• Nenhum resultado encontrado

1. NAS FRONTEIRAS DO TEMPO

1.3. Anjos da morte

Lidar com o tempo nas narrativas é também lidar com a memória. A fala oral está sempre impregnada de memória. Nas conversas estamos em contato direto com modos como as pessoas costumam significar o passado, marcar e usar o tempo. Compreendê-los e explicá-los requer mais do que uma atenção as diferentes temporalidades e suas mútuas relações em processos históricos específicos; requer apreender maneiras como as pessoas, com quem falamos, dividem, significam e usam o tempo.73

Analisando as memórias dos narradores, é possível afirmar que o tempo dos anjinhos possui enigmas. Está atrelado aos mistérios dos Céus e é repleto de enunciações no mundo terreno. O anjo é “um evento criador de temporalidades”.74 Ao estudar o caso de

Mayane, um detalhe importante na fala de Dona Toinha vem à tona. Segundo ela:

Dona Toinha: É sarafim. Anjo sarafim. O que morreu sem se alimentar com

nada é anjo sarafim. Essa menina de Mayane é anjo sarafim. Já nasceu morta.

Joaquim: É melhor do que os outros? Como é que é?

Dona Toinha: É. Que vai pro Céu direto, porque é anjo Sarafim.

A menina ainda tava imaginando como é que eu ia descascar o jerimum porque tava gelado. Eu disse:

— Deixe aí que eu vou descascar. Descasquei.75

Momentos antes de comentar que terminara de descascar todos os jerimuns fatiados e postos sobre a mesa, na qual ladeávamos e tecíamos a conversa, Dona Toinha informou sobre os anjos sarafins. Eles são puros por natureza, pois são aqueles que nasceram mortos, logo, não se alimentaram em vida. A ausência do alimento é um ponto importante na construção das criaturas angélicas e na narratividade da bisavó de Maya.

Na narrativa da avó de Mayane, esse tipo de criatura voa diretamente para o Paraíso e integra a primeira ordem ou coro angélico, como oficialmente os anjos serafins foram construídos no catolicismo e elucidados a partir da análise de Delumeau sobre as historicidades fabricantes do Paraíso.76 É importante lembrar que esse não é um saber específico trazido à

baila por Dona Toinha. Outros narradores também usaram o termo Sarafim para atribuir

73 KHOURY, Yara Aun. Muitas memórias, outras histórias: cultura e o sujeito na história. In: FENELON, Déa

Ribeiro et al. Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho D’água, 2004, p.128.

74 CERTEAU, Michel. A fábula mística. Op. Cit., p. 277.

75 Entrevista realizada com Antônia Rodrigues, em 04/04/2015, na residência de Mayane, bairro Vila Alta, Crato.

p. 8.

sentidos àqueles que de nada se alimentaram. À guisa de exemplo, a narrativa do agricultor Luís André é bastante elucidativa:

Luiz André: Meu Deus tem um nome desses, tem um nome. [Silêncio]. Num

tô alembrado não. É um nome quase assim que nem virgem, uma coisa assim. Que nem se alimentou-se com o leite da mãe. E nem comeu nada. Só o vento da mãe dele. Tem um nome. Tem um nomezinho. Parece que é sarafim, é, é, é. Sarafim. Que ali só se alimentava com o alimento que a mãe dele se alimentava. Passava pra ele, como é, o vento da mãe dele. Aí nem mamou, nem se alimentou-se, e nem comeu nada. Só o vento da mãe dele. Aí chama o anjo sarafim.

O primeiro menino da minha esposa, era uma menina, nasceu morta também. Aí naquela época, era as mulher que assistia com as outras né, chamava parteira. Aí a criança foi e nasceu morta. Aí ela foi e disse, a parteira foi e disse:

— Ó Luiz aqui é um anjo sarafim, nasceu morta. Aí né [Silêncio].

Joaquim: E ela vai pro Céu também?

Luiz André: Vai pro Céu. Vai pro Céu. É o mais chamado por Deus. Deus

chama mais esses anjos de que mesmo esses outros que já amamenta, né.77 Para esse agricultor, primeiro Deus chama os sarafins para habitarem os resplendores celestiais antes de convidar as demais crianças nascidas vivas. Consoante tais palavras, esses anjos têm prioridades e são escolhidos por excelência, fatores reveladores das suas singularidades. Nesse ínterim, os critérios a partir dos quais Deus escolhe os serafins e os chama para seu Reino ficam resguardados sob seus mistérios.

Tal qual a narrativa de Dona Toinha, a fala do narrador toma como elemento central o alimento, termo referido várias vezes. É importante considerar que a alimentação foi inclusa num campo de relações com o mundo sobrenatural. Em outros termos, o alimento foi imerso numa rede de relações culturais complexas marcadas por seleções, prescrições e restrições, cujo equilíbrio da vida coloca em cena a posição central da comida como um elemento que estabelece os liames entre as esferas material e espiritual. Destarte, em outras culturas não cristãs, o alimento pode carregar espíritos malignos para o interior dos corpos, como Chiara Vangelista e Claude Lévi-Strauss registraram.78

É possível destacar que a questão da temporalidade, entendida como a percepção e organização subjetiva do tempo, está implícita nas entrelinhas da narrativa, por dois motivos centrais. Em primeiro lugar, por conta do chamado de Deus, dado que os anjos sarafins são os

77 Entrevista realizada com Luiz André Tavares, em 28/04/2015, na sua residência, bairro Campo Santo. Porteiras

p. 19.

78 VANGELISTA, Chiara. A comida, o corpo, a alma: sensibilidades cruzadas nas missões Salesianas entre os

Bororos (século XIX-XX). In: RAMOS, Alcides Freire; MATOS, Maria Izilda Santos de; PATRIOTA, Rosangela (Orgs.). Olhares sobre a história: culturas, sociabilidades, sensibilidades. São Paulo: Hucitec, 2010, p. 233.

primeiros convidados a seguirem os percursos ascendentes ao etéreo. Em segundo, tem-se a ausência da interação da criança com o mundo dos vivos, visto que ela não entrou em contato com a dimensão profana da existência, pois, não tivera tempo.

Como aqueles que nasciam mortos no passado e, igualmente, nascem falecidos no presente, não tiveram o tempo necessário para se alimentar, seja com comidas produzidas no mundo terreno, ou tampouco com o leite materno, eles são apresentados como diferentes dos demais anjos. Foram rápidos ao morrerem antes de nascer. Isto é, são desnascidos. Nessa perspectiva, o tempo lhes beneficiou com a bem-aventurança.

Quando em gestação, o sarafim viveu no ventre materno, e, simultaneamente, não viveu no tempo terreno. Para o narrador, como esses anjos não nascem vivos, eles se alimentam apenas do vento da mãe. E o vento por si só não tem pecados. Desse modo, o sarafim viveu e morreu nas fronteiras do tempo. Isto é, nas proximidades temporais de um rito de passagem.

As memórias do entrevistado remetem ao momento em que sua esposa, já falecida, perdeu sua primeira filha, natimorta. A mulher que realizou o parto, identificada apenas como parteira, informou para ele o nascimento do anjinho sarafim. Nesses termos, a parteira, comumente uma mulher das comunidades onde as gestantes residiam ou de suas adjacências e que aprendiam a ajudar a parturiente a dar à luz, obtém um lugar de destaque na narrativa, pois, é ela quem auxilia o rito de passagem e, igualmente, informa ao pai o tempo e a natureza do anjo. Ampliando esses horizontes, as parteiras ocuparam no passado e, em alguns lugarejos mais distantes dos centros urbanos, continuam ocupando no presente, uma posição relevante na construção dos anjos na tradição oral e na ressignificação desses saberes na contemporaneidade.

A narrativa do penitente Nivaldo Santos vai ao encontro das memórias do seu Luiz André. Vejamos:

O espírito vai pro Céu. Alí não tem pecado não. Nem purga porque não pecou. Uma pessoa como, num é nem como o padre, porque o padre peca. Uma pessoa que nunca pecou, nunca, nunca, nunca. Nunca comeu, nunca pisou no chão. É um anjo mesmo alí.79

A falta da experiência material do sarafim fortalece sua santidade. Por esse ângulo, o fato de nunca ter pisado na Terra reforça sua pureza, como se o toque no chão também representasse sua inserção no mundo dos pecados e no terreno da profanidade. Na contextura dessas memórias, como a criatura não comeu e tampouco tocou o espaço mundano, ela merece,

79 Entrevista realizada com Nivaldo Santos, em 05/04/2015, na residência do seu irmão Antônio Sales, sítio

segundo o narrador, a ascensão para o ponto mais elevado do Paraíso e, assim, viver eternamente ao redor de Deus.

As memórias da penitente Maria Generosa acrescentam outros indícios relevantes sobre os sarafins e, outrossim, colocam no cerne desse debate as ambiguidades que os envolvem. Na narrativa, ela disse:

É pagão. A alma do pagão, que num é nem bom, mas é bom, sempre, porque é sarafim, anjo sarafim. Morreu sem se batizar né. Vai, foi anjo vai. Num tem esse negócio de penar não, que nós temos as penas né. Fulano tá penando, sicrano tá penando por isso e aquilo. E às vezes morre devendo a uma pessoa, enquanto a pessoa num paga num se salva né. Apôs é assim. E os outros é sarafim, né? 80

Na arte de tecer a memória, a narradora (con)funde e une os sarafins com os pagãos. Na sua fala, isso não é bom e, concomitantemente, o é. A esse propósito, estes últimos são designados como aqueles mortos sem o recebimento do sacramento católico do batismo. Em face do oposto, mesmo não sendo batizados, esses seres desnascidos são coadunados com os anjos, visto que há divergências e nivelamentos dentro do próprio grupo dos pagãos.

Como as tradições orais seguem ritmos temporais nos quais são entrelaçados processos de mudanças e continuidades, elas são marcadas por ressignificações a partir dos cenários e dos modos como são usadas na cotidianidade.81 Assim, é notório como as memórias

registradas na contemporaneidade se aproximam e se contrapõem, em alguns pontos, aos escritos elaborados no passado a respeito dos anjinhos serafins. Nos escritos do pesquisador pernambucano Pereira da Costa, sobre as décadas iniciais do século XX, consta que:

O recém-nascido que não foi amamentado e morre batizado, não participando, portanto, de coisa alguma deste mundo, é um serafim, anjo da primeira hierarquia celestial, e vai imediatamente para as suas regiões ocupar um lugar entre os seus iguais. 82

Ora, alguns dos fiéis narradores não apontam para o nascimento vivo da criança e tampouco para a obtenção do rito batismal. Na atualidade, a questão central refere-se, dessarte, a não alimentação e ao não contato com o mundo profano, fatos justificados pela falta do tempo. Em linhas gerais, no engenho laborioso da imaginação, a hierarquia entre os anjinhos é definida

80 Entrevista realizada com Maria Generosa, em 18/04/2015, na sua residência, bairro Casas Populares, Porteiras.

p. 13.

81 CRUIKSHANK, Julie. Tradição oral e história oral. Op. Cit., p. 157.

mediante sua maior ou menor interação com os elementos do mundo terreno e, de forma sobremaneira, com as temporalidades que lhes são atribuídas.

No momento em que os narradores falavam sobre os serafins, o pecado original foi silenciado. Este é um mito de origem situado no livro do Gêneses. Ele alude a culpa inerente a cada homem antes mesmo de ele nascer. Segundo esses preceitos, a criatura humana está em falta com Deus em virtude das ações dos seus ancestrais, Adão e Eva, acometidos por desobedecerem à ordem divina. Logo, há nessa lógica o imperativo da culpa de quem nasce e do pagamento de dívida, urdida antes do tempo do nascimento. Todavia, para os anjos serafins, esse pecado não parece obter relevância, projeção ou mesmo continuidade de sentidos.

Para a manicure Cida, a vizinha e amiga de Mayane, as criancinhas que morrem sem beber o leite materno viram anjos diferenciados, embora ela não tenha lembrado a nomenclatura destes no momento da entrevista. Tal líquido é identificado como o primeiro dos pecados mundanos. De tal maneira como outros, ela silencia o pecado original e põe em primazia os elementos adquiridos após o nascimento. Segundo o ditado mencionado pela narradora, esses anjos trazem felicidade:

Cida: É tanto que se morre um anjinho que nunca mamou, aí diz que ... como

é que chama esses anjos que nunca mamou? Porque não vai ser preciso né? Ele foi sem nenhum pecado. Ele foi sem nenhum pecado. Não tem como passar por lá [Purgatório], porque ele não pecou em nada. Em nada, nada, nada. Como tem muitas vezes, as pessoas diz:

— Feliz aquele que tem um anjinho no Céu que nunca mamou, né? Acho que você já ouviu falar. Pois é! Feliz aquele que tem um anjinho no Céu que nunca mamou.

Joaquim: Mais feliz, por quê?

Cida: Porque nunca teve pecado. Nunca pecou. Porque a partir do momento

em que a gente nasce e começa a mamar, aí começa os primeiros pecados. Nossos primeiros pecados é aquele que nós começamos a mamar.83

Palavras similares foram pronunciadas por Cida para Mayana na ocasião do nascimento e da morte de Maya. No enunciado anterior, a mãe da pequenina não entendia como ser feliz com sua natimorta. Trilhando os sentidos dessas memórias, como a felicidade apontada pode ser mensurada na vida dos narradores? Quais os benefícios concretos de se ter um anjinho no cimo da corte das criaturas celestes? Para tentar responder essas questões, vale conferir um trecho da entrevista com Dona Losinha:

O povo dizia que quando morria os anjinhos, cada um anjinho que morria até sete, era sete coros. Disse que era coro. Sete coro de anjos. Que

quem tinha sete coros de anjos no Céu, quando morresse, se salvava. O povo conta essas histórias. Aí eu dizia:

— Aí meu Deus eu num quero que morra nenhum.

Mas morreu cinco filhos meus. Duas mulher e três homens. Já grandinho com dois anos, tudo desidratado, os bichinhos.84

Nas tessituras dessas memórias, a mãe da narradora lhe ensinou, via tradição oral, que tal felicidade se fortalecia caso a mulher tivesse sete anjinhos no firmamento celestial. Eles compunham o coro dos anjos e isso seria um fator de comemoração para a mãe, garantindo, assim, sua salvação. Nesse horizonte de esperança, quando a hora da sua viagem chegasse, ela seguiria para o Reino de Deus e alcançaria a bem-aventurança do Paraíso. Na continuidade da entrevista, Dona Losinha completou:

Se morresse sete crianças, a pessoa tinha um coro de anjo no Céu. Aí eu dizia assim, eu era criança. E aí eu dizia:

— Como é que existe esse coro no Céu? Mãe dizia:

— É porque quando a pessoa tem sete anjos no Céu tem a salvação quando chegar lá.

Mas eu não tenho sete não, eu só tenho cinco. Pois é.85

Nessas memórias, é possível vislumbrar que esses termos não se restringem aos anjinhos sarafins. A entrevistada fala sobre os anjos num sentido amplo, não delimitando suas diferenças. Além disso, essas memórias projetam tais sentidos para o passado vivido na companhia de sua mãe. Contudo, como o coro dos anjos é definido na atualidade e quais são suas relações com os serafins? Sobre esses aspectos, a narrativa da penitente Maria Generosa apresentou detalhes significativos. Vejamos:

Maria Generosa: A criança não tem alma. É anjo. Não. É anjo. Sarafim, anjo

sarafim é aquele que nasce morto. Alí é sarafim. É, sente alí é um coro. É sete é um só. Mais é sete anjos.

Joaquim: Como assim? Não entendi. Como é que é isso?

Maria Generosa: É. O coro de anjo são sete anjos né. Aí um anjo só, nunca

comeu, nunca, nada né, nasceu morto é um coro. É, só um anjo faz sete. E sete é um coro. É coro de anjos. Aí faz que nem coro de anjo luz formosa. Pronto. Já é salva, já é do Céu. Já é salva. Vai direto [para o Céu]. Num passa em nada. Num passa mais não.86

84 Entrevista realizada com Maria Alexandre da Silva, em 02/05/2015, na sua residência, bairro São Miguel, Crato,

p.3.

85Entrevista realizada com Maria Alexandre da Silva, em 02/05/2015, na sua residência, bairro São Miguel, Crato,

p.4.

86 Entrevista realizada com Maria Generosa, em 18/04/2015, na sua residência, bairro Casas Populares, Porteiras.

Conforme essa mulher, tal qual no passado, na atualidade, um coro celeste é composto por sete anjos. Entretanto, em virtude da sua magnitude, o sarafim carrega e compõe um coro angélico em si mesmo. Desta maneira, um anjinho se multiplica em sete e constitui uma luminosidade formosa e sublime na eternidade célica.

Nas memórias, essas criaturas sublimes são dotadas, ainda, de outros poderes especiais. A avó de Mayane nos ajuda a entender essas especificidades:

Joaquim: E o quê que as pessoas diziam quando uma mulher grávida morria? Dona Toinha: Só faz dizer que morreu ainda é feliz. Diz que mulher que

morre de parto é feliz, que se salva. Assim, os mais velhos contam. É, é porque

tá com um anjo na companhia né [silêncio].

Quando eu era nova, assim, quando morria uma pessoa, eu passava a noite lá rezando, cantando o ofício. Achava muito bom. Quando morria uma pessoa, já mandavam logo me dizer, porque sabia que eu ia. E eu ia passava a noite rezando, cantando com aquele defunto. Só vinha pra casa de manhã. Quando morria uma pessoa, quando eu dava fé chegava o recado. Botei vela na mão de muita gente.87

Nesse momento, a pergunta foi projetada para o passado, mas a narradora respondeu sobre o presente, aludindo que a morte vivida no sofrer do parto provoca a felicidade da morta. No tempo presente, o sofrimento e a felicidade são entrecruzados e entrelaçados. A mulher vive o momento com sofrimento, todavia, sua alma segue feliz, visto que tal experiência eleva-a para a companhia dos mortos bem-aventurados.

De certo modo, isso difere dos sentidos outrora difundidos no Ocidente cristão, quando as mulheres falecidas durante ou após o parto (nesse segundo caso, antes das festas de purificação) eram fortes candidatas a virarem fantasmas, como Jean Delumeau analisou. Historiador que se debruçou sobre a construção do medo como objeto da história, ele identificou tal crença na Europa da segunda metade do século XIX, reiterando sua associação àquelas mortas no momento ou na proximidade de um rito de passagem, e que por essa razão, não se realizara. A questão recai, portanto, sobre os mortos situados nos limites do tempo do rito.Não por acaso, e sobre aquele mesmo cenário, os fetos mortos, os abortados e as crianças falecidas antes do batismo cristão eram igualmente inseridos no rol fantasmagórico. Para eles, todavia, o catolicismo foi firmando paulatinamente na noção de salvação. De acordo com Delumeau:

Um elo teria existido, portanto, entre crença nos fantasmas e malogro trágico de um rito de passagem, e até, mais geralmente, entre fantasmas e pontos do espaço ou do tempo cumprindo função de fronteira ou de passagem. (...) Mas

87 Entrevista realizada com Antônia Rodrigues, em 04/04/2015, na residência de Mayane, bairro Vila Alta, Crato.

essa relação entre “passagem” (no sentido mais amplo) e fantasma foi oculta por uma cristianização crescente, que deslocou cada vez mais as perspectivas e insistiu na noção de salvação.88

É justamente a ideia de passagem e a noção de salvação que ganham densidade nas narrativas dos entrevistados. Na contemporaneidade, morrer durante o parto condiz, na visão de alguns narradores, com o tempo de vida destinado por Deus para a parturiente. Por isso, ela falece na sina e na dor do destino que lhes foram designados pelos mistérios divinos. Para o alcance da sua salvação obtém destaque, além do sofrimento vivido na hora da morte, o fato de ela estar na companhia do anjinho serafim, pois ele também faleceu cumprindo a missão e atendendo ao chamado do Todo Poderoso. Nesses termos, é o serafim que possibilita a passagem da morta.

No diálogo com Dona Maria do Horto, essas mortas podem ajudar os vivos, quando estes são perturbados ou correm riscos de serem atingidos por espíritos ou criaturas malignas.

Joaquim: E aquelas mulheres que morrem no parto?

Maria do Horto: Ah, aquelas mulher não se perde, não, mulher que morre de

parto, né?

Joaquim: Elas se salvam?

Maria do Horto: É, ela num se perde não.

Joaquim: A senhora conhece alguma história que fala sobre...

Maria do Horto: Mulher de parto não se perde, por causa da criancinha né? Joaquim: A senhora lembra alguma?

Maria do Horto: Olhe, aqui é caminho das almas. (...)

Sim, nisso a mulher, o romeiro arruma uma romeira pra... D. Francisca tá ali pra contar. Perdeu a hora e era meia-noite, que quando ela passou sozinha, porque no Santo Sepulcro, aí deixa que o negócio, uma coisa saiu do cemitério, mas ela não sabia, deixa que uma mulher, um menininho acompanhou. Sim, mas ela não viu, escute! Mas saiu alguma coisa, que comia, que devorava no cemitério. Ela viu que saía que quando ele chegou lá em cima, durou, durou e aquela, ela falava:

— Me dê esse menino.

Ela não falava. Era uma mulher que tinha morrido de parto, que ia