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1. NAS FRONTEIRAS DO TEMPO

1.2. Entre a alegria e a dor do destino, a fundação de temporalidades

Debaixo do Céu há momento para tudo, e tempo certo para cada coisa: Tempo para nascer e tempo para morrer (Ecl.3,1).

O caso de Mayane coloca em cena e em xeque a crença sobre as almas santas dos anjinhos, secularmente frutificada na cultura religiosa da cristandade, e, igualmente evidenciada nas leituras sobre o tempo da vida e da morte. Dona Toinha, apesar de ela ter falado pouco sobre esse tema, no pouco que foi dito, ela disse muito. Nas suas palavras, é perceptível

como o termo ‘alma’ não é correto para designar a continuação da vida da criança morta em outra dimensão do além.16

Seguindo a expressão entoada pela costureira das mortalhas, “Maya é um anjo”. O uso do verbo ‘ser’ no presente do indicativo evidencia a experiência concernente à criatura angélica. Nessa direção reflexiva, Maya não percorreu ou sofreu um processo de transmigração da sua alma em uma criatura celeste. Ela, por si só, é o anjo. Dito de outro modo, não existe, nesse sentido, a alma angélica, pois a criatura celeste é o que é.

A narrativa da manicure Cida, vizinha e amiga de Mayane, mulher de estatura baixa, casada, nascida no Estado da Paraíba e residente na cidade do Crato desde a infância, reforçou esse entendimento. Eis um pouco da conversa:

Cida: Criança! Eu acho que não tem alma, porque é um anjinho né? Já vai pro

Céu. É tanto que, isso daí, os mais velhos e gente novo também, como minha mãe sabe, que minha mãe já tem idade. Mas eu sei, você sabe, sua mãe sabe, todos sabem.

Joaquim: E o anjo vai direito pro Céu? Cida: Vai. Anjo é anjo, porque são os anjos.17

A definição do anjo a partir da morte da criança ainda é, nos dias de hoje, tão conhecida que Cida dispensa discorrer sobre o tema e explicar o assunto. A manicure sintetiza a questão reiterando que o “anjo é anjo”, e não há o que questionar ou duvidar. Como contou: “todos sabem”, e indica que inclusive eu, que lhe fiz a pergunta, já sei da resposta. Ela pôs um ponto final nessa discussão como se anunciasse que tal questão dispensa maiores respostas. E isso ocorreu com outros narradores.

Confrontando essa assertiva com as demais narrativas dos entrevistados, quando, em diferentes momentos, eles foram provocados a falar sobre as almas das crianças, o sentido desses seres foi ratificado. Enquanto eu interpelava os fiéis, tentando entender os significados atribuídos àqueles mortos, eles respondiam prontamente não se tratar de almas e nem de mortos.

16 É mister salientar que o além é um termo que implica delimitações, fronteiras. De acordo com Sáez, a construção

do imaginário sobre ele o projetou em dimensões espaciais e temporais. Como o autor indica: “Na maior parte dos casos, o Além é visualizado como uma dimensão que convive com a nossa, no tempo, mas se realiza no espaço diverso. (...) Os messiânicos tendem a um Além que, pelo contrário, deverá ocupar em outro tempo o mesmo lugar que agora habitamos. O cristianismo, ao longo dos séculos e ao longo de sua abrangência, optou por um e outro tipo de Além: em seus primórdios, ou em suas versões socialistas, pode ter colocado o Além no final da história; na versão clássica, arquitetada por Dante [Alighieri], colocou-o no outro lado da Terra, mas compartilhando a mesma história. Em geral, porém, a hierarquia católica tem preferido um Além de difícil alcance, que combina as distâncias de tempo e espaço – um universo dantesco só plenamente válido depois do Juízo Final”. SÁEZ, Oscar Calavia. Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas, SP: UNICAMP, 1996, p.178.

Essa acepção ficou clara no uso do adjunto adverbial de negação. Se, por um lado, alguns dos entrevistados foram precisos na negação das almas angélicas, não apresentando explicações ou maiores detalhes sobre a experiência fenomenológica dos anjos, outros narradores, todavia, discorreram sobre o assunto, justificando os porquês da assertiva. Foi o que ocorreu, por exemplo, durante a entrevista realizada com Maria Inácio, conhecida como Dona Maria do Horto.

Nascida em 1943, em Pacatuba, estado do Sergipe, e residente na cidade de Juazeiro do Norte, desde o ano de 1987, Maria do Horto elabora e propaga orações rimadas nas festividades religiosas de Juazeiro e no dia-a-dia da cidade, caracterizada por uma miríade de práticas religiosas, cujos atores são oriundos de várias partes do Brasil, em virtude da complexa experiência das romarias.18

Alta, magra e muito falante, ela apresenta nos adereços religiosos pendurados no corpo e na rapidez da voz, suas marcas de romeira e devota do Pe. Cícero Romão Batista (1844- 1934), visto que, desde criança, subia nos caminhões, identificados na região como ‘pau de arara’ e, juntamente com familiares e conhecidos, saía da sua terra natal em romaria a Juazeiro. Isso acontecia nas comemorações do dia dos finados. Na atualidade, esse é o momento no qual a cidade recebe um grande fluxo de romeiros, considerada nos delineios do século XXI como a maior romaria de cada ano.

Em setembro de 2015, alcancei Dona Maria do Horto a partir da mediação da amiga Daniela Medina, historiadora da então Secretaria de Cultura e Romaria de Juazeiro do Norte (SECROM). Antes disso, eu não conhecia a narradora. Talvez por isso, Dona Maria estava receosa em ceder a entrevista, pois estava certa que uma conhecida banda de forró da atualidade havia gravado uma de suas canções, sem autorização. Após a mediação de Daniela, com quem ela mantinha proximidade e afeto, foi possível produzir a entrevista. Aliás, foi naquele local que a gravação aconteceu, a pedido da narradora, posto que ela já havia cedido outras entrevistas nesse mesmo lugar para o Projeto Benditos – em desenvolvimento pelos pesquisadores da instituição – e frequentava o local com assiduidade. Eis um fragmento do diálogo referenciado:

Joaquim: E as histórias de alma de criança?

18 O surgimento das romarias à cidade de Juazeiro do Norte está atrelado ao suposto milagre da hóstia, ocorrido

pela primeira vez em março de 1889, quando a hóstia dada pelo Pe. Cícero à beata Maria Madalena do Espírito Santo de Araújo (1863-1914) teria se transmutado no Sangre de Cristo. Cf. DELLA CAVA, Ralph. Milagre em

Joaseiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 17 e 41-46. No que toca às romarias na contemporaneidade, ver PAZ, Renata Marinho. Para onde sopra o vento: A igreja católica e as romarias de Juazeiro do Norte. Fortaleza: IMEPH, 2011.

Maria do Horto: Não, criancinha, não! Criança não tem alma não: é anjo!

Criança num tem pecado. Criança num tem pecado.19

Sem contas para pagar no outro mundo, bem como sem amarras ligadas ao espaço terreno, pois faleceu sem praticar pecados, a criança morta não é uma alma. Há, segundo a visão de mundo da narradora, uma justificativa plausível cuja lógica segue a divisão dos falecidos entre os pecadores e os límpidos desta mancha.20 É nessa direção que a ausência do pecado das

crianças aparece na fala de Maria do Horto. Tal falta é uma chave interpretativa, pois, constitui um dos elementos essenciais da natureza dos anjos.

Com efeito, essa noção foi reforçada por algumas entrevistadas integrantes de um afamado grupo de mulheres no Cariri: as incelenças do sítio Cabeceiras, na ruralidade do município de Barbalha. Em setembro de 2013, quando estava na busca por mulheres que falassem sobre os anjinhos, alcancei esse grupo, estando na companhia de Mayane. Semanas antes, ao conversarmos, Mayane ficou interessada em conhecer o grupo, tentando melhor entender os sentidos religiosos atribuídos às criancinhas mortas.

Na atualidade, as incelenças são conhecidas na cidade de Barbalha como as religiosas que cantavam para os anjinhos nos ritos fúnebres de outrora. Por esse vínculo, foram projetadas nos meios de comunicação de massa, a exemplo dos programas televisivos, sendo estes informativos e/ou de entretenimento. Do mesmo modo, foram divulgadas em publicações jornalísticas e acadêmicas. Hoje, fazem apresentações nas festividades religiosas e culturais na região do Cariri, como é o caso do cortejo durante a festa de Santo Antônio de Barbalha, reconhecida oficialmente como patrimônio cultural imaterial do Brasil.21 De igual modo, se

apresentam em outros lugares, como em Fortaleza, cidade citada variadas vezes nas entrevistas enquanto um “lugar de apresentação”. Segundo algumas narrativas das mulheres, partícipes do grupo, ele foi formado no sítio Cabeceiras para fazer parte do “folclore”, entre os anos de 1987 e 1988. Isso ocorreu por iniciativa da Prefeitura Municipal de Barbalha, mediante uma

19 Entrevista realizada com Maria José Inácio, em 14/09/2015, na Secretaria de Cultura e Romaria, cidade de

Juazeiro do Norte. p.16. Dona Maria do Horto mora sozinha em uma casa bastante simples, no Horto. Ver também em: Cariri Revista, 3 de jun. 2016. Disponível em: http://caririrevista.com.br/dona-maria-do-horto-do- juazeiro-e-do-mundo.

20 Em certo sentido, essas memórias se contrapõem aos escritos contemporâneos do padre e sociólogo José Carlos

Pereira, segundo os quais a devotio pueris caracteriza a veneração às almas de crianças. Embora, estejam em consonância com ele, quando este coloca no cerne da questão a aura sagrada pueril. Cf. PEREIRA, José Carlos.

Interfaces do sagrado– catolicismo popular: o imaginário religioso nas devoções marginais. Aparecida, SP: Santuário, 2011, p. 95-114.

21 O município de Barbalha foi reconhecido como Capital dos Festejos de Santo Antônio pela lei estadual 96/2012.

E, no ano de 2015, a festa do pau da bandeira de Santo Antônio naquele município foi reconhecida como

Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil e inserida no Livro de Registro das Celebrações, instrumento legal dedicado ao reconhecimento e salvaguarda do patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Jornal Diário do Nordeste, Fortaleza, 19 de set. de 2015.

articulação provocada pela Secretaria da Cultura daquele município. Logo, as falas das incelenças possuem, em certo sentido, um lugar institucionalizado e/ou folclorizado.

Quando entrevistava Francisca Matos, 71 anos, conhecida como Chica Lôra, doravante identificada por sua alcunha, sendo ela uma das atuais integrantes mais idosas do grupo, perguntei-lhe sobre a relação dessas mulheres com o dia de finados. Na ocasião, sua filha, Sueli Matos, 32 anos, hoje líder das incelenças, também falou. Sentadas nas cadeiras sob a sombra de uma árvore defronte à residência de Sueli, elas entrecruzaram suas falas:

Sueli Matos: Dia de finados não, porque o anjo e o adolescente, não. A parte

da gente não tem finado. E anjo pra nós não é finado, né mãe?

Chica Lôra: Já é santo.

Sueli Matos: É santo. O anjinho é santo. Tanto que quando morre um anjinho

o que é que a gente pede pra eles? pede pra eles intercederem a Deus para ele mandar chuva, para mandar saúde.

A gente alí, a gente está cantando para que ele interceda, porque ele tem o poder de interceder a Deus. Que ele nasceu com mancha do pecado, mas ele em si não tem nenhum pecado. E ele tem o poder de levar esse pedido até Deus. Então, a gente não tem esse ritual dia de finados.

Joaquim: Mas, esses anjinhos que vocês falaram que viram santos, eles têm

alma?

Chica Lôra: Eu acredito que têm. Joaquim: São almas, no caso? Sueli Matos: Almas santas.22

Enquanto para alguns entrevistados, a dissociação entre as almas e os anjos é nítida, para essas narradoras, entretanto, os anjinhos são almas, porém diferenciadas por serem bem- aventuradas imediatamente após a morte e integrarem o rol das santidades. Os anjinhos são almas e anjos ao mesmo tempo. E, juntos, esses termos compõem, à maneira de mosaico, sentidos elucidativos à sacralidade e à purificação daquelas criaturas, bem como aos seus poderes de intercessão junto a Deus pelos vivos.

Conforme os escritos bíblicos, na circunscrição temporal fundadora dos mundos celeste e terreno, Deus inventou os anjos como seres imortais, sem materialidades, dotados de sabedoria e inteligência. Desde então, eles habitam o mundo espiritual e, entre outras, assumiram a função de, no Céu, proteger a criatura humana.

Nessa linha de reflexão, a tradição escrita dos cristãos aponta para a invenção dos anjos enquanto seres imateriais, invisíveis e eternos. Já a criatura humana foi inventada como um ser visível, dotado de corpo e espírito, e distinto entre macho e fêmea. Nessa criação dos mundos e seres visíveis e invisíveis, a dimensão terrena ficou sob a ação dos humanos. Já a

22 Entrevista realizada com Francisca Rodrigues de Matos e Sueli Matos, em 15/09/2013, na residência de Suely,

espiritual, repousa sob a guarda dos seres angelicais, enquanto ambos forem obedientes ao poder divino. Na tradição católica, os anjos bons são dotados de sabedoria e obediência a Deus. Os anjos maus foram expulsos do Paraíso pela milícia celeste liderada por São Miguel Arcanjo.23

De certa forma, é sabido que os escritos bíblicos estão engessados na escrita e, simultaneamente, são usados de muitas formas nas pregações e formações religiosas pelos diferentes sujeitos e grupos sociais. Os narradores entrevistados, por sua vez, dão margem à imaginação, fazem uso dos múltiplos saberes enredados na tradição oral e ultrapassam os limites do que oficialmente é dito como divino, correto ou pertencente às ordens de Deus. Assim, eles reinventam um sagrado não institucionalizado, fabricado mediante o uso de muitos saberes, entrelaçados e entrecruzados nos dilemas vividos.

Nesses termos, a acepção sobre os anjos é um terreno fértil à invenção, principalmente, quando nos referimos à memória oral.24 Deste ponto de vista, é importante

lembrar que, na concretude da vida, os narradores se relacionam com essa verdade dita no verbo escrito, mas também a resignificam a partir das sensibilidades do corpo e da memória, pois, muitas mães entrevistadas sentiram o peso da morte prematura dos filhos e o nascimento dos anjos nas suas próprias entranhas: deram luz às criancinhas e simultaneamente mandaram novos anjinhos para o Reino de Deus.

Em princípio, o imediato corresponde à percepção sobre o tempo dos anjos. Na medida em que as crianças morrem no mundo terreno, nascem os anjinhos no mundo celestial. De maneira recorrente, o tempo veloz do mundo contemporâneo também corresponde à rapidez do nascimento dos novos seres angélicos no Paraíso. Mas, essa não é simplismente uma experiência do tempo histórico contemporâneo. Há revelações e saberes místicos: a passagem angélica pela Terra é rápida, como um riscado na ordem cósmica. Essa é uma possibilidade de enunciação mística. De acordo com Certeau,

23Ver VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vida de santos. Tradução Hilário Franco Júnior. São Paulo:

Companhia das Letras, 2003, p.823.

24 Creio que a crença na invenção dos anjinhos a partir da morte das crianças evidencia continuidades de uma visão

celestial da infância, tecida paulatinamente no Ocidente cristão a partir da descoberta da infância que, segundo Philippe Ariès, ocorreu por volta do século XIII. De acordo com Ariès, até aquele momento, essa etapa da vida era entendida como um momento de transição, logo vivido, cuja memória também logo se perdia. Assim, era generalizada uma ausência da morfologia infantil. Naquela descoberta, a primeira imagem destacada por Ariès diz respeito à associação da infância aos anjos. Inicialmente, no século XIII, eles foram representados com uma aparência de um rapaz jovem. Esse anjo adolescente se tornou muito frequente no século XIV, persistindo até o fim do quattrocento italiano. São exemplos os anjos de Fra Angelico, de Botticelli e de Ghirlandajo. Cf. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução Dora Flaksman. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC, 2006, p. 18-28.

Assim, nas tradições cristãs, o anjo não é um ‘objeto’ de crença. Ele traça antes, no interior de um conjunto de crenças, a própria dimensão do ‘crer’, se é verdade que o ‘crer’ se sustenta com a palavra do outro. Signo de um ‘dizer’, ele é o respondente do ‘crer’, e não seu objeto.25

Como os narradores significam essa possibilidade de ultrapassagem? Às vezes citadas de forma precisa e direta, outras marcadas por formas sutis e brandas, as temporalidades da vida e da morte das criancinhas são acionadas nas narrativas como balizadoras, pois ladeiam e amarram os códigos culturais da experiência. O tempo é o motivo da certeza e do mistério, concomitantemente. Isto é, ele é o foco narrativo e a chave de leitura, sendo-lhes agregados outros elementos, visto que, como ressalta Julie Cruikshank, o potencial aglutinador é um dos aspectos constitutivos das tradições orais e elementares da dinamicidade corroborante à sua atualização.26

Nas memórias, o tempo da morte é uma questão recorrente, tanto no que diz respeito às crianças, quanto aos adultos. Vale lembrar que na tradição cristã, configurada na formação religiosa católica do Brasil, prevaleceu a ideia segundo a qual a morte assume o signo de uma passagem que permite a continuidade da vida em outra dimensão do além.27 Seguindo essa

premissa, cabe indagar: para os narradores entrevistados, existe um tempo certo para morrer e, com isso, realizar tal viagem para o outro mundo?

Na primeira entrevista realizada com Dona Toinha, em dezembro de 2013, tal questão foi provocada. Sentados no quintal de sua morada, na presença de sua neta, Mayane e do primeiro filho desta, no caso seu bisneto, a costureira respondeu a seguinte inquietação:

Joaquim: E tem o tempo certo pra morrer?

Dona Toinha: O tempo certo é no dia que chegar o dia que Nosso Senhor

marcou da gente ir. Porque agente nasce e se cria, mas tem o dia marcado que Nosso Senhor deixou pra vim buscar nós. Tem o dia marcado.28

As palavras da narradora seguem a lógica segundo a qual o tempo de vida de cada pessoa e, por conseguinte, da morte, é definido no dia do nascimento. Nascer, nesse sentido, significa estar destinado a morrer. Embora a data da passagem já tenha sido marcada por Deus, ela permanece como um marco enigmático, uma vez que tal experiência temporal só pertence

25 CERTEAU, Michel de. A fábula mística: séculos XVI-XVII. v. II. Tradução Abner Chiquiere. Rio de Janeiro:

Forense, 2015, p. 276.

26 CRUIKSHANK, Julie. Tradição oral e história oral: revendo algumas questões.In:AMADO, Janaína;

FERREIRA, Marieta Morais (Orgs.). Usos e Abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 159.

27 REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe (Org.). História da vida privada no Brasil: Império – a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 96.

àquele identificado como o Criador. Nesses termos, “a vida é assim, ligada a morte pelo umbigo, vida e morte, juntas e opostas. Ao se falar da vida, não se pode deixar de falar da morte, porque são uma só coisa”, já dizia José de Souza Martins.29

Parcialmente, alguns desses mistérios são identificados mediantes o tipo de morte vivida, as aparições ou poderes dos falecidos no além e na Terra, ou ainda conforme os indícios presentes nos corpos mortos. Foi o que disse, por exemplo, Maria Generosa.

Única mulher penitente entrevistada, pobre, doméstica e agricultora aposentada, conhecida como Dona Maria Generosa e integrante da ala feminina dos penitentes partícipes do grupo liderado por seu Cícero Ventura (in memoriam), da cidade de Porteiras,30 ela falou

por 53 minutos quando sentamos frente a frente na varanda de sua residência, espaço pequeno, com objetos de decoração evidentes da fé religiosa da narradora. Naquela ocasião, em abril de 2015, ela tinha 81 anos. Foi quando conversamos sobre as histórias de almas.

Maria Generosa: Há muito tempo morto. Enterrado. Aí foram cavar a cova.

Tiraro e botaram aculá, seco, pro povo ver né, saber de que família era. Outra vez foi uma velha. Eu cheguei tava a velha no caixão. O caixão do mesmo jeito, quase. Cheguei e o homem tirando assim uma italiana [abelha]. O coveiro. Aí disse:

— Ei, Dona Maria conhece essa muié? Eu cheguei e disse:

— Oxente, eu conheço demais. Aí ele disse:

— Secou. Eu disse:

— Tá seco mesmo, aqui. Eu digo:

— Eu vou cheirar pra ver se fede [Risos].

Num fede não. De maneira alguma. Eu cheguei, cheirei, homem num fede não. Deixei lá. Seca porque seca mesma. O povo diz:

— É, fulana era ruim que seca.

Não. É a sina que traz. O dia são doze horas, cada uma hora tem uma sorte da pessoa nascer. É, é. Um dia num é doze horas? Pois cada uma tem uma sorte. Cada hora tem uma sorte. São doze sina que a pessoa traz.