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2. ENCONTROS DOS/NOS TEMPOS!

2.1. Encontros no Purgatório

2.1.2. O voo dos anjos

O fundamental é para eles indissociável do insignificante.26

Alguns dos fiéis entrevistados argumentaram que, no rápido percurso em direção ao Paraíso, o anjinho morto na Terra tem um dever a cumprir. Ele não pode levar nada desta vida para o Céu, porque o etéreo é, por excelência, livre dos vestígios materiais do mundo dos pecadores. Por esse motivo, as crianças que em vida mamaram o leite materno precisam cumprir um ritual para só depois adentrarem o Reino Celeste: vomitar o líquido ingerido. Como lembram algumas das narrativas outrora registradas, “o alimento tomado pela criança prende-a à terra”. Dessa forma, ele ganha a conotação de um fio permanente que liga o anjo ao mundo terreno.27

O vômito dos anjinhos mortos não ocorre no mundo terreno, como também não acontece de forma involuntária em quaisquer trajetos ou dimensões do além: é necessário adentrar o Purgatório e nele derramar toda a matéria adquirida. Quando fala sobre os anjinhos, Dona Toinha diz:

Dona Toinha: Vai para o Céu. Vai para o Céu. Um anjo morrendo vai para o

Céu. (...) Eles passam no fogo do Purgatório para derramar o leite materno.

Joaquim: Como é essa história? O que é que os mais velhos diziam sobre isso,

que os anjos passam no fogo no Purgatório?

Dona Toinha: Pra derramar o leite materno para poder ir pro Céu. Joaquim: Mas, por quê?

Dona Toinha: Porque mamou o leite do pecador. Nós somos pecador. 28 Da mesma forma como foi apresentada nas memórias de Dona Toinha, muitos dos outros narradores afirmaram a passagem do anjinho pelo Purgatório para nele despejar o alimento ingerido na Terra. Vale frisar que, comumente, criancinhas vivas vomitam o leite bebido. Vomitar, nesse sentido, é um ato comum dos bebês. Deste modo, se essa prática é visualizada no mundo dos vivos, ela continua não deixando de acontecer nas dimensões do além. Estabelecendo essas relações, é possível inferir que há temporalidades e visualidades sobre o rito regurgitor dos anjinhos.

26 CERTEAU, Michel. A fábula mística: séculos XVI e XVII. v.I. Tradução Abner Chiquieri. Rio de Janeiro:

Forense, 2015, p. 13.

27 CASCUDO, Luís da Câmara. Superstição no Brasil. 5 ed. São Paulo: Global, 2002, p. 42.

28 Entrevista realizada com Antônia Rodrigues, em 04/04/2015, na residência de Mayane, bairro Vila Alta, Crato.

Os elementos temporais vistos e narrados, todavia, não dizem respeito simplesmente ao sentido produzido na visão corporal, mas sim às dizibilidades orais na constituição das visões imaginárias. Os aspectos temporais se referem, sobretudo, ao sentir a experiência da vida, nas balizas entre a existência num mundo profano, pecador, e a teimosia na busca pelo sagrado, ou seja, nas sensibilidades religiosas. Além do mais, as memórias constroem um regime de visualidade do outro mundo que torna o Céu, o Purgatório e o Inferno referências visíveis nas experiências sensíveis dos fiéis.

Le Goff menciona como nos idos distantes do medievo, há registros indicadores da crença segundo a qual a alma do usurário vomitará o dinheiro obtido na contramão dos sentidos difundidos pela igreja, caso ele não restituísse o valor à vítima da usura ainda em vida. Isso ocorreria no Inferno, quando sua alma estivesse condenada, ou no Purgatório, quando ainda havia possibilidade de salvação.29

Entretanto, como foi apresentado no primeiro capítulo, para muitos narradores, os anjinhos não são almas. E, mesmo assim, Dona Toinha e outros entrevistados afirmam como aqueles que se alimentam em vida devem cumprir o rito vomitivo. Segundo alguns fiéis, mesmo uma criança que viveu poucos meses, dias, horas ou minutos após o nascimento só adentrará o Paraíso depois que sobrevoar o Purgatório e vomitar o leite que mamou.

Numa primeira leitura, o ato de beber esse líquido nos primeiros dias é identificado, portanto, como uma conta a ser reparada, queimada no fogo purgante. A construção desse entendimento toma como referência a temporalidade da vida da criança e a comensalidade, bem como sua integração ou mesmo contato, maior ou menor, com os elementos do mundo terreno. Nessa acepção, o tempo vivido é um elemento agregador dos pecados dos anjos. Por conseguinte, quanto mais se vive, mais máculas a criatura levará para eximir no Purgatório. É nesse sentido que o tempo provoca o pecado a ser vomitado.

Um detalhe na entrevista com Dona Toinha, mencionada anteriormente, desperta curiosidade, ela diz: “eles passam no fogo do Purgatório para derramar o leite materno”. Ora, passar para despejar o líquido não significa, em linhas gerais, ficar ou mesmo ir para assumir a função de purgar. Além disso, ela explica os motivos pelos quais o anjinho precisa sobrevoar aquela dimensão do além: vomitar o leite que mamou da mãe pecante. Nessas palavras, o pecado é direcionado à mulher e ao seu leite, e não à pequena criatura que dele se alimentou. Ampliando essa linha interpretativa, junto com a bebida, a criança viva absorve o pecado materno, uma vez que sua mãe também foi objeto e sujeito pecante.

29 LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média. Tradução de Marcos de Castro. Rio

Esse entendimento também veio à luz dos olhos e à sonoridade das palavras no diálogo ocorrido com o senhor Antônio de Amélia. Católico e atual decurião do grupo de penitentes do sítio Cabeceiras, de Barbalha, ele é irmão do penitente Nivaldo Santos, apresentado anteriormente. Na prosa ocorrida em sua residência, ele narra:

Agora diz que o anjinho quando morre, assim com um ano, com dois anos, vai passar sempre no fogo do Purgatório porque mamou no pecador. Na pecadora, na mãe dele, que era pecadora. Tá vendo? Dizem. Então Nosso Senhor não condena ninguém. E é, quem se condena é a pessoa. E uma criancinha Deus vai condenar?30

Pai de 14 filhos, tendo sido um deles falecido, Seu Antônio é um agricultor de 71 anos, pobre e morador da Vila Mulato. Ao longo da entrevista, ele afirma seguir os ensinamentos religiosos dos seus antepassados e de alguns líderes religiosos do Cariri de outrora, sobretudo do Padre Ibiapina e do Padre Cícero.31 Embora segure nas mãos um livro,

indicando ser uma obra religiosa importante do passado, ele demonstra não possuir muita intimidade com a leitura e escrita (ver Anexo A). Esse narrador, mesmo dando ênfase ao que as pessoas dizem, aparenta não entender como Jesus Cristo pode condenar uma criancinha se ela não foi capaz de cometer pecados. Nessas palavras, a própria noção da culpa dos anjinhos adentra o terreno da dúvida e das incertezas.

De igual modo, tal aspecto foi percebido na narrativa de Dona Joana, a protetora do cemitério de anjinhos situado no seu quintal, no alto da Chapada do Araripe: “era os anjinhos: ia direto pro Céu. Porque num tinha pecado. O pecado que tinha era o leite que mamava da mãe né? Se morresse assim depois já de um dia pra lá de nascido, que o pecado que tinha era o leite, mas num tinha pecado nenhum... ia pro Céu.”32

Nessa perspectiva, o pecado dos anjos é projetado em uma situação marcada pela ambiguidade. Mesmo não cometendo erros entre os vivos, pois, o ato de mamar é inerente e necessário para a sobrevivência da criança, ela peca por beber líquidos deste mundo, como se o pecado fosse repassado da alma da mãe para o pequenino ainda em vida. Simultaneamente, ele é e não é pecador.

Nas memórias de Dona Joana, o voo do anjo para o Céu não carrega nenhum tormento. Embora reitere que ele leva o peso do pecado, em virtude do leite ingerido, ela afirma

30Entrevista realizada com Antônio Sales, em 05/04/2015, na sua residência, Sítio Cabeceiras, Barbalha. p. 23. 31 A respeito da atuação do Pe. Ibiapina no Cariri, ver HOORNAERT, Eduardo. Crônica das casas de caridade:

fundadas pelo Pe. Ibiapina. Fortaleza: Museu do Ceará; SECULT, 2006.

32 Entrevista realizada com Dona Joana [pseudônimo], em 12/06/2011, na sua residência, zona rural de Porteiras.

que aquele ser não tem contas para pagar. Ele não precisa, portanto, viver a temporalidade da purgação, fator revelado a partir do tempo rápido da sua travessia imaginada. Nessas memórias, o Purgatório foi silenciado.

Sobre esse ponto, ora os entrevistados dão ênfase ao assunto para confirmar os saberes transmitidos na tradição oral dos seus antepassados, ora trazem o tema à contenda para discordar e afirmar o que pensam. No que concerne a essa questão, em alguns casos, a relação com seu tempo vivido e dos seus parentes e demais conhecidos mais velhos foi colocada nos diálogos urdidos nos entreolhares das gravações, evidenciando o lugar e/ou as relações sociais dos narradores no tempo presente. Foi o que aconteceu com Dona Losinha, a mulher residente no Crato e convertida ao protestantismo. Ela deu ênfase ao vômito dos anjinhos, indicando, por sua vez, não acreditar mais nessas histórias do passado, quando era mais jovem e católica:

Dona Losinha: Era assim: diz que quando os anjinhos morriam ia pro

Purgatório, que eu acho que num tem isso não. Quando chegava lá vomitava o leite que tinha mamado no pecador, que nós não somos pecador né? Aí ia pro Purgatório vomitar o leite que tinha mamado da mãe. O povo conversava essas coisas. Hoje num tem mais não.

Joaquim: E como é que vomitava?

Dona Losinha: Vomitava lá, ia só vomitar o leite que mamou. O povo

contava, porque de primeiro morria muito anjinho n’era?33

Conforme essas memórias, o vômito dos anjos no Purgatório ficou dedicado ao “tempo de primeiro”, quando o assunto era evocado na oralidade a partir da grande mortandade de crianças. Para a narradora, isso não acontece na contemporaneidade, posto que as pessoas do seu círculo de convívio não conversam sobre o assunto. Essa negação não parece ser uma posição ou leitura exclusiva de evangélicos.

À guisa de exemplo, as memórias da líder das inceleças do sítio Cabeceiras, Sueli Matos, apesar de confluir na mesma direção reflexiva de outros narradores, no que diz respeito à função e o lugar do Purgatório para purificação dos mortos, negam a passagem do anjinho na dimensão temporária do além.

Almas santas, que no caso ela já vai diretamente [para o Paraíso]. Ela não vai passar por aquele processo que nem o defunto, não vai passar por aquele processo de esperar por o julgamento final, que ele vai ser punido, que ele vai esperar, vai pro Purgatório né? que a gente escuta. A gente acredita

que o anjo, o adolescente ele não vai precisar de ir, ele já está purificado.

Quem vai pro Purgatório aquelas pessoas que não vivem bem e até aquelas que vivem bem de uma certa forma também tem que ir. Porque eu acredito

33Entrevista realizada com Maria Alexandre da Silva, em 02/05/2015, na sua residência, bairro São Miguel, Crato.

que seja um lugar que você tem... A pessoa está esperando [?] pelo julgamento e ali o Purgatório é o lugar onde a pessoa tem o tempo de reflexão, de pensar, de se arrepender. Eu acredito que a gente num... Como o adulto se morrer aqui: quando morre ele num vai diretamente [para o Céu], vai cumprir sua sentença, não, ele pode se arrepender aqui mas, eu acredito que quando ele morre ele também tem outra chance de se arrepender no Purgatório. Já o anjinho ele já vai direto [para o Céu], nós acreditamos que ele já vai direto. Já tem a salvação direto.34

A narrativa apresenta argumentos que tomam como foco o tempo do arrependimento. O Purgatório aparece como a dimensão na qual o tempo é destinado à reflexão, ao arrependimento e remissão dos pecados cometidos em vida. Nos sentidos do enredo narrativo, o anjinho não precisa da temporalidade da espera necessária à reflexão. Ele não necessita se arrepender de nenhum erro cometido, pois, o fato de ser uma criatura angélica elucida que não cometeu danações na passagem pelo mundo terreno. Esse é um indício de que a viagem do anjinho pelo Purgatório, o tempo de sua passagem e seu vômito entram em conflito nas memórias dos cristãos da atualidade, estejam eles seguindo a vertente católica ou evangélica.

A meu ver, essas tensões também evidenciam que a viagem dos anjos pelo Purgatório é um rito de tempo. Isso se torna perceptível tanto no que diz respeito à sua rápida passagem, quanto no que se refere aos elementos vomitados, pois, o leite materno e o tempo vivido na amamentação são recusados e despejados.

Enquanto alguns entrevistados duvidam e/ou negam a passagem e o vômito do anjo no terceiro lugar, outros narradores alargam os sentidos desse voo, recheando as memórias com detalhes que ensinam os vivos a viver e a morrer. Na conversa com Seu Joaquim, as temporalidades dos anjos sobrevoantes do Purgatório, inseridos em uma visualidade transmitida via tradição oral, servem de exemplo aos pecadores. Eis suas palavras:

De qualquer maneira tem que passar lá [no Purgatório], né? Diz que a pessoa quando morre, até os anjos diz que passa lá, por causa do leite que mamou da mãe. Como é que pode né? Assim eu via os mais véi dizendo que tinha esse exemplo.35

A interrogação do narrador indica que mesmo as criaturas mais singelas e, por conseguinte, não detentoras de discernimento do pecado carnal, sendo humanas e, portanto, estando no mundo dos pecados, não escaparão das chamas no terceiro lugar do além. Como

34Entrevista realizada com Francisca Rodrigues de Matos e Sueli Matos, em 15/09/2013, na residência de Suely,

sítio Cabeceiras, zona rural de Barbalha, p.13-14. Grifo meu.

bem registrou Raimundo Girão sobre os termos orais dos sertões do século XX, aquilo que é exemplar, tem a conotação de um castigo.36

O exemplo é um termo de longa e reveladora tradição ainda presente nas narrativas sobre os mortos na sociedade brasileira do Século XXI. Como glosa Oscar Sáez, desde a literatura eclesiástica medieval, ele é uma peça narrativa dedicada às pregações. Diferente dos evangelhos, inseridos nos sentidos do sagrado, os exemplos eram “narrações profanas construídas em volta de um núcleo de significado religioso ou moral”.37

Para Le Goff, o exemplum é uma herança da antiguidade grego-romana, quando era entendido como uma historieta de caráter histórico dita como um argumento em um discurso persuasório. Naquele tempo, ele era uma arma do orador político ou judiciário. E, posteriormente, tornou-se um instrumento a serviço da moral cristã. No período que corresponde entre os primeiros séculos do cristianismo, e o coração da Idade Média, o

exemplum teve sua natureza e sua função alteradas. Ele deixou de concentrar-se na imitação de Jesus Cristo (que era o exemplum por excelência) e “passou a consistir numa narrativa, numa

história que se devia tomar no seu todo como um objecto, um instrumento de ensino e/ou de

edificação”.38 Nesses termos:

É, pois, o tempo de uma memória particular que enforma o tempo do

exemplum. É a memória da consciência espiritual e moral, que a nova concepção do pecado, ligado à intenção, e as novas práticas da confissão articular, baseada no exame da consciência do pecador e na sua introspecção, privilegiaram na passagem do século XII para o século XIII.39

Nessa concepção de exemplum tecida na tradição religiosa católica desde o medievo, o conto exemplar deve despertar na consciência de quem escuta um acontecimento decisivo para a sua salvação no futuro: a conversão. Desta maneira, o exemplum é um objeto de conversão. Seu tempo histórico é destinado ao momento presente que principia um horizonte de expectativa dedicado à salvação eterna, uma vez que “o exemplum tem pois como função enxertar a realidade histórica na aventura escatológica”.40

36 GIRÃO, Raimundo. Vocabulário popular cearense. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2007, p. 202. 37 SÁEZ, Oscar Calavia. Fantasmas falados: mitos e mortos no campo religioso brasileiro. Campinas, SP:

UNICAMP, 1996, p. 74.

38 O exemplum apontado por Le Goff teve no século XIII seu momento de maior propagação. Ele esteve associado

a um novo tipo de pregação religiosa, que surgiu em meio aos processos de transformações ocorridos entre os fins do século XII e início do século XIII. Esse historiador define o exemplo do século XIII (tido como o tempo do exemplum) como “um conto breve dado como verídico (: histórico) e destinado a ser inserido num discurso (em geral, um sermão) a fim de convencer um auditório por meio de uma lição salutar”. LE GOFF, Jacques. O

imaginário medieval. Op. Cit., p.123.

39 Id. Ibidem., p.125. Grifo do autor. 40 Id. Ibidem., p.126.

Desse modo, o voo do anjo pelo fogo do Purgatório assumiu no passado e, assume no presente, lições que ensinavam e, ainda hoje ensinam, os mais jovens a viverem na fé e a seguirem os ensinamentos dos mais velhos. No presente, permanece a certeza de que eles, narradores e ouvintes, como cristãos e, por conseguinte, pecadores, também passarão por lá. Concomitante, tal exemplo angélico serve como uma referência para lembrar aos ouvintes a necessidade de viverem uma vida religiosa, sobretudo, de preparação, oração e dedicação às boas ações.

Nessas tessituras do passado narrado, esse exemplo era reproduzido nos momentos em que os idosos católicos ensinavam sobre os cuidados do bem viver em comunhão com as crenças e práticas religiosas para os seus familiares mais novos. É salutar lembrar que as memórias também são carregadas de intencionalidades e, dependendo do contexto e do cenário no qual são relatadas, são usadas e abusadas no cotidiano.41

De forma semelhante às memórias de alguns narradores, as crenças registradas pelo Barão Guilherme Studart como superstições do Ceará dos fins do século XIX e início do século XX, dizem que “criança que morre no período da amamentação vai vomitar o leite no Purgatório”.42 Nesses termos, o “período da amamentação” corresponde à temporalidade da

vida terrena cabível ao vômito dos anjinhos no além.

Todavia, não há, nas narrativas produzidas, um recorte temporal padronizado, coerente e consensual destinado ao vômito dos anjos no Purgatório. Essas temporalidades não estão bem definidas ou ajustadas. Entre horas, dias, meses e anos, as crianças amamentadas em vida, quando mortas, precisam vomitar. E, enquanto alguns narradores afirmaram se tratar apenas dos anjinhos, outros alargaram para os demais mortos, inserindo todos eles no rol das almas vomitivas. As memórias da manicure Cida aludem esses sentidos:

Cida: É tanto que tem um dizer assim: que você nasce sem nenhum pecado,

mas a partir do momento que você mama você já está pecando né? E se você mamou, quando morrer você tem que passar por lá[Purgatório] pra derramar o leite que você mamou, no Purgatório. Tem esse dizer, que o povo derrama o leite no Purgatório.

Joaquim: Isso é das crianças?

Cida: Não, é qualquer um de nós. Você num já mamou? Pois é, eu também.

Qualquer dia estamos, vamos por lá, derramar o leite que nós tiremos de nossa mãe.43

41 Cf. ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004, p. 36-39.

42STUDART, Guilherme Apud CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do folclore brasileiro. v.2. 6 ed. São Paulo:

Global, 2003, p. 43.

Cida foi a única das entrevistadas a expandir o vômito no Purgatório para todos os mortos. No entanto, ela não apresentou outros detalhes, reafirmando apenas que todos nós, incluindo eu e ela, também passaremos no terceiro lugar para vomitar o leite mamado em vida. Na atualidade, apesar do nosso tempo vivido não ser correspondente à temporalidade da infância, quando fomos amamentados, esse pecado permanece nas nossas costas para ser redimido quando morrermos no mundo terreno e passarmos pelas chamas purgantes.