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CAPÍTULO 2 ENTRE OS CRIMES CORPORATIVOS E A CONFORMIDADE:

2.5 MODELO RACIONAL DE DISSUASÃO DO CRIME E PERSPECTIVAS

Conforme destaca Adan Nieto Martín (2018, p. 44), outra corrente de explicação para os crimes econômicos em que se apoia a criminologia encontra-se na análise econômica do Direito, que se fez incialmente no âmbito do Direito Penal. Principalmente a partir do trabalho seminal intitulado “Crime and Punishment: An Economic Approach”, Gary Becker (1968), ganhador do prêmio Nobel de 1962, utilizou a análise econômica para explicar os comportamentos delitivos92.

Partindo-se da premissa de escolha racional93, foram formulados modelos matemáticos para explicar a manifestação dos comportamentos criminosos em razão das funções estabelecidas entre o número de ofensas cometidas, o risco de detecção, as penalidades aplicadas em caso de condenação, e as utilidades geradas pelas ações criminosas.

É evidente a zona de influência do pensamento utilitarista de Jeremy Bentham na abordagem econômica do crime desenvolvida por Becker (POSNER, 1988). A teoria do filósofo sobre punição supõe que os indivíduos estão constantemente maximizando o seu bem-estar pelo sopesamento entre a antecipação do prazer resultante do crime aos olhos do ofensor e a antecipação da dor. Desse modo, a dor e o prazer seriam as forças soberanas que governam o que os seres humanos, fazem, falam e pensam, e partir delas se extrai o princípio da utilidade (BENTHAM, 2000, p. 14).

Para Becker (1968), as pessoas apenas cometem uma ofensa se a utilidade esperada com o crime exceder a utilidade que poderia ser obtida pela utilização do tempo e dos recursos em outras atividades legítimas. Assim, algumas pessoas se tornariam criminosas não porque suas motivações difeririam da motivação de outras pessoas, mas porque os custos e benefícios dos ilícitos seriam diferentes.

A partir da abordagem econômica do crime, restou bastante difundida a visão de que os ilícitos corporativos seriam resultados de ações meticulosamente calculadas pelos

92 Desde estudos originais de Gary Becker, o comportamento desviante é resultado da maximização do próprio

benefício e interesse próprio orientados à evitação da punição e da imposição de pena ou de um mal ao infrator (SAAD- DINIZ, 2019b, p. 67).

93Para Becker (1962): “rational behavior simply implies consistent maximization of a well-ordered function, such as

a utility or profit function”. Tradução livre: comportamento racional implica simplesmente uma maximização consistente uma função bem ordenada, tal qual a função de utilidade ou de lucros.

infratores enquanto maximizadores de sua própria utilidade (primado do homo

economicus).

Por esse prisma, a ideia de dissuasão do crime (deterrence) estaria baseada na racionalidade dos indivíduos, assumindo-se que o medo da sanção é o que irá conduzir os cidadãos ao cumprimento da lei (SIMPSON, 2002, p. 9). Assim, na medida em que risco e a consequência de punição formal sejam avaliados como maiores do que os benefícios do ato criminoso, a legalidade prevalecerá. Quanto maior a certeza, severidade e celeridade da punição, maiores serão os possíveis efeitos dissuasores tanto para indivíduos infratores (dissuasão específica) quanto para os públicos (dissuasão geral) (SIMPSON, 2002, p. 9).

Dito em outras palavras, em sendo os infratores seres racionais, a política regulatória ótima será obtida pela extrapolação dos custos da conduta ilícita em relação aos ganhos a serem auferidos diante de sua prática, considerando-se, ainda, os riscos de detecção.

Não obstante a simplicidade da prescrição, é difícil a obtenção de níveis adequados de compliance, sendo os escândalos corporativos um sinal de falhas sistemáticas nos sistemas dissuasórios. De um modo bastante didático, Sally Simpson (2002) organiza as teses que abordam a falha da dissuasão do crime corporativo, conforme será visto adiante.

Sob a ótica da implementação, a dissuasão irá falhar no desencorajamento da conduta criminosa se os custos de punição não se encontrarem salientes aos agentes. Muitas pesquisas empíricas sugerem que é lucrativo para as firmas violarem a lei porque o risco de detecção é baixo e os benefícios dos crimes ultrapassam os modestos custos da percussão criminal. Todavia, em relação aos crimes corporativos, a baixa severidade das penas, somada à incerteza de punição, produzem uma insignificante ameaça de punição (SIMPSON, 2002, p. 46-49).

Uma outra linha de pensamento, argumenta a ausência de uma maior ofensividade moral e reprovabilidade em si das ofensas corporativas, sendo muitas delas consideradas ilegais por uma questão de mera proibição legal. Assim, porque não há proibições morais intrínsecas, a dissuasão bem-sucedida torna-se uma questão puramente de efetividade do sancionamento. No entanto, tal ponto depende da extensão em que sociedade como um todo acredita na idoneidade de proibição, porquanto a dissuasão depende da percepção de legitimidade da lei. Portanto, a carência do senso de legitimidade incute uma percepção

de excesso de punição pelo sistema criminal em relação aos crimes corporativos (SIMPSON, 2002, p. 49).

Além disso, as empresas estão rodeadas de garantias processuais que afetam tanto a probabilidade de que as acusações sejam apresentadas quanto à probabilidade de que a punição seja recebida. Como consequência, é extremamente difícil provar que uma empresa é culpada de uma violação criminal para além de uma dúvida razoável (SIMPSON, 2002, p. 50-52).

As perspectivas sucesso da dissuasão também são diminuídas pelas características das próprias empresas. Tal afirmação pode parecer irônica se considerada a imagem caricatural das empresas enquanto entes predispostos ao comportamento racional. O problema é que a avaliação das empresas como entes mais racionais e mais sensíveis ao risco de sanções não explora uma vasta gama de fatores que afetam a racionalidade corporativa e, por implicação, a dissuasão corporativa (SIMPSON, 2002, p. 52-53).

Conforme destaca Sally Simpson (2002, p.53), algumas pesquisas têm demonstrado que a tomada de decisão coletiva é operada de maneira distinta em relação à decisão individual. Os grupos são mais propensos a aceitarem riscos em seus resultados que indivíduos, e, os fatores que impedem os indivíduos de violarem a lei - ou que os tornem mais avessos ao risco - podem não incorrer no nível em decisões tomadas em grupo. Desse modo, as percepções individuais dos custos das sanções são filtradas e ajustadas através da dinâmica de grupo.

À medida em que muitas (se não a maioria) das decisões criminais corporativas são tomadas coletivamente, assim, o modelo de dissuasão está comprometido. Tais aspectos devem ainda ser somados às tendências de neutralização do crime e aos efeitos da transitoriedade de pessoas em seus postos na racionalização dos efeitos dissuasórios. Na medida em que os riscos de punição sejam experienciais e específicos para uma posição específica na corporação, mudanças de pessoal atrapalham a percepção quanto à saliência das punições (SIMPSON, 2002, p. 53-55).

Assim como ocorre em relação às corporações, o processo de decisão gerencial é mais complexo que o modelo tipicamente racional supõe, fato também explorado por pesquisas empíricas pesquisas empíricas mais recentes na seara da ética negocial. A esse respeito, a pesquisa conduzida por Eugenes Soltes (2016) no campo da ética negocial apresenta bastante congruência em relação as críticas já introduzidas por Sally Simpson (2002) e seus achados apresentam uma imensa transversalidade em relação aos apontamentos desenvolvidos pela criminologia econômica nos moldes expostos acima.

Após ter pesquisado por oito anos o processo de decisão de quase cinquenta líderes condenados por crimes de colarinho branco, Eugenes Soltes (2016) concluiu que a generalidade dos delitos corporativos analisados não decorreu de considerações formais de cálculo de custos e benefícios feitas pelos agentes.

Na verdade, foi apurado que a maioria das ações criminosas foi fruto de decisões inspiradas em intuição, sem uma avaliação cautelosa prévia de custo e benefício. Percebeu-se que muitos executivos confiam, de modo excessivo, em suas próprias intuições, não se engajando em um processo deliberativo racional. Além disso, eles não estão acostumados a serem confrontados por pontos de vistas diversos no momento da decisão, reforçando o aspecto intuitivo da avalição (SOLTES, 2016).

Ainda para o professor de Harvard, o distanciamento físico e psicológico existente no mercado entre os executivos e os indivíduos potencialmente prejudicados pelo processo decisório afeta a habilidade de utilização da empatia no processo de decisão e a percepção do mal causado pelas suas condutas. Talvez por isso, apesar de os criminosos terem sido submetidos à formação ética de elite, não tenham sido capazes de avaliar de modo acurado as consequências de suas ações nas situações quotidianas (SOLTES, 2016).

Na verdade, segundo Soltes (2016), muitos executivos acreditaram que as suas decisões não poderiam, de fato, causar danos para as outras pessoas; muito pelo contrário, eles detinham a crença de que ajudariam a organização e os seus próprios empregados com a prática dos ilícitos.

Ainda, segundo Eugene Soltes (2016), o menor grau de reprovação dos crimes de colarinho branco pelos pares e pela comunidade imediata pode intensificar a ausência de cautela dos executivos no processo de decisão. Ademais, a menor incidência de um sentimento de vigilância comunitária no mercado (dada a sua impessoalidade marcante) pode ser uma força contrária às considerações de impactos sociais sobre as decisões tomadas pelos administradores.

Muitas dessas conclusões convergem com aportes que, vindos da sociologia econômica94 e da economia comportamental95, também reforçam a importância dos

94 DOBBIN, Frank. The new economic sociology. Princeton: Princeton University Press, 2004; GRANOVETTER,

Mark; SWEDBERG, Richard. The sociology of economic life. Boulder: Westview Press, 2011; FLIGSTEIN, Neil.

The architecture of markets: an economic sociology of twenty-first century capitalist societies. Princeton: Princeton

University Press, 2001. Para uma interessante noção da dinâmica da tomada de decisões em conselhos de administração no Brasil, ver GUERRA, Sandra. A caixa-preta da governança. Rio de Janeiro: Best Business, 2017.

95 ARIELY, Dan. Previsivelmente irracional: as forças ocultas que formam as nossas decisões. Rio de Janeiro:

Elsevier, 2008; KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012 e THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass H. Nudge: o empurrão para a escolha certa. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.

aspectos culturais, sociais e psicológicos na ação humana, ainda mais no contexto de uma organização. A importância do exemplo e da cultura corporativa, das dinâmicas de ação em massa como o conhecido “efeito manada”, das regras sociais dos networks em que estão inseridos os executivos e as suas empresas, dentre outros, são fatores que precisam ser compreendidos caso se queira entender as razões da criminalidade do colarinho branco e buscar soluções para a sua contenção (FRAZÃO, LACERDA, 2019).

Nesse contexto, conforme visto, por meio das análises quer prescritivas e quer descritivas, a criminologia econômica apresenta inúmeras possibilidades para auxiliar a construção de políticas de compliance que ajam nas diversas vertentes de explicação dos crimes. Tal conhecimento sem dúvida contribui na articulação das sinergias entre as pressões advindas da regulação estatal e da sociedade em prol de um sistema hígido de conformidade hígido96.

2.6 CONCLUSÕES PARCIAIS

Ao longo deste Capítulo foram elucidadas algumas das correntes criminológicas com grande aplicação aos crimes praticados por corporações, que emergem como uma categoria própria de estudo principalmente a partir das contribuições originárias de Edwin Sutherland. Ainda que as correntes abordadas tenham propósitos preponderantemente explanatórios, é possível extrair inúmeras possibilidades para explicar as características imanentes aos crimes corporativos, suscetíveis de posterior avaliação empírica na própria evolução do estudo criminológico.

Nesse contexto de elaboração de novas formulações críticas para o crime corporativo, foi possível abordar algumas características essenciais presentes nos processos de criminalização e de tratamento regulatório que tornam o crime corporativo mais imune às estigmatizações e à formação de uma consciência coletiva crítica quanto aos procedimentos ilegais empregados no campo negocial.

Pela aglutinação das teorias abordadas, pode-se perceber o comum isolamento moral que galvaniza a formação de subculturas criminosas, capazes de transmitir o conhecimento sobre a infringência e racionalização do comportamento criminoso, e muitas vezes facilitar a irresponsabilidade da corporação e de seus membros pelos crimes

96Aderimos ao posicionamento de Sally Simpson, para quem: (…) Punishment may not be an effective deterrent for

corporations and managers under most circumstances but constructing systems of compliance that tie into informal sanction threats are potentially much more effective sources of corporate crime prevention. Tradução:

A punição pode não ser um impedimento eficaz para empresas e gerentes na maioria das circunstâncias, mas a construção de sistemas de conformidade que se vinculam às ameaças de sanções informais são fontes potencialmente muito mais eficazes de prevenção de crimes corporativos.

cometidos em um contexto organizacional complexo, permeado de diversas expectativas. Nessa dimensão, os aportes analisados são fundamentais à elaboração e à formulação crítica dos programas de compliance enquanto instrumentos de controle da criminalidade econômica.

Assim, para além de explicações fundamentadas na análise racional do crime, é mister se debruçar sobre o contexto em que as intuições e os processos deliberativos racionais falham em direcionar o comportamento conforme e ético. A esse respeito, a criminologia auxilia na avaliação das dinâmicas de conformidade, seja em relação aos fatores individuais e coletivos que contribuem para o engajamento com o crime corporativo. É assim que o pensamento criminológico contribui para a formulação de um referencial ético na seara negocial e para a crítica dos efeitos de uma teoria do interesse social baseada na maximização de lucros na conformidade empresarial.