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CAPÍTULO 3 DIMENSÕES DO INTERESSE SOCIAL E “SHAREHOLDER VALUE”

4. RISCOS AO COMPLIANCE EMPRESARIAL E INTRESSE SOCIAL: LIMITES E

4.2 SHAREHOLDER VALUE E INFLUXOS DA CRIMINOLOGIA ECONÔMICA

4.2.1 Anomia, oportunidades ilegítimas e subculturas delinquentes: ampliação dos

dos lucros

A partir das contribuições de DURKHEIM (2000), verificou-se que o crime remonta a uma consciência coletiva bem definida que permite definir o que é certo e errado. O crime não deixa de ser normal, porém, pode conduzir a um estado de verdadeira desorganização ou de desagregação social quando transbordados níveis aceitáveis, dando lugar à anomia.

Nesse passo, a anomia é concebida como uma ruptura na estrutura cultural, ocorrendo quando há uma disjunção aguda entre as normas e as metas culturais e as capacidades socialmente estruturadas de membros as atingirem legitimamente (MERTON, 1970, pp. 236-237).

Com efeito, os inúmeros e graves escândalos corporativos aludem a um estado de verdadeira anomia no ambiente empresarial, pois é possível verificar uma certa dormitação da consciência moral reguladora coletiva no controle social das práticas empresárias. Isso significa que os conjuntos de valores normativos que regulam os meios aceitáveis de obtenção das metas e objetivos culturalmente definidos na sociedade foram anulados pela tensão entre eles.

Nas sociedades em que há ênfase em relação aos objetivos em detrimento dos procedimentos, os comportamentos podem ser viciados pela tensão em alcança-los (MERTON, 1970, p. 206). Por isso, a ênfase exagerada na geração de riqueza a qual propõe a teoria da shareholder value pode vir a militar contra os modos institucionalmente regulados de acessá-la.

Assim, quando existe uma desproporcionalidade entre as metas do mercado financeiro e os meios disponíveis de atingi-las de maneira legítima, o resultado disso pode ser a inovação por meio da adaptação do comportamento do indivíduo pelo emprego de métodos proibidos, mas frequentemente eficientes para o atingimento do sucesso, da riqueza e do poder.

O caso épico da Enron e a crise no mercado de suprimes mostraram que a incorporação da shareholder value em várias organizações sedimentou a transmissão da ideia de que os fins justificam os meios. A despeito das várias reformas para aumentar o controle interno no âmbito das corporações como respostas às crises geradas, as políticas de conformidade ficaram restritas às perspectivas financeiras de governança, falhando no enfretamento do peso da orientação da shareholder value na ética corporativa, especialmente em relação a tensão gerada entre os objetivos e os meios legítimos de atingi-los.

Logo, as metas de curto prazo voltadas para a maximização do valor das ações contrastam com o controle efetivo dos modos institucionalmente regulados de conseguir o lucro, em razão da desproporção entre os fins e os meios disponíveis para se alcançarem os fins. Nesse sentido, as normas éticas e jurídicas, muitas delas incorporadas formalmente nos programas de compliance, perdem o sentido diante dos processos de desmoralização ou desinstitucionalização dos meios explicados pela anomia.

Assim, os indivíduos assimilam os objetivos, sem, no entanto, absorverem as normas institucionais disciplinadoras dos meios, inflando a disposição emocional para aceitar os riscos de suas condutas. Como resultado, há uma menor preocupação com os meios legítimos de obtenção das metas ou com os impactos das decisões e ações tomadas.

Nesse passo, cada aspecto da empresa norteado pela maximização dos lucros é demonstrado na instância de liderança, na forma de remuneração, nas políticas negociais, as quais veicularão a mensagem de que o que realmente importa para a organização é a obtenção do sucesso econômico. Por outro lado, os valores se consolidam sob outras referências distanciadas do compromisso com a ética.

Na ótica de Adan Nieto Martín (2018, p. 43), o capitalismo financeiro contém uma situação de tensão praticamente estrutural favorável as práticas delitivas. Tal sistema se caracteriza pela existência de investidores institucionais que movem os seus fundos com rapidez, buscando benefícios de curto prazo. A pressão de grandes acionistas para o alcance de benefícios de curto prazo pode gerar situações de tensão, que levam muitas vezes a condutas delitivas.

Deborah Cohen (2000, p. 34) sugere o seguinte cenário de aplicação do modelo de Merton às realidades empresariais: (i) os resultados financeiros estabelecem a medida do sucesso da corporação; (ii) os executivos experimentam grandes pressões dos acionistas para realizar os objetivos de ganhos; (iii) a decisão é feita para gerar lucros,

não importando os meios utilizados; (iv) a pressão por aumento de lucros aumenta a probabilidade de engajamento de gerentes e empegados com os crimes.

Também para a autora, a anomia no contexto empresarial se agrega a fatores psicológicos. Ela pode ser bem evidenciada quando os empregados percebem que seus relacionamentos não são baseados na confiança e no suporte, o que gera neles um sentimento de frustração e hostilidade, propiciando razões concretas para o cometimento de condutas antissociais. Além disso, eles se sentem apartados uns dos outros e emocionalmente distanciados, afetando sobremaneira a habilidade de considerar o malefício de suas condutas para os stakeholders (COHEN, 2000, pp. 189-191).

Outrossim, para além da tensão entre os meios legítimos de obtenção de lucros e as metas financeira, viu-se que é necessário que o indivíduo tenha acesso aos mecanismos de aprendizagem, e, uma vez treinado, encontre as condições necessárias para performar o seu papel (CLOWARD; OHLIN, 1960, pp. 144-148). Isso porque o comportamento criminoso é limitado por condições variáveis de disponibilidade, influenciada por série de fatores, psicológicos, condições socioeconômicas, entre outros aspectos.

Por sua vez, a atual formatação do mercado de capitais e do sistema financeiro, orientada pela maximização do valor das ações das companhias, amplia o grau de oportunidades para que os agentes se engajem com os atos ilícitos. A ausência de uma boa formação ética e moral, não restrita aos aspectos de educação formal, e o distanciamento entre a classe executiva e os stakeholders facilita a identificação das oportunidades ilegítimas e a sua aceitação como uma solução para obtenção das metas trimestrais.

Portanto, todos esses aspectos devem ser somados à elevada exposição das empresas de acesso às estruturas de aprendizagem e às oportunidades ilegítimas para a obtenção de seus resultados. Tal contexto favorece a formação de subculturas capazes de transmitir o conhecimento sobre as formas de infringência da norma e da racionalização do comportamento, tal qual identificado por Braithwaite (1989).

Isso porque, muitas vezes, a criminalidade surge como uma solução para os problemas partilhados por uma pluralidade de indivíduos situados em uma determinada estrutura social, que, mediante interação comunicativa, estabelecem novas crenças e valores como forma de lidar com a falta de ajustamento (COHEN, 1955 e COHEN; SHORT, 1958).

Como bem alertam Cohen e Short (1958, p. 21), nada é tão eficaz para dissipar dúvidas e fornecer garantias morais contra um superego atormentador quanto o apoio e a

aprovação repetidos, enfáticos e articulados de outras pessoas, razão pela qual as subculturas delinquentes são as mais poderosas formas de neutralização.

No âmbito corporativo, o resultado é a criação de novos parâmetros de valoração das condutas, vistos como pertinentes e necessários, porém, não atrelados à ética negocial. Emerge, assim, uma nova subcultura delinquente na corporação contra a qual os instrumentos de compliance possuem pouca força de contenção, especialmente em virtude das poderosas técnicas de neutralização.

Aliás, conforme alerta Braithwaite, 1989, a probabilidade de desenvolvimento de subculturas criminais é menor quando a crítica às empresas (processo de shaming) é mobilizada por indivíduos, organizações, comunidade, profissionais, parceiros industriais, reguladores e governos. Só que a mentalidade de maximização, por sua visão estreita, reduz a importância de consideração de tais perspectivas nas políticas corporativas.

Com efeito, sendo a maximização dos lucros a prática generalizada na gestão das companhias, a espera por estratégias voluntárias de atendimento do interesse social amplo pode ser extremamente frustrante. Por isso, o efetivo redimensionamento do papel da empresa e dos deveres dos controladores e administradores na gestão das companhias é central para a efetividade dos programas de compliance. Nessa quadratura, o estímulo aos processos deliberativos éticos e à participação dos stakeholders na gestão é um importante caminho para que o compliance lide com os múltiplos aspectos culturais, sociais, institucionais e psicológicos normalmente indicados para explicação do crime corporativo.