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1. NAS FRONTEIRAS DO TEMPO

1.1. Maya: Vida, morte e salvação

No final da manhã do dia dez de maio de 2013, uma jovem mãe, no texto identificada como Mayane – pseudônimo usado como forma de livrá-la da exposição de sua imagem – tinha pouco mais de 25 anos quando deu entrada no Hospital e Maternidade São Francisco de Assis, localizado no bairro Pimenta, na cidade do Crato. Prestes a dar a luz a uma menina, que seria seu segundo filho, a jovem preparou com esmero a ocasião. Cuidou da gravidez durante seus nove meses e planejou a chegada da filha. Ela foi nomeada como Maya, cujo significado representa a deusa da ilusão, conforme Mayane entendeu ao ler o livro Maya.1

Momentos antes do parto, no entanto, a parturiente foi informada pelo médico, um conhecido da sua família, que o bebê havia falecido ainda no ventre materno. Conforme a

certidão de óbito do natimorto, registrada em 25 de maio no cartório Maria Júlia, naquela mesma cidade e, cedida gentilmente por Mayane, a morte foi causada por “anoxia intrauterina e malformação congênita”.2

A cirurgia cesariana foi realizada naquele mesmo dia, às 13h25min, ao som dos gritos de Mayane, inconformada com a perda.Além disso, Mayane ainda teve que lutar por sua vida. Ela enfrentou uma infecção interna, em virtude do tempo que passou com o feto morto no seu corpo. Por três dias, ficou na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do hospital, sob os cuidados dos médicos e recebendo medicação necessária para combate a infecção. Após superar a fase crítica, ela foi levada para outro recinto do hospital, onde passou a receber visitas.

1 GAARDER, Jostein. Maya. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

2 Ver também em SANTOS, Cícero Joaquim dos. Anjos do tempo: os mortos infantis na contemporaneidade. In:

MENESES, Sônia; SANTOS, Cícero Joaquim dos (Orgs.). História e contemporaneidades. Curitiba: CRV, 2016, p. 147-174.

Maya não viu a luz do mundo. Sua mãe também não lançou seu olhar para o corpo da pequena, pois não lhe foi permitido. Ela visualizou a imagem da filha alguns dias depois, por meio das fotografias feitas pelo pai da criança, através de um aparelho celular. Elas foram produzidas a pedido da jovem mãe. Esse cenário lembra um pouco o que o sociólogo Titus Riedl afirmou sobre as crianças outrora mortas e fotografadas no Cariri: em alguns casos, a imagem “servia não apenas como despedida, mas, em primeira linha, como afirmação de sua presença familiar ou simples prova de sua existência física”.3

A imagem foi impressa e reproduzida em aparelhos digitais, além de ser enviada e salva nas caixas de e-mails de Mayane. Nos últimos meses, ela se prontificou a enviá-la, via correio eletrônico, para que fosse publicada nas páginas deste escrito.

Figura 1- Maya. Foto: acervo do autor. Ano: 2013.

Depositada em um pequeno caixão branco, Maya foi preparada para o sepultamento. Ladeada de flores igualmente brancas, ela foi vestida com uma roupinha infantil da mesma cor, apresentando desenhos com personagens alegres (a mãe ursa e seu filhote ursinho). Estando com a cabecinha ancorada em um pequeno travesseiro e sendo toda coberta com um véu fino e alvo, Maya foi fotografada sozinha, momentos antes de ser levada ao cemitério. Por fim, suas mãos cruzadas sobre o corpo em pose de reza reproduzia uma imagem sublime.4

3 RIEDL, Titus. “Memórias de despedida”: o memento morri na fotografia e na fotopintura brasileira. In:

RODRIGUES, Cláudia; LOPES, Fábio Henrique (Orgs.). Sentidos da morte e do morrer na Ibero-América. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2014, p. 236.

4 Essa textura fúnebre evidencia, por um lado, continuidades de antigas atitudes perante a morte infantil no Brasil,

sobretudo, no que se refere aos tratos do corpo morto. Por outro lado, representa mudanças no que diz respeito à uniformização do branco, em contraposição às tonalidades azul e rosa, outrora usadas predominantemente para identificar os mortos, meninos e meninas, respectivamente. Cf. NOGUEIRA, Oracy. Morte e faixa etária: os anjinhos. In: MARTINS, José de Souza (Org.). A morte e os mortos na sociedade brasileira. São Paulo: Editora HUCITEC, 1983, p. 226.

Maya foi enterrada no mesmo dia em que nasceu morta. Após os encaminhamentos burocráticos, realizados ainda no recinto hospitalar, como é o caso do encaminhamento da funerária, o sepultamento ocorreu no jazigo da família, no cemitério privado Encontro Com

Deus, situado no bairro Barro Branco, na cidade do Crato. Diferente dos enterramentos infantis do Cariri de outrora, marcados pela celebração da morte na infância e acompanhados das canções dedicadas aos mortos pequeninos, conhecidas no passado e ainda hoje lembradas em alguns lugares como incelenças, o enterro de Maya aconteceu sob o signo do silêncio e da tristeza do pai e demais familiares partícipes do enterramento, cerca de cinco ou seis pessoas.5

No Campo Santo, o corpo de Maya fez companhia a outro morto da família, o irmão mais novo de Mayane, assassinado no Crato, em 11 de setembro de 2012, quando tinha 20 anos. No jazigo, não há monumentos de arte tumular com imagens e estátuas como aqueles que no passado foram erguidos nos cemitérios secularizados, a exemplo dos existentes no cemitério público Nossa Senhora da Piedade, em Crato, como também em muitos outros espaços cemiteriais espalhados pelo Brasil. Há, apenas, uma lápide sobrejacente ao chão, na qual o escrito faz lembrar o morto ali enterrado. Embora Maya esteja no mesmo lugar, não há na placa nenhuma referência à sua existência.6

Figura 2 - Cemitério no qual Maya foi enterrada. Foto: autor. Ano: 2015

Emocionada ao falar sobre o assunto, quando no dia 20 de agosto de 2015 estivemos presentes no lugar, Mayane enfatizou: sua família não se preocupou em refazer a placa fúnebre

5 Sobre as incelenças e os ritos fúnebres infantis do Cariri de outrora, ver CARIRY, Rosemberg. Rituais da morte

no Nordeste. In: CARIRY, Rosemberg; BARROSO, Oswald. Cultura Insubmissa: estudos e reportagens. Fortaleza: Nação Cariri, 1982, p. 204-213.

6 No que toca à arte tumular nos cemitérios brasileiros, ver BORGES, Maria Elízia. Cemitérios secularizados no

para indicar a presença da sua filha naquele pedaço de chão destinado culturalmente à inumação e salvação dos mortos, como a tradição cristã ensina.7

Mayane lembra que o sepultamento do seu irmão e da sua filha foram recentes. Há cerca de dois anos antes do assassinato do seu único irmão, seu pai também faleceu, vítima de um infarto. Isso ocorreu em um momento familiar tenso, pois, o jovem estava imerso nas alucinantes dependências que muitas vezes as drogas impõem aos seus usuários. Aliás, não foi estranho perceber que esse foi, segundo Mayane, o motivo pelo qual seu irmão foi assassinado, como muitos casos noticiados frequentemente nas mídias impressas e virtuais, bem como projetados nas alarmantes estatísticas oficiais e não oficiais de homicídios de jovens no Brasil do século XXI.8

Ao narrar tais experiências, aquela jovem lembrou que nos dias seguintes ao parto, ainda no espaço hospitalar, ela recebeu a atenção de amigos e familiares que se solidarizaram com o ocorrido e foram prestar-lhes conforto. Nas palavras de amparo, a ideia segundo a qual ela lançou ao mundo um anjinho foi pronunciada. Palavras que seguem os compassos de antigas crenças religiosas católicas propagadas na América portuguesa, mediante sua colonização europeia, como narrou Gilberto Freyre.9

De igual modo, dias depois em sua residência, o conforto dos conhecidos, amigos e vizinhos reforçava a crença segundo a qual Mayane mandou um anjo para o ‘Reino Celeste’ e, por isso, não deveria chorar e lamentar aquela perda. Pois tais práticas podem prejudicar o percurso do anjinho nos caminhos que possibilitam o alcance dos resplendores celestiais, como outrora escreveram muitos estudiosos sobre os saberes tidos como ‘populares’ ou ‘folclóricos’, a exemplo dos escritos de Alceu Maynard Araújo10 e Luís da Câmara Cascudo11, publicizados

nos idos da segunda metade do século XX.

7 A respeito das crenças relacionadas às práticas de enterramentos dos mortos na formação religiosa brasileira, ver

CYMBALISTA, Renato. Sangue, ossos e terras: os mortos e a ocupação do território luso brasileiro (Séculos XVI e XVII). São Paulo: Alameda, 2011.

8 Em estudos recentes, o Ceará é apresentado dentro de um ranque nacional como o terceiro estado onde mais

ocorrem homicídios no Brasil atual, tanto no que diz respeito à população jovem, quanto à total. Também é uma das unidades da federação com o maior aumento percentual dos homicídios, considerando o período de 1998 a 2012. Nesse recorte temporal, os índices aumentaram 233,0% para os casos concernentes à população total. Sobre os jovens, entre os anos de 2002 e 2012, as taxas de homicídios cresceram 218,5%, e apenas entre 2011 e 2012, os índices aumentaram 48,3 %. Cf. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2014: os jovens do Brasil. Rio de Janeiro: Flacso Brasil, 2014 (versão preliminar), p. 28-30. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br. Acesso em: 24/11/2015. Ver Anexo C.

9 Cf. FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 41 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 133.

10ARAÚJO, Alceu Maynard. Alguns ritos mágicos: abusões, feitiçarias e medicina popular. São Paulo:

Departamento de Cultura, 1958, p. 86.

O tempo fez Mayane sofrer. A dor instalada na memória permaneceu nas marcas do corpo feminino perfurado nos procedimentos cirúrgicos. Nesse caso, esse tempo vivido é um signo do próprio sofrimento. E nos pensares de Mayane, era recorrente a ideia de se livrar daquele penar e de Maya encontrar, caso provocasse a própria morte.

Dentre as pessoas que a confortavam diante do seu visível abatimento corporal e estado de desolação, estava sua avó, Dona Toinha, agricultora e costureira, na época possuidora de seus 86 anos. Mulher magra e de baixa estatura, viúva, católica e rurícola, ela era muito procurada para rezar nas sentinelas e ajudar o moribundo a morrer segundo os ritos fúnebres católicos, tradicionais na comunidade onde morava e onde ainda hoje reside, no distrito Monte Alverne, na zona rural do município do Crato.12 Quando mais jovem, também era procurada

para produzir as mortalhas dos moradores daquele lugar e das áreas adjacentes.

O caso de Maya me levou a entrevistá-la duas vezes, através da mediação da jovem mãe. Se na primeira entrevista, realizada em dezembro de 2013, ela não citou o caso, na segunda, em abril de 2015, foi enfática. Nesse último diálogo – costurado por nossa troca de olhares e mediado pelo gravador digital – ocorrido quando ela descascava um jerimum na cozinha da casa de sua filha na urbe cratense, a matriarca falou: “Essa menina de Mayane é anjo.”13

Outra revelação foi pronunciada à parturiente, agora por uma das suas vizinhas, também entrevistada a partir desse caso. Ela foi narrada por sua manicure, Cida, que igualmente cuidou dos preparativos para sua viagem à maternidade. Cida é uma mãe com pouco mais de 40 anos. Ela se apresenta como católica, porém não muito praticante. Nas palavras de consolação, a vinda de Maya ao mundo, mesmo já falecida, teve um propósito significativo para outro morto: o irmão de Mayane. Eis um fragmento do diálogo que tecemos em sua residência, com a presença e o olhar aguçado da mãe de Maya:

Em sonho, a gente sonha né? Pronto. Eu já sonhei com o irmão de Mayane, que mataram. Foi quando ela teve a neném dela. Foi quando ela teve a neném dela. Eu sonhei com ele e disse pra ela. Porque ela ficou muito nervosa. Quase entra em depressão. Aí eu contei pra ela que ele chegava assim e dizia que a filha dela tinha indo pra salvar ele. E eu peguei e contei pra ela. Contei pra mãe dela. Pra ver até se ela se acalmava mais.14

12 Os ritos são compreendidos como “condutas corporais mais ou menos estereotipadas, às vezes codificadas e

institucionalizadas, que exigem um tempo, um espaço cênico e um certo tipo de atores: Deus (ou os

antepassados), os oficiantes e os fiéis participantes do espetáculo”. CATROGA, Fernando. O Céu da memória: Cemitério romântico e culto cívico dos mortos em Portugal (1756-1911). Coimbra: Livraria Minerva Editora, 1999, p. 11.

13 Entrevista realizada com Antônia Rodrigues, em 04/04/2015, na residência de Mayane, bairro Vila Alta, Crato.

p.8.

Na época, a revelação daquele sonho chegou à escuta de Mayane. Mesmo tendo tido uma formação religiosa católica, ela permaneceu inconformada e procurou, dias depois, ajuda psicológica, almejando compreender o porquê do ocorrido. Ela buscou apoio espiritual junto a uma igreja evangélica situada nas proximidades da sua morada, na tentativa de conviver com a irreparável dor e entender porque sua vida desembocou naquele cenário de desilusão. No entanto, ela não permaneceu frequentando a instituição religiosa.

Naqueles dias tenebrosos, a convite de uma amiga, Mayane procurou no Livro dos

Espíritos de Allan Kardec (1804-1869), explicações para aquele caso. Facilmente encontrado em bancas de jornais e livrarias, tal escrito, caracterizado por muitos como uma filosofia espiritualista, contém os princípios da doutrina espírita. Após a leitura de alguns fragmentos da obra, Mayane não ficou satisfeita. E continuou nas lides da desilusão.

Entretanto, ela ainda procurou explicações e orientações nas cartas de baralho jogadas por Dona Maria do Socorro. Mulher de aparência forte, mãe, pobre, idosa com mais de 70 anos e residente no Centro do Crato, ela se afirma como católica e rezadeira, mas também tira cartas de baralho para esclarecer e resolver muitos dilemas cotidianos vividos pelas pessoas que a procuram em sua própria casa. Guiada por sua mãe, que também já havia recorrido a Dona Maria, Mayane foi atendida por ela. As cartas foram tiradas, mas estavam confusas. Elas não ajudaram a minimizar o sofrimento de Mayane.

A jovem ainda tentou entender as fronteiras temporais que aproximaram seu bebê natimorto e seu irmão. Nas suas palavras, há dúvidas sobre o fato: se o acaso colaborou para a construção de sentidos sobre a morte de ambos ou, quiçá, não tenha sido coincidência o fato de Maya ter nascido morta no mesmo dia em que ele nasceu vivo, 10 de maio, separados por um interstício temporal de 21 anos. Nesse caso, o tempo é um fator intrigante e instigante, pois o natalício do irmão se confunde com a temporalidade do nascimento e da morte da filha. Mayane continuou confusa, como se se perdesse nos mistérios dessa encruzilhada dos tempos.

No pretérito, o médico e historiador cratense Irineu Pinheiro afirmou: “sempre se ouviu dizer que no Cariri as criancinhas morrem em bom tempo”. Pinheiro lançou mão desta expressão para exemplificar a relevância das celebrações que recobriam o cenário da morte infantil e dos enterramentos das crianças no Cariri do seu tempo, entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX. Também como forma de justificar o que ele chamou de extremismo da “religiosidade popular” no Cariri. Vejamos seu escrito:

Em toda a zona do Carirí, também nos sertões circunvizinhos, extremou-se a religiosidade popular. Justifiquemos nossa asserção: No Crato, há mais de quarenta anos, uma distinta pessoa da terra fez o entêrro de um seu filhinho ao som da banda de música local e ao estourar dos folguetes, o cadaverzinho rígido, de pé, num andor seguro por quatro homens, todo vestidinho de seda, em traje de S. José, as mãos postas, as faces tingidas com papel de arrebique, assim chamado um papel vermelho, que se comprava na praça do Recife. Atrás do andor os amigos dos pais, num singular préstito que atravessou as ruas da cidade em meio à admiração do povo aglomerado nas calçadas, ou a espiar nas portas e janelas das casas.

Antes do enterramento acima descrito, e depois dêle, outros se fizeram no Crato, em andores alegremente.

(...) Assim pensam, hoje, muitos pais, que se regozijam por saber que eles, os anjozinhos, voam até Deus e lá, entre os resplendores celestiais, vão rogar pelos que ficam na Terra escura e triste.

Sempre se ouvia dizer no Carirí que as criancinhas ‘morrem em bom tempo’.15 É desnecessário discorrer que o termo ‘sempre’ nega, em certo sentido, a historicidade do tempo vivido. Seguindo essa direção, o tempo da morte infantil aparece na obra de Pinheiro como um axioma. Tal temporalidade axiomática se contrapõe, por sua vez, ao caso vivido por Mayane.

Partindo desse pressuposto, cabe indagar: como os sujeitos entrevistados no século XXI atribuem significados às crianças mortas? Quais e como os modos e focos narrativos são construídos e transmitidos nas tradições orais em um tempo marcado pela velocidade das informações e o surgimento constante de novos meios de comunicação e interação? E, de forma sobremaneira, como os narradores definem as temporalidades dedicadas aos mortos na infância?