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2 NA MUSSUCA EU NASCI, NA MUSSUCA EU ME CRIEI PRIMEIRAS

4.1 DA TRADUÇÃO À ENCRUZILHADA

4.1.5 Festa

No semestre de 2015.2, agora com a disciplina Estudos Contemporâneos em Danças Populares, o disparador festa realmente foi o que mais tive dificuldades de propor, porque não conseguia encontrar processos que validassem a festa do samba como tradução em sala e, ao mesmo tempo, outras demandas aconteciam paralelamente à vida de professora, principalmente as viagens semanais a Salvador (devido ao cumprimento das disciplinas obrigatórias do mestrado) e às exigências das leituras e trabalhos demandados das disciplinas. Mesmo assim, arrisquei algumas possibilidades, como trazer o treinamento de capoeira, frevo, caboclinho82; tentando promover qualquer sensação festa para que o corpo ficasse em estado de vibração e disposto a realizar o samba e a transbordar em outras possibilidades de criação.

Não foi muito proveitoso, percebi que por mais que os estímulos estivessem relacionados à cultura afro-brasileira não percebia o ritmo como apropriação. Busquei pesquisar junto aos alunos alguns conceitos de festa. Além da proposta inicial do conceito de Yvone Daniel, a orientação de Daniela Amoroso também ajudou muito para tal entendimento inicialmente, em sua Tese “Levanta Mulher e Corre a Roda: Dança Estética e Diversidade no Samba de Roda de São Félix e Cachoeira”, a qual tem um subcapítulo chamado “Alegria, Festividade e Ludicidade”, e posteriormente a indicação do livro “Festa e Corpo”, Organizado por Luiz Vitor Castro Júnior, no qual afirma que

A festa popular é resultado de dinâmicas e interações de indivíduos, grupos e sociedades, revelando faces de uma cidade de um país. Espaço de intervalo,

de suspensão mesmo, a festa interrompe certas normas inventando outras, inverte certos sentidos e enreda outros, ela não é, definitivamente, nem o tempo livre, nem o tempo disponível colocados em oposição ao mundo do trabalho. A festa é linha de fuga (CASTRO, 2014, p. 12).

Assim, percebe-se que nas festas apresentam outras faces para o país onde os saberes, geralmente, silenciados pelo poder hegemônico, podem aparecer nestas manifestações, como se neste espaço fossem permitidas as transgressões; o beber, dançar, comer, namorar se tornam tempo dinâmico, tempo de produção de cultura; nela também se encontra a ligação do presente com o passado, verifica a memória, a ancestralidade e a resistência cultural, apresentam-se como outras possibilidades epistemológicas, estas reflexões coincidem com as discussões e propostas para o Samba de Pareia ao longo dessa dissertação.

Nos laboratórios desse semestre foram utilizados alguns processos importantes: pesquisa de performances com temas afro-referenciados, assistindo a vídeos variados e verificando a particularidade negra. A existência de uma particularidade negra é entendida através do conceito de “Estrutura de Sentimento”, definido por Raymond Williams (1966), na qual a pesquisadora Patrícia Pinho comenta

(...) como uma experiência social em processo e suas conexões com as gerações, períodos históricos e contexto cultural aos quais pertence e através dos quais se transforma. Enquanto resíduo destilado da experiência vivida, a estrutura de sentimento estimula uma formação de uma subjetividade compartilhada, através da qual as pessoas sentem e imaginam sua conexão com o grupo e a partir do qual o grupo se define em sua relação com a organização institucional e ideológica da sociedade. Este conceito aponta para um lado de cultura, para um conceito que se aprende e se apreende, de forma fluida e muitas vezes inadvertida, ao mesmo tempo em que molda o pensamento e a reação do grupo em relação ao mundo que o rodeia (PINHO, 2004, p. 80).

Verifica-se que este entendimento não está vinculado nas bases do essencialismo geralmente vigente em algumas entidades que buscam a construção de identidades negras. Não se baseia também na noção contrária, em que nega a especificidade negra, assumindo uma postura igualmente simplista de tendência à pluralização e negação da especificidade. A ideia é transceder os limites do essencialismo e o anti-essencialismo. Assim, a particularidade negra é aqui valorizada e reconhecida como constitutiva das subjetividades negras, mas é a todo momento vista como uma construção social e histórica. E esta qualidade que queria que estivesse nos processos e principalmente nos resultados parciais do semestre.

Utilizamos as letras das músicas do Samba de Pareia como o gatilho disparador para pesquisa de movimento, ampliando o repertório; assistimos a alguns documentários e lemos

textos sobre contemporaneidade; e praticamos o Samba de Pareia buscando um processo de aquecimento que priorizasse o peso do copo, a intimidade dos pés com o chão e a flexão dos joelhos. Muito atentos a explorar o sentido de festa no samba, mas ainda sentindo que estávamos distanciados de atingir tal encruzilhada.

Em busca por autores ou conhecimentos populares que me ajudassem a explorar o sentido de festa em sala, alguns colegas de classe do mestrado me apresentaram Carolina Laranjeiras, que em sua pesquisa fala sobre Estado de Jogo e Estado de corpo com o Cavalo Marinho. Propõe um processo de investigação no qual o passo, a repetição e a exaustão podem acionar estados corporais de jogo gerando um trânsito de sentido. Esse conceito último está relacionado à capacidade que o outro tem de me afetar e ser afetado no momento da brincadeira. Decidi, inspirada nessas leituras, propor a possibilidade de alguma experimentação dessa proposta, acreditando que, durante as observações pessoais na comunidade, percebi que no momento da execução do samba existe a mudança de atitude corporal, mais próximo do que associo a um estado de euforia, de festa.

Propus este entendimento de estado de corpo juntamente com as orientações de Daniela Amoroso referentes à importância do passo, pois, para ela, este traz a principal configuração da manifestação popular e com ele reconhecemos de qual manifestação estamos falando. O passo seria o ponto de partida da investigação, compreendendo sua ação na gravidade, o peso, a reação do corpo entendendo-o como gesto, tratando deste como um processo sensível, assim novas situações foram criadas, dessa forma “seria possível inclusive o desaparecimento do passo na materialidade da dança criada, mas ele permanece fantasmagoricamente, imaterialmente no processo de criação” (AMOROSO, 2017, p. 241).

Busquei experimentar um aquecimento focado no aterramento e sequencialmente o sentido de festa com a repetição do passo até a exaustão. Neste momento da experimentação a apropriação do ritmo, do passo e do jogo espacial era tamanha, que, além de trazer para cena a informalidade dos corpos encontrados nas festas, as possibilidades de movimentação transcenderam aos passos tradicionais proporcionando um largo repertório de movimento. A Mostra de resultado foi no dia 5 de dezembro de 2015 no Teatro Lourival Baptista, às 15h, com o trabalho intitulado “A pareia é boa com 1, 2, 3, 4, 5?”.

Imagem 29: Alunos na mostra UFS dançando “A pareia é boa com 1,2, 3, 4,5?”

Imagem 31: Alunos na mostra UFS dançando “A pareia é boa com 1,2, 3, 4,5?”

Este resultado, diferente de outros processos até então vivenciados, chegou próximo do que acredito ter um entendimento de festa e uma compreensão de uma estética negra como discurso. A partir do próprio passo do Samba de Pareia, suas repetições até a “exaustão” trouxeram encruzilhadas que transcenderam o próprio passo, através do qual as duplas formadas aleatoriamente se comunicavam com passos parecidos ou com outro tipo de interação com carregas, corridas etc. o ritmo aparecia com pausas e ao invés dos pés as mãos que o promoviam no chão. A variação do sapateado também foi outra observação com os dois pés simultaneamente, apenas com um pé, alternando os pés e palmas. Apresentou assim uma quebra de limites do samba tradicional da pareia proporcionando outras interpretações do mesmo sem perder seu entendimento afro-centrado.