• Nenhum resultado encontrado

Os Atos Apócrifos dos Apóstolos entre o Romance e o Folclore

No documento Download/Open (páginas 70-73)

2. PERCURSOS E EXPRESSÕES DO FOLCLORE NO CRISTIANISMO PRIMITIVO:

2.2. Os Atos Apócrifos dos Apóstolos entre o Romance e o Folclore

Uma das marcas do processo de produção e circulação de literatura no período helenístico foi o cosmopolitismo, e um dos gêneros mais importantes nascidos no seio desse movimento foi o romance. Já no período de dominação romana (que preservou as estruturas culturais e administrativas do helenismo), por volta do século II AEC, o romance helenístico se tornou popular e foi um importante catalizador de tendências literárias até o fim da Antiguidade Tardia. O gênero é composto basicamente por narrativas envolvendo um casal apaixonado, que enfrenta desventuras para enfim se unir em matrimônio. Essas aventuras envolvem fugas, escapadas espetaculares de situações de risco, separações e reencontros, naufrágios, visita a países distantes, entre outras coisas. Segundo Mikhail Bakhtin, todos os elementos que compõem o romance não são inteiramente novos, mas já se encontravam presentes em outros gêneros da literatura antiga. Os motivos amorosos já existiam na poesia grega, a presença de guerras, raptos e naufrágios existiam desde a epopeia antiga; por fim, os relatos de viagem,

descrições de localidades, costumes e meio ambiente eram oriundos das tradições da historiografia grega. Para o autor, o romance refunda em sua estrutura quase todos os gêneros literários gregos178.

Uma novidade empregada no romance helenístico está na forma como este articula espaço e tempo em sua narrativa. Bakhtin utiliza o termo cronotopo para tratar dessa relação, por meio da qual podemos identificar um gênero literário específico. Uma característica do cronotopo do romance é descrita pelo autor como “tempo aventuresco”. Essa forma do espaço- tempo é marcada por um ínterim que se desenrola entre dois pontos: o encontro do herói com a heroína e sua paixão repentina, e a união dos dois em matrimônio, após enfrentarem suas peripécias e desafios. Tudo o que acontece entre esses dois momentos é parte essencial da biografia dos protagonistas, marca seu reconhecimento público como heróis e se justifica na causa da aventura, que é a união dos apaixonados179.

O tempo da aventura é marcado por certa indefinição em relação ao tempo histórico e biológico. Apesar das grandes aventuras, da longa jornada dos heróis, tudo parece permanecer no mesmo instante. Os heróis permanecem em idade matrimonial, as localidades visitadas continuam as mesmas. Para Bakhtin, “nesse tempo nada muda: o mundo permanece o mesmo; em termos biográficos, a vida dos heróis também não muda, seus sentimentos permanecem igualmente inalterados, nesse tempo tampouco as pessoas envelhecem”180. Essas narrativas são

entrecortadas por diferentes sequências, como se fossem episódios. Bakhtin compreende esses pequenos fragmentos como correspondentes a aventuras isoladas, nas quais o tempo se organiza tal como o todo do enredo, onde aspectos temporais precisos, como dias, horas e minutos, são inseridos e cruzados por temporalidades indefinidas, identificadas por termos como “súbito” e “justamente”181. Essa relação de entrelaçamento de diferentes temporalidades é o que parece

relacionar o romance helenístico com os gêneros da tradição clássica, ainda que de forma invertida e caricata.

Essa relação se dá, como vimos a pouco, pelo fato do romance ser um gênero por meio do qual tendências literárias variadas são catalisadas e transformadas. Além dos motivos amorosos, eróticos e aventurescos originários dos grandes gêneros clássicos, temos uma relação

178 BAKHTIN, Mikhail. Teoria do Romance 2: as Formas do Tempo e do Cronotopo. São Paulo: Editora 34, 2018. p. 18.

179 Ibidem, p. 19. 180 Ibidem, p. 21. 181 Ibidem, p. 22.

profunda entre o romance helenístico e as tradições populares orais. Esses materiais, inclusive, foram reproduzidos em traduções latinas de ampla circulação, como aponta Koester:

Muitos elementos são emprestados da aretologia, da paradoxografia e de popularizações da etnografia, zoologia e farmacologia, que enfatizavam muito tudo o que era curioso e peculiar. Assim encontramos milagres e paradoxa, demônios e magia, aparições de pessoas mortas, animais falantes, viagens espantosamente velozes de navio, países e povos estranhos, crateras abrindo-se inesperadamente na terra, e até a aclamação do herói e da heroína como deuses. Discursos religiosos e moralizadores pronunciados pelo herói, a vitória sobre perigos e perseguições, ordens divinas, oráculos e sonhos – todos aspectos que podem ser encontrados na historiografia inferior – são elementos genuínos do romance182.

Essas formas fantásticas apresentadas por Koester demonstram fortes relações com materiais mitológicos e folclóricos. De acordo com Bakhtin, o romance helenístico se baseia no que chama de “tempo mitológico-popular”, por meio do qual o protagonista humano é delineado por meio de uma poderosa identidade unificadora entre tempo e espaço. No romance, os heróis são deslocados no tempo e espaço por forças exteriores (fugas, buscas, perseguições), sendo “vítimas” do que o destino lhes reserva. Ao mesmo tempo, ainda que sofrendo essas ações, os heróis conservam sua integridade e também operam como condutores da ação, pois por meio dos revezes do destino, reafirmam sua identidade consigo mesmo183. Essa identidade que media tempo e espaço, no romance, é um elemento folclórico importante para Bakhtin:

Essa peculiar identidade consigo mesmo é o centro organizativo da linguagem do homem no romance grego. E não se pode diminuir a importância e a especial profundidade ideológica desse elemento da identidade humana; nele, o romance grego está vinculado às profundezas do folclore anterior à sociedade de classes e se apodera de um dos elementos substanciais da ideia popular de homem, a qual vive até hoje em diferentes modalidades de folclore, sobretudo nos contos populares. Por mais empobrecida e esvaziada que seja a unidade humana no romance grego, ainda assim nela se conserva um precioso grão de humanidade popular, transmite-se a fé no poderia indestrutível do homem em sua luta contra a natureza e todas as forças não humanas184.

Os heróis do romance são “enfraquecidos”, do ponto de vista de seu potencial de mediação. Eles são mediadores por reafirmar sua identidade mesmo no processo de deslocamento espaço-temporal. Integram espaço e tempo na construção de sua imagem heroica, para serem então reconhecidos como tais ao final da narrativa. Podemos afirmar, portanto, que ainda que o herói do romance seja esvaziado dos elementos de mediação presentes no herói cultural folclórico, este ainda se sobrepõe por meio do próprio elemento de mediação. Mediação essa que se dá por meio de motivos folclóricos chamados por Bakhtin de “complexo basilar de

182 KOESTER, 2005a, p. 143. 183 BAKHTIN, 2018, p. 38. 184 Ibidem, p. 38-39.

motivos”: encontro/separação, buscas/obtenção e provação185. Por meio desses elementos

podemos acessar os estratos folclóricos presentes no romance helenístico e em outros materiais derivados do gênero.

O cristianismo primitivo soube fazer uso do romance helenístico para articular suas memórias e identidades. As memórias apostólicas das primeiras gerações cristãs foram preservadas e reelaboradas de modo especial a partir de formas emuladas do romance helenístico. Encontramos esse uso de maneira especial nos Atos Apócrifos dos Apóstolos, conjunto de materiais produzidos a partir dos séculos II e III EC e que tomam os temas e estrutura de enredo do romance para produzir narrativas muito vivas a respeito dos apóstolos em sua missão. Para Nogueira, nos Atos Apócrifos encontramos formas de como os cristãos articulam suas identidades e de modo inventivo e imaginativo, como constroem representações de si e do mundo social, a partir de categorias mentais e formas e expressão típicas do mundo subalterno. Como já apontado por Bakhtin, se no romance helenístico sobrevivem estratos folclóricos, a partir de seus modos narrativos e estruturas de enredo, não seria diferente na literatura cristã, já que estes se valem dos mesmos modelos e categorias de narração. Portanto, nos Atos Apócrifos dos Apóstolos encontramos as primeiras recriações cristãs do folclore antigo186. Mas como essa recriação se dá? Quais evidências folclóricas podem ser claramente apontadas na literatura dos Atos Apócrifos? Para responder essas questões, vamos analisar algumas fontes cujos elementos folclóricos parecem bastante evidentes e possíveis de serem comparados.

No documento Download/Open (páginas 70-73)