apartamento depois que casei, sua vó me acompanhava nos partos e ficava com os cordões. Com essa resposta, já deu vontade de sair pesquisando sobre o paradeiro dos cordões umbilicais da família, que provavelmente estejam no quintal de minha vó.

Percebe-se que a exploração desse disparador poderia ser voltado para histórias pessoais, procurando saber quais rituais foram feitos com o cordão umbilical de cada um ou até mesmo voltar ao campo e entender como é essa história na Mussuca, como também trazer o elemento cênico, - cordão, para traduzir e experienciar possíveis encruzilhadas.

5.1.3 Quilombo

Trazendo o entendimento do que é contemporâneo como sendo “aquele que não se deixa cegar pelas luzes do seu século [...] é aquele que percebe no escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo” (AGAMBEN, 2009, p. 63-64). Este conceito (já comentado na introdução para entender o porquê de uma proposta de dança popular afro contemporânea) tem muitos desafios de interpretação e ampliação dos limites de tradução. Um deles é relacionar este ao entendimento de quilombo, ou seja, a decisão de se jogar no desconhecido, no escuro, para ter outras possibilidades de (re)existência. Nesse sentido, o escravizado quilombola “deixa o espaço alienante, mas conhecido, do engenho para unir aos tristes selvagens e se embrenharem na floresta... ele tenta construir sua liberdade...” (CHALAYE, 2017, p. 244), ou seja, de jogar-se no escuro para trazer (enxergar) outras possibilidades de vida, não óbvias, mas sim uma vida rara. Traz uma interpretação pós- colonial para o termo quilombo.

Compreendendo que o Samba de Pareia é uma manifestação popular de uma comunidade remanescente quilombola, a partir desse entendimento a origem do seu local (o quilombo) vem imbuída de interpretações que podem ser o gatilho disparador de possíveis traduções e consequentes encruzilhadas a partir de termos como: fuga, perigo, reconstrução, liberdade e outros que virão a surgir, de forma a também ampliar futuras experiências desse processo.

Muitos disparadores poderiam surgir ainda com o Samba de Pareia, como a oralidade, o entendimento de diáspora, a comunicação dos instrumentos musicais, as letras das músicas etc. Ideias que partam de princípios afros centrados longe dos estigmas etnocêntricos, que nos permitam a reflexão sobre realidades políticas/sociais/culturais de nossos contextos.