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Animais como Alegoria na Obra de Filo de Alexandria

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3. APONTAMENTOS SOBRE O IMAGINÁRIO ANIMAL NO CRISTIANISMO

3.3. Animais como Alegoria na Obra de Filo de Alexandria

O judaísmo também não se furtou desse debate. A questão da natureza e racionalidade animal foi marcada em sua literatura a partir da rica presença animal contida em seus textos sagrados. Do mito da criação às leis dietéticas da Torá, os animais também se constituíam como um tabu, ao mesmo tempo em que funcionavam como mecanismos simbólicos à retórica religiosa da tradição do judaísmo tardio. Aqui, Filo de Alexandria teve papel fundamental, especialmente em razão de sua obra De Animalius (Sobre os Animais), além de sua exegese alegórica de grande impacto da leitura e interpretação dos textos bíblicos pela tradição patrística. Em De Animalibus, Filo dirige uma particular reflexão a seu sobrinho Alexandre, defensor da presença do lógos na vida animal. As versões latinas da obra são mais tardias, sendo o texto original grego preservado apenas em pequenos fragmentos, a partir de uma tradução armênia datada entre os séculos VI e VIII274. Apesar disso, encontramos na obra reflexos claros da polarização estoico-platônica da discussão, em cujo contexto cultural a própria produção filosófica de Filo estava imersa.

A obra é dividida em seções que alternam argumentos de Alexandre e as respostas de Filo, pelas quais o filósofo judeu claramente se posiciona de modo muito aproximado às

273 PERKINS, Judith. Animal Voices. Religion & Theology. v. 12, n. 3-4, 385-396, 2005. p. 388. Tradução nossa. 274 NEWMYER, 2013, p. 11.

resoluções estoicas. Um exemplo é sua concepção de que existem dois tipos de razão, uma que salta da alma para a mente, e outra que percorre os lábios, língua e audição. Para Filo, as duas formas de razão podem ser encontradas nos animais, mas de modo imperfeito275.

Em uma das poucas referências religiosas de seu tratado, Filo adverte ao perigo ligado à admissão das ideias de Alexandre. Para Newmyer, no parágrafo que encerra De Animalibus, Filo aproxima duas tradições importantes em sua obra: estoicismo e judaísmo. A partir da ideia de “parentesco” aplicada pelos estoicos para a separação humano-animal, Filo reafirma a posição religiosa de que a atribuição da razão aos animais se configura como sacrilégio diante do esquema da criação de Deus, que concedeu posição especial aos seres humanos276.

Nas linhas finais do texto, Filo afirma o seguinte: “atribuir autocontrole sério a criaturas indiferentes e quase invisíveis é insultar aqueles que a natureza dotou com a melhor parte”277.

A ideia do autocontrole também tem origem estoica. De acordo com os estoicos, os animais são incapazes de dar ou suspender consentimento de seus próprios atos. Nisso as bestas conseguem se igualar aos humanos apenas em parte, no caso do poder de julgamento de uma criança, por exemplo. Assim como um animal, a criança é incapaz de julgar atos próprios e alheios, contudo, a potencialidade da razão é o que determina a separação entre sua forma temporária de inaptidão daquela permanente a qual os animais estão submetidos278.

Outro aspecto importante do pensamento de Filo para a discussão animal no cristianismo primitivo é sua exegese alegórica da Septuaginta. A alegoria como forma de interpretação surge primeiramente no período helenístico, a partir da necessidade de superação da leitura literalista dos mitos, em razão da substituição da ideia do divino pela do lógos racional279. Os estoicos foram pioneiros na elaboração alegórica do mito, ao buscarem

“encontrar, atrás do sentido literal, um significado mais profundo”280. O conceito de lógos

aplicado por Filo é eclético, tendo referências tanto do médio-platonismo quanto da tradição cabalística, passando pelo próprio estoicismo. De acordo com os estoicos, toda interpretação alegórica parte da compreensão literal de uma expressão, de seu referencial etimológico281.

275 Ibidem, p. 13.

276 NEWMYER, 2013, p. 30. Tradução nossa. Destaque do autor. 277 Ibidem. Tradução nossa.

278 Ibidem, p. 85.

279 ADRIANO FILHO, José. A interpretação Alegórica de Filo de Alexandria do Antigo Testamento. 2012. p. 1. Disponível em: <http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pdf/st5/Adriano%20Filho,%20Jose.pdf>. Acesso em: 23 jan. 2019.

280 Ibidem. 281 Ibidem.

Desse modo, nenhuma palavra é arbitrária, mas contém em si a forma materializadora de seu referente no mundo. O lógos para Filo é expressão criadora de Deus, cuja palavra pronunciada “contém” os elementos que compõem o mundo, a partir de seu pronunciar. De acordo com Moraes, na filosofia de Filo, o “Logos não é mais apenas a mente de Deus, nem é mais, enquanto Palavra, a simples forma da linguagem divina, mas o instrumento pelo qual a mesma se realiza enquanto coisa”282.

Essas definições sobre o lógos em Filo são importantes para entendermos de onde se origina sua percepção da natureza animal. Em seu comentário ao Gênesis, ao tratar da cena em que Adão nomeia os animais, Filo afirma o seguinte:

Então Moisés diz que Deus trouxe todos os animais para Adão, desejando ver que denominações ele atribuiria a eles separadamente. Não que ele estivesse em dúvida - pois para Deus nada é desconhecido -, mas porque Ele sabia que Ele formou no homem mortal a habilidade natural de raciocinar por sua própria iniciativa, para que Ele mesmo não tivesse participação em ações errôneas. Não, Ele estava colocando o homem à prova, como um professor faz com um aluno, estimulando sua capacidade inata, e o chamando para apresentar alguma faculdade própria, que por sua própria habilidade o homem poderia conferir títulos de maneira alguma incongruentes ou inadequados, mas trazendo claramente os traços das criaturas que os criaram283.

Em outro texto, ao tratar da mesma passagem de Gênesis, Filo afirma que a visão que Adão teve dos animais precedeu sua nomeação, denotando que o nome dado a cada criatura corresponde exatamente à substância criada por Deus: “pode ser que, pelos olhos, as Escrituras simbolicamente indiquem a visão da alma, através da qual somente são percebidas todas as coisas boas e más, nobres e vergonhosas, e todos os opostos”284. Em outras palavras, o ato (ou

poder) de nomear dado por Deus é estabelecido por aquilo que Adão vê “pela alma”, logo, os animais são denominados a partir do que eles são, a priori, bons ou maus. Essa concepção tem relação com o simbolismo empregado por Filo aos animais listados como impuros, nas leis dietéticas de Levítico. Um exemplo é o tipo de justificativa alegórica dada à presença de animais com cascos na lista de criaturas impuras:

Portanto, todas as criaturas cujos cascos são uniformes ou multiformes são impuras; uniformes porque significam a ideia de que bons e maus têm uma mesma natureza, o que é como confundir côncavo e convexo ou subida e descida em uma estrada, multiformes pois nossa vida tem muitas estradas, que não são estradas, para nos

282 MORAES, Dax. O Logos em Fílon de Alexandria: a Fronteira entre o Pensamento Grego e o Pensamento Cristão nas Origens da Teologia Bíblica. Natal: Edufrn, 2017. p. 228.

283 PHILO. On the Account of the World’s Creation by Moses (De Opificio Mundi). In: GOOLD, G. P. (Ed.). Philo – Volume I. Cambridge: Harvard University Press, 1981. (Loeb Classical Library). p. 119. Tradução nossa. 284 PHILO. Questions and Answers on Genesis. In: GOOLD, G. P. (ed.). Philo – Supplement 1. Cambridge: Harvard University Press, 1993. (Loeb Classical Library). p. 23. Tradução nossa.

enganar, pois onde há uma multidão para escolher não é fácil encontrar o caminho melhor e mais útil285.

De modo semelhante, o consumo de sangue e gordura animal (Lv 7.22-27) é também justificado por Filo de modo alegórico, a partir da relação entre tipos específicos de carne animal e certo “despertar de paixões”:

Ao mesmo tempo, ele também negou aos membros do povo santo liberdade irrestrita de usar e participar de outros tipos de comida. Todos os animais da terra, mar ou ar cuja a carne é a mais aprazível e gordurosa, estimulando e excitando o prazer maligno do inimigo, proibiu-os severamente de comer, sabendo que elas preparavam uma armadilha ao mais servil dos sentidos, ao gosto e produziam a gula, um mal muito perigoso para alma e corpo. Pois a gula gera indigestão que é a fonte e origem de todas os destemperos e enfermidades. Agora, entre os diferentes tipos de animais terrestres, não há nenhum cuja carne é tão deliciosa como a do porco, como todos os que a comem concordam, e entre os animais aquáticos o mesmo pode ser dito de espécies que são sem escamas. Tendo presentes especiais para incitar ao autocontrole aqueles que têm uma tendência natural à virtude, ele os treina e ensina pela frugalidade e pelo simples contentamento, e se esforça para se livrar da extravagância. Ele não aprovou nem austeridade rigorosa como o legislador espartano, nem a vida delicada, como aquele que introduziu os jônios e os sibaritas para práticas luxuosas e voluptuosas. Em vez disso abriu uma via a meio caminho entre os dois286.

A partir de sua forma de interpretar os animais, Filo de Alexandria abriu caminho para que escritores cristãos posteriores acessassem o debate filosófico sobre os animais a partir de seu consistente amparo interpretativo na tradição bíblica.

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