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2 NA MUSSUCA EU NASCI, NA MUSSUCA EU ME CRIEI PRIMEIRAS

2.1 O LOCAL: LARANJEIRAS

Fui a primeira vez em Laranjeiras para fazer o concurso da UFS, lembro que em seu entroncamento, passando por baixo do elevado (uma espécie de ponte com outra pista passando por baixo, um viaduto), tinha a imagem, recém-pintada, de Jesus, que ainda está bem nítida em meus pensamentos. A cidade tem casas pequenas coloridas e arrumadas e alguns casarões coloniais, em um dos quais ficava a licenciatura em dança de Sergipe, que atende ao processo de interiorização dos cursos universitários do Governo Federal. Laranjeiras é uma cidade localizada a 23 quilômetros da capital sergipana, Aracaju. Tem uma população de 26.903 habitantes42 e faz parte, junto a outros seis municípios (Carmópolis, General Maynard, Maruim, Riachuelo, Rosário do Catete e Santo Amaro de Brotas), da região do Vale do Cotinguiba. Seu povoamento passou a existir em 1594, devido a uma doação das terras, depois da vitória e conquista de Cristóvão de Barros sobre os índios em 1589.

O casarão onde ficava o Campus de Laranjeiras era um sonho: pilastras, grandes salões, uma grande área aberta com grama e ao fundo o Rio Cotinguiba. Via muitos pés de

40 Algumas informações constantes nesse capítulo foram reorganizadas para a publicação do capítulo: Encontro do Samba de Pareia uma experiência ancestral, do livro: Corpo Negro Nadir da Mussuca, cenas e cenários da uma Mulher Quilombola, em 2016, durante a realização da dissertação.

41 As informações do local “Laranjeiras” foram retiradas do texto de Oliveira (2011). 42 Censo Populacional 2010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

amêndoas dentro da Instituição (na área aberta) e na área externa, mas falavam que antes eram muitas laranjeiras. Sorte deles! Hoje a cidade poderia se chamar Amendoeiras, e quem nascesse lá, amendoeirences.

Contam que o porto de Laranjeiras era parada obrigatória, não apenas para embarque de iguarias, mas também para se refrescar na sombra das laranjeiras e chupar estas delícias cítricas. Devido a sua posição geográfica favorável, tornou-se centro de colonização e evangelização. A lucrativa atuação de seu porto fluvial trouxe um período de desenvolvimento e crescimento à localidade, que passou a ser vila em 1832 e após 16 anos tornou-se cidade. Laranjeiras se transforma no lugar mais importante de Sergipe, mantendo essa posição de destaque por longos anos. Seu progresso ecoa para além dos limites da província, de forma que os engenhos e os prados locais aumentem largamente os domínios das terras favoráveis ao plantio da cana-de-açúcar. Hoje, quando passeamos pela cidade, ainda avistamos alguns engenhos (desativados). A produção de açúcar na localidade também ainda existe, mas agora é sustentada pelas grandes usinas.

Lembra-se da imagem do Jesus no entrocamento da cidade? Soube que a pintura anterior era de um Preto velho conhecido como Pai Juá, uma referência muito importante na cidade, um personagem do lambe-sujo43 (a imagem foi pintada por Lúcio Teles, fotógrafo e grafiteiro). As comunidades negras locais tinham um certo orgulho de o Pai Juá ser o guardião da porta de entrada da cidade. Mas, por motivos que imaginamos, sem perguntar, sem dialogar, sem contextualizar, hoje é Jesus que está na entrada. A cidade é bastante religiosa e na época do seu surgimento as orações aconteciam tanto na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, sede da Irmandade do Santíssimo Sacramento, destinada aos ricos da região, quanto na Irmandade de São Benedito, sediada na Igreja Homônima, direcionada aos pobres e pretos,

Para cultuar seus patronos com festejos e celebrações realizados no dia de Reis (06 de janeiro) com Cheganças, Cacumbis, Maracatus, Taieiras, Danças a Santos e outras celebrações, os negros criavam espaço de articulação e enfrentamento, através de solidariedades étnicas que incorporavam e subvertiam os valores do grupo dominante: algumas vezes através do caráter de uma religião hibridizada e descontraída com os fatores que alimentavam sua matriz original, outras vezes através da estruturação de redutos de resistências negras denominados quilombos ou mocambos44 (OLIVEIRA, 2011, p. 55).

43 É o teatro ao ar livre da cultura popular sergipana; acontecem em Laranjeiras e trata-se da encenação de uma batalha entre os negros que fugiam para os quilombos, representados pelos lambe-sujos, e os índios, representados pelos caboclinhos, contratados pelos senhores locais para capturá-los.

44Segundo Campos (2005: 32), quilombo era uma designação utilizada entre os indivíduos de fora, os negros preferiam chamar seus agrupamentos de cerca ou mocambo.

Percebe-se então que a função de existência das festas, celebrações e religiosidade não se distancia das que temos hoje. Quando pensamos em festa, além da alegria, a imprevisibilidade é outro sentido associado, momento em que o inesperado pode acontecer, quando os saberes silenciados pela hegemonia são revelados, criando territórios de continuidade e ruptura. O comemorar é outro sentido importante que mostra a ligação do presente com o passado, a memória e continuidade da tradição. Interpretando estes sentidos da festa, os escravizados descobriram caminhos para novas possibilidades de vida e até hoje tem a função de preservação e resistência de sua cultura, possibilitando articulações em busca de sua liberdade.

Os quilombos eram um dos meios de maior responsabilidade para a reflexão e resposta às questões sociais/raciais emergidas no sistema escravista, neste caso, o sergipano. O Rei de Portugal, consultando o Conselho Ultramarino, em 02 de fevereiro de 1740, conceituou quilombo como sendo “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (MOURA, 1981, p. 16). Para os negros africanos ou os descendentes de africanos, quilombo era a reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência dos que se recusavam à submissão, à exploração e à violência do sistema escravista.

Hoje, entendemos quilombo como um espaço político, cultural, social que operava como ampla força de resistência ao sistema escravocrata. Apresentava uma estrutura social complexa, na qual funções e objetivos eram bem definidos interna e externamente. Falo do externo, pois a vitalidade dos quilombos sergipanos era também alimentada por outros indivíduos e organizações, às vezes não negras, que eram explorados na sociedade da época, como fugitivos, criminosos, índios, mulatos, entre outros. De forma que os avisos dos informantes e até refúgios nas próprias senzalas, no caso de qualquer emergência, possibilitaram que os quilombolas estabelecessem constante prevenção contra ataques.

Os quilombos, portanto, orientam e organizam as comunidades negras à vivência de fatores sociais que se encontravam desarranjados, proporcionando confluências entre a alegria e a esperança, o entusiasmo e a gratidão, a festa e a fé, motivando os ideais de liberdade e o reconhecimento da possibilidade da vida (OLIVEIRA, 2011, p. 56).

A ação dos quilombos e as rebeliões negras motivaram os espaços de autonomia e libertação na sociedade escravista. Na atualidade, chama-se de quilombismo (NASCIMENTO, 2009) as ações que partem do comunitarismo em busca de uma prática de libertação conforme a perspectiva e interesse da população negra e de sua respectiva visão de

futuro, assumindo o comando da própria história. O quilombismo é uma proposta de saber que parte da perspectiva negra e não do que é imposto, herdando a compreensão do que foi a ação de resistência e existência dos quilombos em detrimento da liberdade. Em Laranjeiras surgiu o quilombo da Mussuca.