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V. Discussão

1. Anomalias Numéricas

As anomalias numéricas dos cromossomas sexuais são as mais comuns de entre todas as alterações citogenéticas (Linden, Bender e Robinson, 2002; Powell, 2005). Na verdade, os cromossomas X e Y apresentam uma maior variedade de anomalias estruturais e de aneuploidias compatíveis com a vida quando comparados com os autossomas. Estão descritas aneuploidias com 47, 48 ou 49 cromossomas (X e/ou Y) (Linden, Bender e Robinson, 1995; Miller, 2001) e, tal como referido anteriormente, sabe-se também que a existência de mosaicismo com uma linha celular normal é muito mais frequente nos cromossomas sexuais do que nos autossomas (Gardner e Sutherland, 2004). Assim, a perda de um cromossoma sexual devido à não-disjunção durante a gametogénese é um acontecimento relativamente comum que leva à formação de zigotos monossómicos para o cromossoma X ou Y (incompatíveis com a vida), bem como zigotos supranumerários para estes cromossomas (Bondy e Cheng, 2009).

Como se pode constatar a partir da análise da Tabela 4, são vários os cariótipos detetados neste estudo que fazem parte do grupo das anomalias numéricas, fazendo- se de seguida uma abordagem a cada um deles.

1.1. 45,X e Mosaicos 45,X com uma Linha Celular Normal (46,XX)

O cariótipo 45,X é a anomalia numérica mais frequente em mulheres com alterações clínicas (Gardner e Sutherland, 2004), facto que foi corroborado por este estudo, uma vez que esta foi a alteração cromossómica mais frequentemente detetada: 23,4% do total de casos com anomalia (66/282 casos). No grupo das anomalias numéricas, este cariótipo (45,X) foi também a anomalia mais frequentemente detetada, representando 45,8% dos casos (66/144 casos).

As mulheres com cariótipo 45,X abrangem aproximadamente 50% dos doentes com disgenesia gonadal e cariótipo anormal (Schinzel, 2001). As mulheres com cariótipo 45,X e 45,X com outras linhas celulares são englobadas clinicamente no Síndrome de Turner, uma vez que se pensa que a etiologia deste síndrome é a redução do complemento de genes que são normalmente expressos pelos dois cromossomas X (Morgan, 2007; Davenport, 2010).

A baixa estatura é a característica clínica que se encontra invariavelmente presente nas mulheres com 45,X (devido à haploinsuficiência do gene SHOX), resultando a sua altura final em cerca de 20 cm abaixo do que seria esperado (Bondy e Cheng, 2009). O padrão de crescimento é caracterizado por atraso do crescimento intra-uterino, crescimento normal nos três primeiros anos, desaceleração progressiva do crescimento na infância e ausência de aceleração pubertária (Schinzel, 2001; Santos

et al, 2010). Sabe-se que a altura duma mulher adulta com Síndrome de Turner está

diretamente relacionada com a altura dos seus pais (Ogata, 1995), pelo que, ao analisar a altura de uma doente, deve ter-se sempre em consideração a altura dos pais. Outras manifestações clínicas desta patologia podem variar e ser mais ou menos subtis, mas incluem geralmente peito largo com mamilos afastados, pescoço curto e largo, malformações cardíacas (nomeadamente a coartação da aorta e defeitos nas válvulas coronárias que são a principal causa de mortalidade prematura destas doentes), cubitus valgus e linfoedema congénito. A ausência de desenvolvimento pubertário devido à insuficiente ou ausente produção de estrogénio (Santos et al, 2010) é também uma das manifestações desta patologia, uma vez que na maioria destas mulheres ocorre uma diminuição da quantidade de oocitos produzidos ainda durante o desenvolvimento embrionário; este fenómeno provoca uma regressão dos ovários para tecido fibroso incapaz de produzir estrogénio (Morgan, 2007; Bondy e Cheng, 2009). As manifestações fenotípicas do Síndrome de Turner variam ao longo da vida das pacientes, mas em todas as idades o reconhecimento clínico pode ser difícil, uma vez que as dismorfias faciais podem ser subtis. As características clínicas decisivas neste síndrome são a ausência de desenvolvimento sexual ou amenorreia, com níveis elevados de hormona folículo estimulante (FSH) por volta dos 14 anos de idade, falência ovárica e infertilidade.

O estabelecimento de um diagnóstico precoce desta patologia é extremamente importante uma vez que, quanto mais cedo se iniciar a terapia de suplementação hormonal, melhores resultados se obtêm. Apesar de não se verificar défice de hormona de crescimento nestas pacientes, pensa-se que elas possam ter uma

diminuição da sensibilidade aos fatores de crescimento (Santos et al, 2010). A terapia promotora do crescimento com hormona humana de crescimento recombinante em doses supra-fisiológicas é o método de tratamento aceite para a regulação da altura durante a infância e idade adulta. Além do potencial genético de crescimento, a altura final das crianças tratadas depende da dose administrada de hormona de crescimento, da duração do tratamento pré-pubertário e da altura em que é iniciada a terapia de substituição do estrogénio (Ranke, 2001). Assim, a terapia com hormona de crescimento deve ser iniciada logo que ocorra paragem no crescimento, levando a uma rápida normalização da taxa de crescimento (Davenport, 2010), conseguindo 80% dessas crianças atingir a estatura-alvo familiar (Pareren et al, 2003). Um diagnóstico tardio e uma dosagem hormonal insuficiente levam, na maioria dos casos, a um adiamento da administração suplementar de estrogénios e, em consequência, a um atraso na feminização, o que pode levar a problemas nas relações sociais e na interação com o sexo oposto (Ranke e Saenger, 2001). Assim, o tratamento hormonal de substituição (THS) deve iniciar-se por volta dos 12-14 anos de idade, de modo a evitar a hipoplasia do útero e permitir uma gravidez por fertilização in vitro (FIV) na idade adulta, se for essa a opção da mulher (Gardner e Sutherland, 2004), devendo o THS continuar até aos 50 anos de idade (Davenport, 2010).

Uma vez que a fertilidade natural é extremamente rara nestas mulheres, o aconselhamento genético a mulheres com cariótipo 45,X e que pretendam ser mães, passa pela sugestão da FIV de oocitos doados, ou pela implantação de embriões doados, numa tentativa de atingir a maternidade (Gardner e Sutherland, 2004). O sucesso destas tentativas de procriação depende do estado de maturação uterina (Ranke e Saenger, 2001); porém, o sucesso nos tratamentos de gravidez versus a taxa de abortamento é sobreponível a outras causas de infertilidade (Santos et al, 2010). Se o diagnóstico for feito na infância, pode equacionar-se a possibilidade da criopreservação de tecido ovárico obtido antes da regressão ovárica, técnica que parece ser bastante promissora (Santos et al, 2010).

No nosso estudo, das 144 doentes com anomalias numéricas, 47 (32,6%) eram mosaicos com uma linha celular 45,X. Destas, 28 (19,4%) apresentavam apenas uma linha celular normal, 46,XX além da 45,X, e 16 (11,1%) apresentavam uma terceira linha celular 47,XXX. Nas mulheres com estes tipos de mosaicismo o fenótipo é, geralmente, mais atenuado, apresentando apenas défice de crescimento e disfunção gonadal acompanhados de poucas, ou nenhumas, dismorfias (Schinzel, 2001). No

entanto as manifestações clínicas em cada caso individual não são previsíveis apenas pelo resultado do cariótipo (Santos et al, 2010).

No acompanhamento e no aconselhamento genético de mulheres com um mosaicismo para uma linha 45,X é muito importante saber o grau desse mosaico, ou seja, o rácio entre o número de células anormais e o total de células analisadas. Para isso, na prática, durante a elaboração do relatório citogenético, deve recorrer-se a ferramentas estatísticas disponíveis (http://vassarstats.net/prop1.html) para conseguir um resultado citogenético fiável, com um intervalo de confiança de 95%. Assim, deve fazer-se uma distinção entre mulheres com cariótipos em mosaico que apresentam um fenótipo de Síndrome de Turner e cuja fração de células 45,X é substancial e mulheres que apresentam um fenótipo normal e uma baixa proporção de células 45,X. O risco de descendência cromossomicamente anormal depende do grau de mosaicismo e, principalmente, da distribuição da linha celular 45,X (Gardner e Sutherland, 2012). Se existir um mosaicismo somático-gonadal (presença de células 45,X e 46,XX nas gónadas) pode existir um risco aumentado de descendência anormal.

Em mulheres fenotipicamente normais, o mosaicismo de baixa expressão (total de células anormais ≤10%) deve ser distinguido do acima descrito, uma vez que, segundo alguns autores, não terá consequências reprodutivas (Gardner e Sutherland, 2004). Autores há que defendem que este mosaicismo possa estar relacionado com uma maior propensão do cromossoma X para não-disjunção, comparativamente com o observado nos autossomas (Marshal, 1996) e com a perda normal de um dos cromossomas X com o envelhecimento (Gardner e Sutherland, 2012). No nosso estudo (Tabela 11) não verificamos este facto, uma vez que, das 22 mulheres com Abortamentos de Repetição, 21 apresentavam um cariótipo em mosaico para linhas celulares com aneuploidia do cromossoma X. Destes mosaicos, 16 casos eram de baixa de expressão, o que parece indicar a existência de relação entre os abortamentos e as aneuploidias do cromossoma X, ainda que em mosaicismo de baixa expressão. Esta observação está de acordo com o anteriormente descrito por Morel em 2002: as mulheres que recorrem a técnicas de procriação medicamente assistida, nomeadamente a injeção de um espermatozoide dentro de um óvulo por meio de micromanipulação, têm uma maior propensão para mosaicismo de baixa expressão de células 45,X do que um grupo controlo de mulheres (Morel et al, 2002).

1.2. 47,XXX e Mosaicos com uma Linha Celular 47,XXX

Apesar de esta anomalia cromossómica estar descrita como a mais frequente em mulheres ao nascimento, com uma incidência aproximada de 1:1000 recém-nascidos do sexo feminino (Lalatta et al, 2010), no nosso estudo o cariótipo 47,XXX foi encontrado em apenas 20 dos casos (13,9%) com anomalias numéricas. Este valor pode estar relacionado com o facto de muitas destas mulheres serem assintomáticas ou apresentarem um fenótipo ligeiro, estimando-se por isso que muitas deles estejam subdiagnosticadas, estando identificadas apenas 10% (Tartaglia et al, 2010). Este diagnóstico é muitas vezes acidental, ocorrendo a grande maioria em diagnóstico pré- natal (Lalatta et al, 2010).

As características clínicas mais comuns presentes nas mulheres com esta trissomia incluem alta estatura, epicanto, hipotonia e clinodactilia (Tartaglia et al, 2010). Também está descrito nestas mulheres um risco aumentado de atraso de linguagem, pequenos problemas de aprendizagem e pobre coordenação motora (Lalatta et al, 2010).

Uma vez que aproximadamente 5% a 10% dos genes do cromossoma X localizados fora das regiões PAR também escapam à inativação, pensa-se que as manifestações fenotípicas desta trissomia resultem da sobrexpressão destes genes (Gardner e Sutherland, 2012). Apesar de haver já estudos que corroboram a hipótese da sobrexpressão génica em linhas celulares com um cromossoma X supranumerário, os genes específicos envolvidos no fenótipo da trissomia X e de outras aneuploidias sexuais ainda não foram identificados, à exceção do gene SHOX, que escapa à inativação e está associado com baixa estatura no Síndrome de Turner e com alta estatura nas situações de cromossomas sexuais supranumerários (Tartaglia et al, 2010).

Tal como acontece com outras trissomias, está demonstrada como estatisticamente relevante uma relação entre o aumento da idade materna e a ocorrência desta anomalia, visto se saber que os fenómenos de não-disjunção meiótica aumentam com a idade materna (Tartaglia et al, 2010).

Devido a algumas dismorfias como hipotonia, hipertelorismo e epicanto, algumas das pacientes com trissomia X são referenciadas para estudos citogenéticos devido à suspeita clínica de trissomia 21 (Tartaglia et al, 2010). De facto, no nosso estudo, as

duas doentes com suspeita de trissomia 21 englobadas no grupo Outros, revelaram ambas um cariótipo 47,XXX, o que está de acordo com esta afirmação.

Em 5-15% das mulheres com Síndrome de Turner (45,X) está presente uma linha celular 47,XXX (Tartaglia et al, 2010). No nosso estudo este valor é de 16,8% (19/113 casos), o que é ligeiramente superior ao descrito. A deteção de um cariótipo 47,XXX em linfócitos de sangue periférico numa mulher com baixa estatura e um fenótipo sugestivo de Síndrome de Turner deve levar a uma contagem alargada de metafases (50 células) e, eventualmente, à repetição deste estudo noutro tecido, para pesquisar a presença de uma linha celular 45,X, uma vez que isto pode alterar o procedimento terapêutico destas doentes (Tartaglia et al, 2010). Assim, às cinco doentes com suspeita de Síndrome de Turner e cujo cariótipo foi 47,XXX na sequência deste estudo, deverá ser recomendada a repetição desta análise noutro tecido, como por exemplo através de um biópsia de pele.

O aconselhamento genético em pacientes adultas deve visar essencialmente questões reprodutivas, nomeadamente falência ovárica precoce e o risco de transmissão de uma anomalia cromossómica numérica. A fertilidade em mulheres com trissomia X é na generalidade considerada normal; porém, em algumas destas mulheres, está descrita falência ovárica precoce, o que é de extrema importância num cenário de planeamento familiar. O risco de transmissão da aneuploidia do cromossoma X em mulheres com trissomia X não é aumentado em relação às mulheres 46,XX (Gardner e Sutherland, 2012).

Apesar dos cariótipos 47,XXX não mosaicos serem os mais frequentes, o mosaicismo ocorre em aproximadamente 10% dos casos e pode surgir em muitas combinações, como 47,XXX/46,XX ou 47,XXX/48,XXXX, ou em combinações com linhas celulares típicas de Síndrome de Turner, como 45,X/47,XXX ou 45,X/47,XXX/46,XX (Tartaglia et

al, 2010). No nosso estudo também foram detetados mosaicos com uma linha 47,XXX

com combinações 45,X/47,XXX/46,XX, 47,XXX/46,XX e 45,X/47,XXX, numa percentagem de 58% (28/48 casos), o que é bastante superior à descrita, talvez devido ao facto de as mulheres do nosso universo de estudo terem algum tipo de anomalia clínica e, além disso, o número de células observadas por caso ser sempre elevado, para exclusão de mosaicismo.

O risco de descendência cromossomicamente anormal em mulheres com uma linha celular 47,XXX em mosaico é diferente do das mulheres não mosaico, uma vez que o

mosaicismo pode aumentar o valor teórico inicial, pelo que cada um destes cenários deve ser avaliado individualmente (Gardner e Sutherland, 2012).

1.3. 48,XXXX e Mosaicos com uma Linha Celular 48,XXXX

As polissomias como o XXXX são muito raras, de prevalência desconhecida, estando descritos na literatura apenas 40 casos (Schoubben et al, 2011). No nosso estudo detetamos um caso com cariótipo 48,XXXX e outro com mos 48,XXXX/46,XX. As não- disjunções sucessivas num dos progenitores (75% dos casos são de origem materna) e a contribuição de apenas um cromossoma X do outro progenitor são o mecanismo de formação da maioria, se não da totalidade, destes casos (Gardner e Sutherland, 2012).

O Síndrome de Tetrassomia do X está associado a atraso de linguagem, dificuldades de aprendizagem, atraso de desenvolvimento e dismorfias faciais minor, que incluem epicanto e hipertelorismo (Schoubben et al, 2011). Apesar da severidade desta patologia poder variar, as dificuldades de aprendizagem e o atraso do desenvolvimento oscilam entre o ligeiro e o moderado (Linden, Bender e Robinson, 1995). Estas mulheres têm diminuição da função ovárica e só existe registo de um caso de fertilidade entre os casos descritos com uma linha celular 48,XXXX (Gardner e Sutherland, 2012).

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