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CAPÍTULO 2 ENTRE OS CRIMES CORPORATIVOS E A CONFORMIDADE:

2.1 CRIME DE COLARINHO BRANCO E A TEORIA DA ASSOCIAÇÃO

A COMPREENSÃO DA CRIMINALIDADE ECONÔMICA

Analisando a criminalidade empresarial, Edwin Sutherland cunhou pela primeira vez a expressão crimes de colarinho branco66 (white-collar crimes) no final da década de trinta (NIETO MARTÍN, 2018, p. 41). A expressão foi utilizada com a finalidade de nominar os delitos praticados por pessoas conhecidas basicamente pelas suas carreiras legítimas e respeitáveis, no exercício de suas atividades, com o propósito de chamar atenção para crimes ordinariamente excluídos do escopo da criminologia (SUTHERLAND, 2016, p. 33-34).

Como ponto de partida, foram refutadas as premissas tradicionais da criminologia até então vigentes, as quais relacionavam os crimes às patologias físicas (anomalias biológicas e inferioridade intelectual) ou sociais, geralmente associadas à marginalidade, pobreza, falta de escolaridade e ao rompimento de laços familiares (SUTHERLAND, 2016, pp. 30-33).

Para Edwin Sutherland (2016, p. 33), as pessoas de classes mais altas também estariam engajadas em comportamentos criminosos, porém, seriam distintos apenas os procedimentos utilizados para lidar com os infratores. Nota-se, portanto, que o conceito de crime de colarinho branco foi desenvolvido para distinguir atos criminais relacionados às ofensas monetárias não tradicionalmente vinculadas à criminalidade. Trata-se, portanto, de uma categoria que se distancia dos crimes praticados por grupos socioeconômicos de camadas inferiores, sendo punidos de modo preponderante por penas administrativas e civis (CLINARD e YAGER, 2017).

A partir da pesquisa empírica produzida, Sutherland (2016, p. 333-350) concluiu que os crimes de colarinho branco possuem natureza deliberada e organizada, apresentando uma unidade relativamente consistente, muitas vezes implicando a reincidência. Com efeito, os crimes de colarinho branco não cuidariam de violações discretas e involuntárias a regulamentos técnicos.

66A obra “White Collar Crime” foi publicada em 1949, resultado de 17 anos de pesquisa com dados colhidos das 70

maiores empresas americanas. O autor não indica a origem da expressão, porém, historicamente, sabe-se que as indústrias possuíam uma divisão entre os portadores de colarinho azul (trabalhadores braçais e operários) e os de colarinho branco (trabalhadores intelectuais e de classes privilegiadas (LEMOS, 2016, pp. 7-13).

Alguns outros aspectos fundamentais foram percebidos por Sutherland (2016, pp. 333-350), a saber:

i) as empresas costumam cometer crimes contra consumidores,

concorrentes, acionistas e outros investidores, inventores, funcionários e o Estado;

ii) a ação criminosa pelos empresários não costuma implicar a perda de status entre os seus parceiros comerciais;

iii) os empresários costumam sentir e expressar desprezo pela lei, pelo governo e por seus funcionários;

iv) os crimes de colarinho branco apresentam relevantes níveis de organização informal67 e formal (acordos de cavalheiros, blocos de investidores, práticas de associações comerciais, acordos e patentes e cartel);

v) os homens de negócio se enxergam como cidadãos respeitáveis, e, normalmente são assim considerados pelo público;

vi) o criminoso de média e alta classe não é tratado com os mesmos procedimentos oficiais empregados para outros criminosos de baixa classe;

vii) o sigilo das práticas criminosas de colarinho branco é facilitado pela complexidade dos processos e pela ampla dispersão dos seus efeitos no tempo e no espaço.

Para Sutherland (2016, p. 351), os dados disponíveis sugerem que o crime de colarinho branco tem sua gênese no mesmo processo geral condutor de comportamentos criminosos, podendo ser explicado pela teoria da associação diferencial. Com efeito, o comportamento criminoso é aprendido em associação do indivíduo com aqueles que definem de forma favorável o comportamento criminoso e em isolamento com relação a quem define a prática de modo desfavorável.

Corolário disso, o engajamento com o crime somente ocorre se os pesos das definições favoráveis ao delito excederem o peso das definições desfavoráveis ao seu cometimento68 (SUTHERLAND, 2016, p. 351).

67Segundo Sutherland (2016, p. 337), os homens de negócio (...) não estão dispostos a suportar os encargos da

concorrência ou a permitir que o sistema econômico se regule de acordo com as leis de oferta e procura, adotando assim o método de planejamento e manipulação.

68Nas sociedades diferenciadas o choque de valores é inerente ao sistema, o que produz conflitos culturais em relação

a tais códigos. Desse modo, a associação diferencial só é possível porque a sociedade se compõe de vários grupos com culturas diversas (SHECAIRA,2012, p. 174). Conforme explica Sérgio Salomão Shecaira (2012, p. 175): “A cultura

criminosa é tão real como a cultura legal e prevalece em muitas circunstâncias, dependendo apenas da preponderância de fatores favoráveis em relação aos desfavoráveis”.

Por sua vez, os homens de negócio se encontram protegidos e isolados contra as definições desfavoráveis aos crimes de colarinho branco. Nota-se, por exemplo, a proteção deles contra a crítica dos ocupantes de cargos governamentais, inclusive evidenciada por uma postura menos severa no tratamento dos crimes. Destarte, as relações pessoais e as relações de poder acabam por proteger os homens de negócio contra as definições críticas por parte do governo (SUTHERLAND, 2016, pp. 366-368).

Outrossim, mediante análise de biografias e autobiografias, Sutherland (2016, p. 358) percebeu os indícios do processo de aprendizagem dos crimes de colarinho branco a partir da observação de que muitos dos infratores vieram de “boas famílias” e de “bons bairros”, não possuindo registros prévios de delinquência juvenil.

Assim, os homens jovens seriam introduzidos nos crimes como um processo de aprendizagem da prática negocial. Muitas vezes eles recebem ordens de seus gerentes para a prática de atividades que consideram antiéticas ou ilegais, e, em outras oportunidades, aprendem a obter sucesso com aqueles que possuem o mesmo nível. Nesse passo, os agentes aprendem técnicas específicas de transgressão da lei e de identificação das situações em que elas possam ser utilizadas (SUTHERLAND, 2016, pp. 358-359).

A difusão das práticas ilegais no mercado é um outro tipo de evidência da associação diferencial69. Quando uma empresa desenvolve um método para aumentar os lucros, outras empresas também o adotam, mesmo que não sejam competidoras diretas, sendo a difusão de práticas ilegais muitas vezes facilitada pela centralização da indústria nos bancos de investimento e pela reunião de interesses em associações comerciais (SUTHERLAND, 2016, p. 360).

Em síntese, o engajamento com a criminalidade é em grande medida determinado por um processo de aprendizagem conduzido pela frequência e intimidade dos contatos do infrator com o comportamento delituoso. Por sua vez, o processo de aprendizagem transmite para os agentes: (i) as técnicas de cometimento do crime, (ii) as motivações favoráveis às condutas ilícitas e; (iii) as formas de racionalização das condutas. Uma vez aprendido o comportamento desviante, o indivíduo se aparta de contatos frequentes com atitudes de conformidade e do escrutínio crítico em relação às definições desfavoráveis ao crime.

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O comportamento criminal das corporações ou indivíduos muitas vezes é resultado da difusão de práticas ilegais e políticas dentro da indústria, em uma atmosfera em que os participantes aprendem os motivos, valores, racionalizações e técnicas favoráveis aos tipos particulares de crimes (CLINARD e YAGER, 2017).

Segundo Sutherland (2016, p. 373-375) a desorganização social na comunidade também é uma explicação hipotética da criminalidade a partir do ponto de vista da sociedade. A desorganização pode ser fruto tanto de uma anomia (falta de normas para orientação do comportamento)70 ou do conflito de regras específicas dentro de uma sociedade. Além disso, a definição prévia da ilegalidade do comportamento é pré- requisito para o crime de colarinho branco, porém, é necessário que a sociedade esteja organizada para impor força ao seu combate.

Sem embargo disso, os estatutos legais têm pouca importância no controle do comportamento criminoso e a administração pública não se empenha em enfrentá-lo, salvo se houver um apoio público na busca da aplicação da norma. Por outro lado, não há uma oposição clara entre governos e o público de um lado e os criminosos de colarinho branco de outro, sendo tal fato uma prova da falta de organização social (SUTHERLAND, 2016, p. 375).

John Braithwaite (1985b, pp. 3-5) critica a imprecisão do conceito de crime de colarinho branco, mormente diante do requisito estabelecido em torno da configuração da respeitabilidade e da ausência de uma limitação legal em relação às condutas estudadas empiricamente. Além disso, o criminólogo aponta para a generalidade da explicação fornecida para a teoria da associação diferencial, pouco esclarecendo sobre as situações em que as associações efetivamente aconteceriam.

Por sua vez, Sérgio Salomão Shecaira (2012) destaca importantes críticas à teoria da associação diferencial. Em primeiro lugar, a teoria não considera a importância de fatores individuais de personalidade na associação e dos demais processos psicossociais.

O crime nem sempre decorre de padrões racionalizados e utilitários, existindo, também, uma certa simplificação na explicação do crime a partir de um processo mecânico de aprendizagem. Além de outros pontos, a teoria não explica a razão pela qual uma pessoa cede ao modelo desviante enquanto outras não, mesmo que em iguais condições (SHECAIRA, 2012, p. 184-186).

Porém, em que pesem as críticas tecidas, não se pode negar a importância dos ensinamentos de Sutherland para o desenvolvimento da criminologia econômica (SHECAIRA, 2012, p. 186), inclusive com repercussões nos temas da governança corporativa e do compliance, consoante será melhor abordado no Capítulo 4.

70Uma forma de anomia percebida por Sutherland (2016, p. 374) diz respeito à mudança do antigo sistema de livre