• Nenhum resultado encontrado

Anedota (Chreia)

No documento Download/Open (páginas 48-51)

1. ORIGENS DO FOLCLORE NARRATIVO NO MUNDO GRECO-ROMANO E SEUS

1.4. Formas do Folclore Narrativo no Mundo Greco-Romano

1.4.2. Anedota (Chreia)

As anedotas são uma forma típica de narrativa curta, utilizada como ilustração em escritos morais e obras de oratória no mundo antigo. O gênero se desenvolveu por meio da tradição de se usar ditos ou feitos de homens e mulheres notáveis do passado como exemplos a serem imitados ou evitados. A forma comum de narrativa anedótica no mundo grego era reconhecida pelo termo chreia (do grego “útil”, “servil”), devido a seu caráter pragmático de ensino prático por meio do exemplo de diversos tipos de pessoas, de imperadores a prostitutas, mas especialmente, filósofos113. Desde o século V AEC atenienses e oradores áticos faziam referência a personagens do passado em discursos fúnebres ou lições com instruções para o

110 BEARD, Mary. SPQR: Uma História da Roma Antiga. São Paulo: Crítica, 2017. p. 460.

111 MORGAN, Teresa. Popular Morality in The Early Roman Empire. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 4, 82-83.

112 MARINHO, 2016, p. 26. 113 HANSEN, 2017, p. 20-21.

futuro; costume esse registrado nas obras de grandes autores como Platão, Xenofonte e Isócrates114.

A estrutura de uma anedota varia segundo o enredo e suas circunstâncias, mas sempre requerendo uma resolução que se apresenta como arremate do questionamento ou zombaria contra o protagonista. Geralmente consistem em uma única cena com dois personagens, o principal e outro menos importante, cuja função narrativa é prover a deixa para uma frase de impacto ou gesto significativo feito pelo personagem principal115. Sua fórmula básica parte de um exercício retórico que Graham Anderson apresenta da seguinte maneira: “O famoso X tem o hábito de fazer Y; perguntado por Z do porque ele faz isso, ele replica, ‘eu preferiria ser ridicularizado por A do que criticado por B’”116.

A atividade se tornou ainda mais popular no mundo helenístico, no qual um dos destaques são as grandes coleções de estórias atribuídas a filósofos cínicos; preservadas em papiros de escolas filosóficas, cujo conteúdo era formado por ditos e anedotas sobre suas vidas; utilizadas nas mais variadas literaturas: poemas épicos, textos históricos, biografias, teorias de oratória e educação117. Sua popularidade se encontrava justamente no caráter satírico e popular que essas estorietas carregavam. Entre esses personagens, se destaca Diógenes de Sinope, cujos episódios pitorescos foram registrados na obra de Diógenes Laêrtios:

Diógenes Laêrtios, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, VI, II.

A alguém que desejava estudar filosofia com ele Diógenes deu um atum e ordenou à pessoa que o seguisse com o peixe na mão. Essa pessoa envergonhou-se de leva-lo, lançou-o fora e foi-se embora. Algum tempo depois o filósofo a encontrou e disse-lhe rindo: “Um atum desfez nossa amizade”118.

A alguns jovens que o cercavam e diziam: “Cuidado para que não nos morda!”, ele falou: “Coragem, rapazes! Um cão não come acelga!”119.

Em certos casos, a estrutura se reduz a ponto de omitir demais personagens da cena, permanecendo apenas o cenário e a descrição da ação exemplar do protagonista. O tom cômico, entretanto, permanece:

114 MORGAN, 2007, p. 122. 115 HANSEN, 2017, p. 20.

116 ANDERSON, 2006, p. 107. Tradução nossa. 117 Ibidem, p. 122-123.

118 DIÓGENES LAÊRTIOS. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres: Tradução do Grego, Introdução e Notas de Mário da Gama Kury. 2ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. p. 161.

Ele costumava fazer tudo em público, inclusive os trabalhos de Deméter e de Afrodite, e se justificava com os seguintes argumentos: “Se fazer as refeições não é absurdo, então não é absurdo fazê-las na praça do mercado.” Costumava masturbar-se em público e ponderava: “Seria ótimo se pudéssemos aplacar a fome esfregando o estômago”120.

Teresa Morgan apresenta algumas similaridades entre as fábulas e as anedotas, especialmente na questão de sua historicidade, pois neste tipo de conto a facticidade não importa, mas tão somente o valor moral do fato que está sendo narrado121. Apesar de serem calcadas na cultura popular, se aproximando das fábulas, as estórias exemplares provavelmente possuíam um meio de circulação mais restrito, por terem uma aparente especificidade ao relacionar figuras históricas a contextos específicos (romanos para romanos, gregos para gregos etc.)122. No entanto, essas fronteiras nunca são perfeitamente definidas, sendo que, no âmbito da moralidade popular, os mesmos valores e virtudes (sendo a coragem o seu paradigma) expressados em uma anedota podem ter outras configurações em diferentes locais, por diferentes grupos. Ainda que um mesmo conjunto de valores seja explorado e defendido nessas pequenas peças de sabedoria popular, seu registro as coloca na literatura voltada à educação dos estratos sociais elevados do mundo greco-romano, denotando que certos conceitos (como autocontrole, amor etc.), possam ser nominalmente intercambiáveis entre diferentes grupos e gêneros da sabedoria popular, mas cuja prática decorrente se expressa de maneiras diferentes, dependendo dos grupos sociais onde circulam123.

Assim, apesar de sua raiz oral e popular, as anedotas foram amplamente utilizadas como recursos de instrução e educação da elite no mundo romano. Muito disso se deve ao processo de circularidade desse material por autores que os utilizaram com recurso em seus trabalhos de educação filosófica. Valério, um dos maiores compiladores romanos da chreia (em latim,

exempla), tinha como destinatários imediatos de sua obra o imperador Tibério e o cônsul Sextus

Pompeius, e seus leitores eram em gente pertencente às elites romanas. Em sua obra, as anedotas recebem certo verniz aristocrático, sendo utilizadas como ilustração apologética de valores elevados124. 120 Ibidem, p. 169. 121 MORGAN, 2007, p. 128. 122 Ibidem, p. 157. 123 Ibidem, p. 157-159. 124 Ibidem, p. 126-129.

No documento Download/Open (páginas 48-51)