• Nenhum resultado encontrado

Fábula

No documento Download/Open (páginas 45-48)

1. ORIGENS DO FOLCLORE NARRATIVO NO MUNDO GRECO-ROMANO E SEUS

1.4. Formas do Folclore Narrativo no Mundo Greco-Romano

1.4.1. Fábula

Numa definição geral, a fábula é uma pequena narrativa, de enredo simples, geralmente protagonizada por animais, contendo uma máxima moral ou lição de vida. No mundo grego, a fábula teve denominações distintas e certa fluidez de sentidos, dependendo do período. Ainos, utilizado no período arcaico (séc. VIII-V AEC), logos no período clássico (séc. V-IV AEC) e

mythos, do período helenístico em diante (a partir do séc. IV AEC)98. Materiais fabulares já aparecem na poesia de Hesíodo e Homero, fruto da recepção de uma longa tradição oral. Apesar de alguns autores antigos utilizarem essas nomenclaturas de forma indistinta, o ainos pode ser compreendido como uma forma inicial no desenvolvimento da tradição fabular. Hesíodo e Arquíloco se referem aos mesmos tipos de materiais como ainoi, ao se referirem a certas narrativas que funcionam como recurso retórico integrado a um corpo poético maior, diferente do que será visto em coleções posteriores.

Na poesia arcaica a presença do ainos é uma via de mão dupla. Hesíodo lança mão do

ainos como importante instrumento retórico, ao mesmo tempo em que, em Homero, o recurso

não aparece99. Há uma dupla razão para isso. Hesíodo, ligado ao mundo do campo, recorre à fábula como forma de retórica importante. Ela se liga às formas populares de apreciação, especialmente por sua transmissão. A fábula animal tinha como principal veículo de transmissão oral os jambógrafos, poetas satíricos que utilizavam métrica jâmbica (diferente da poesia épica em versos hexâmetros). A diferença entre a poesia épica e a jâmbica está no universo de interesses e comicidade que as atravessa.

Nos épicos, a fábula é utilizada de modo discreto, como episódio moralizante e ilustrativo, enquanto nos jambos, elas adquirem perfil baixo, popular, satírico e antiaristocrático; diferente dos registros elevados e heroicos da épica100. Depois de Hesíodo, a

coleção de fábulas animais mais antiga que chegou a nós foi a de Arquíloco, jambógrafo e soldado grego que teria vivido entre 680 e 640 AEC. Sua coleção de fábulas tinha função “parenética”: seus protagonistas, oriundos dos mundos animal e vegetal, se envolviam em

98 HANSEN, William. Across the Genres: Ancient Terms, Bilief, and Relative Numbers. In: HANSEN, William. (Ed.). The Book of Greek and Roman Folktales, Legends & Myths. Princeton: Princeton University Press, 2017. p. 423.

99 CORRÊA, Patrícia da Cunha. Um Bestiário Arcaico: Fábulas e Imagens de Animais na Poesia de Arquíloco. Campinas: Editora Unicamp, 2010. p. 22.

alguma ação cujo objetivo era a exortação e auxílio101. Apesar disso, há certa ambiguidade nesse objetivo, que se deriva do teor satírico e popular dos jambos. No ainos, Arquíloco se dirige a um personagem com o intuito de, ao mesmo tempo, admoestá-lo e satirizá-lo102. Como

recurso fundamental, os animais são instrumento para metáforas e imagens aristocráticas, cômicas e eróticas.

No final do século VI AEC, a fábula já estava fundamentada como gênero independente, do qual Esopo foi seu maior porta-voz. Em sua coleção, os animais também estão em destaque, mas há aqui uma diferença importante em relação a Arquíloco. Esopo denomina suas estórias como mythos e logos, diferente do ainos satírico. Aqui, a moral e a instrução tem objetivos específicos, e o exemplo negativo é a chave interpretativa da narrativa. Sua moralidade popular é orientada à cautela da gente simples diante dos poderosos. Se aproxima, assim, de Hesíodo em relação a vida a partir do contentamento com o possível. A vida é pintada por Esopo em tons negativos, a partir de exemplos que não devem ser seguidos, e do cuidado com as reviravoltas, ironias e falsas expectativas. Os animais quase sempre encarnam traços humanos ou são apresentados segundo suas características típicas, às vezes invertendo de forma irônica esses mesmos traços103.

As Rãs Pedindo um Rei

As rãs, aflitas com a própria anarquia, enviaram embaixadores a Zeus pedindo que as presenteasse com um rei. Ele então, ao ver o jeito simplório delas, lançou um pedaço de pau ao lago. As rãs, a princípio atordoadas com o barulho, mergulharam até o fundo do lago. Depois, porém, com o pau imóvel, vindo à tona chegaram a tamanha desconsideração que subiram nele e aí se sentaram. Indignadas então por terem tal rei, foram uma segunda vez a Zeus, solicitando que lhes trocasse o líder, pois o primeiro era muito parado. E Zeus, zangado com elas, enviou-lhes a cobra d’água, pela qual foram capturadas e devoradas. A história mostra que é melhor ter líderes lerdos e nada perversos do que turbulentos e maldosos104.

O Leão e o Rato Agradecido

O rato passeava sobre o corpo do leão, que dormia. Este, porém, depois de se levantar e o capturar, já se preparava para devorá-lo. Mas, com o outro pedindo que o deixasse ir – e dizendo que uma vez salvo retribuiria o favor –, rindo o soltou. E aconteceu de ser salvo, depois de não muito tempo, pela gratidão do rato. Pois quando foi pego por uns caçadores e amarrado com uma corda a uma árvore, o rato, nesse momento, ouviu o outro gemer, veio até ele, roeu a corda e, soltando-o, disse: “Antes você riu assim de mim, por não esperar receber a retribuição da minha parte. Mas agora fique sabendo

101 Ibidem, p. 19. 102 Ibidem, p. 24-25.

103 MALTA, André. Apresentação às Fábulas de Esopo. In: ESOPO. Fábulas, Seguidas do Romance de Esopo. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 13-16.

que também entre os ratos existe gratidão”. A história mostra que, com as reviravoltas das circunstâncias, os extremamente fortes se tornam necessitados dos mais fracos 105.

Até o século IV AEC, as fábulas de Esopo já haviam sido referenciadas por Heródoto, Platão, Aristóteles, Sócrates e o comediógrafo Aristófanes. Sua importância foi tamanha que, a partir do século III AEC, toda fábula registrada da qual se desconhecia o autor era somada ao corpo literário atribuído a Esopo106. O fato de novas fábulas serem, posteriormente, descobertas e acolhidas na tradição esópica parece marcar a circulação oral desses materiais, permanecendo mesmo após a instituição da fábula como recurso didático na paideia grega e na educação filosófica. Além disso, fábulas, como os demais gêneros folclóricos, se desdobram em diferentes formas em seu processo de transmissão.

Apesar da estrutura curta e simplificada das narrativas, as fábulas têm um considerável potencial de desenvolvimento para além do mero recurso retórico e exemplo pessoal. Um exemplo interessante é o da Batracomiomaquia, epopeia satírica produzida no período helenístico que parodia a Ilíada de Homero, ao contar a guerra de Tróia travada por sapos e ratinhos, cujo incidente inicial se sobrepõe à fábula dos sapos e a cobra d’água107. Ao mesmo

tempo, uma grande coleção de provérbios e ditos sapienciais pode ter sua transmissão oral independente do conjunto narrativo que compõe uma fábula. Em muitos casos, as curtas estórias narradas de uma fábula eram interpretadas como mero caminho para que o aforismo ensinado em seu final fosse captado de modo contundente108.

Aos poucos essa tradição é assimilada pela educação formal da elite urbana grega, tendo fixação escrita em compilações e manuais de retórica e educação moral. Em Roma, os textos de Fedro, escritor e tradutor latino de Esopo do início do século I EC, se destinavam à apreciação da elite culta, cujo ato de leitura ocorria muitas vezes em ambientes restritos, como escolas, reuniões em casas, círculos literários e bibliotecas particulares109. Seu conteúdo, estórias curtas de pequenos animais interagindo com grandes feras, humanos e divindades, era encarado como instrumento de edificação moral, e fazia parte da educação formal greco- romana, a paideia. Para a plebe, as fábulas animais eram um verdadeiro recurso de sobrevivência, uma autoimagem da fraqueza do povo diante de um Estado que deixava a

105 Ibidem, p. 51.

106 MARINHO, Luciana Antonia Ferreira. Uma Conversa com as Fábulas de Fedro. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2016. p. 43-44. 107 ANDERSON, 2006, p. 98.

108 MALTA, 2017, p. 15. 109 MARINHO, 2016, p. 25

população vulnerável. Seu ensinamento é claro, aos menos poderosos, resta o consolo de que estarão a salvo se se manterem discretos. A esperança do mais fraco é ser esperto. Mary Beard ilustra bem o papel da fábula na educação prática da plebe romana, ao afirmar que

Muitas dessas histórias captam de maneira perspicaz as injustiças da sociedade romana e o ponto de vista daqueles que estavam embaixo, confrontando os pequenos animais do mundo, como raposas, sapos e carneiros, às criaturas de poder, representadas por leões, águias, lobos e falcões. [...] No geral, a mensagem contrasta muito com as fantasias otimistas em jogo. A única opção real, segundo insistem ensinar muitas dessas fábulas, é aceitar pacientemente o destino reservado a cada um110.

Essa esperteza, no entanto, é individualista, já que nas fábulas em que a cooperação, confiança, amizade e honestidade para com o outro são um destaque, seus personagens falham ou são vítimas de embustes. Nesse mundo hostil, os deuses pouco ou nada fazem pelas pessoas111. Essas diferentes formas de representação dentro do mesmo espaço social só foram

possíveis porque os mesmos materiais circulavam simultaneamente tanto entre a elite, por meio da educação formal, quanto entre os estratos sociais baixos, pela atividade de oradores que adaptavam as fórmulas narrativas para o grande público, além da adaptação das fábulas para o teatro; espaço em que, mesmo que separados, elite e plebe participavam112.

No documento Download/Open (páginas 45-48)