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O grande legado tropicalista para a música, feita após sua explosão, foi a demonstração de que a variedade músico-poética não poderia sair da pauta da criação dos artistas. A experimentação, a novidade, a mistura: características facilmente encontráveis num país com tanta miscigenação cultural, como é o Brasil. Curiosamente, foi necessária uma intervenção planejada dos tropicalistas para indicar este rumo para a própria classe artística.

Como já mencionado no final do capítulo anterior, o Tropicalismo, enquanto “arte de guerrilha” cuja missão era preparar um novo terreno para a canção brasileira, teve seu desfecho ainda no ano de 1968: “o Tropicalismo é uma fase crítica que se esgota quando cumpre o seu papel” (CAPINAN & TORQUATO NETO apud PIRES, 2004, p. 66). Com os discos tropicalistas de 1968, a abertura do leque das dicções era caminho sem volta.

Em 1969, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos pelos órgãos de repressão. Após a prisão e o confinamento de quatro meses na Bahia, os compositores baianos acabaram negociando com as autoridades o exílio na Europa, já que a repressão sobre as atuações dos artistas era constante, obrigando-os a viver em “contínua vigilância” (MACIEL, 1996, p. 216-217). Gil e Caetano partiram para o exílio em Londres, voltando em definitivo para o Brasil apenas em 1972. Suas obras a essa altura já tinham enorme relevância no cenário artístico brasileiro:

Embora muito jovens, os baianos já haviam deixado uma “escola”. Todos os novos compositores que surgiram depois (e mesmo os novos já surgidos) começaram a ter Caetano e Gil como parâmetro para compor — tanto no Rio como em São Paulo, Porto Alegre ou Guaxupé. (...) Creio

que os dois baianos tinham consciência da importância que passaram a assumir aqui. A forma como romperam as estruturas tradicionais da MPB correspondeu a uma abertura de visão de mundo em que vivíamos. (MACIEL, 1996, p. 216-217)

Luiz Tatit delineia o caminho da canção após o Tropicalismo através de uma sequência que pode ser resumida nestes pontos: 1) uma baixa na produção cancional, em decorrência da repressão e censura promovidas pelo governo militar, chegando ao extremo do exílio de vários artistas; 2) o fim da era dos festivais, simultaneamente com o declínio da TV Record; 3) a canção passou a acompanhar o emergente sucesso das telenovelas, transformando em sucesso a música que virasse tema de algum dos personagens das tramas; 4) aumento da difusão radiofônica e fortalecimento da relação gravadora/mídia; 5) libertação dos gêneros rítmicos pré-definidos (TATIT, 2004, p. 227-229).

O último item é inegavelmente o grande salto dado pelo Tropicalismo, que proporcionou o “gesto da mistura”. Em um recorte de importantes citações de Luiz Tatit sobre o assunto, temos a abertura do gesto cancional explorado por Caetano Veloso e Gilberto Gil:

O projeto implícito (e explícito) do Tropicalismo, aquele que redesenhava o modelo da “canção de rádio” das décadas subsequentes, fundava aquilo que viemos a reconhecer depois como música pop nacional. (...)

Assim, não contando com um termo mais genuíno (e talvez pelo próprio desgaste do conceito de genuinidade na cultura brasileira após a efervescência dos anos 1960), arriscamos a adotar o termo pop para caracterizar essa canção pós-tropicalista que toma conta das rádios a partir dos anos 1970 e que se descaracteriza como gênero. (...)

É através da canção pop que os autores e intérpretes passam então a exercitar suas habilidades temáticas, passionais e figurativas, pouco importando a procedência das formas utilizadas, o que abre o nosso horizonte sonoro para o acolhimento do rock — de Rita Lee e Raul Seixas ao rock nacional dos 80 — como música perfeitamente brasileira. (TATIT, 2004, p. 214)

Esta música pop referenciada confunde-se com a própria MPB pós-tropicalista, já que “a elucidação conceitual efetuada pelo Tropicalismo mostra que a MPB não tem limites preestabelecidos, pois não tem essência” (CICERO, 2003, p. 213). O leque das dicções propôs quebrar as fronteiras de gêneros musicais. A variedade musical dos anos 70 é um claro exemplo: vingaria naquela década “a música sem fronteiras rítmicas, históricas, geográficas ou ideológicas” (TATIT, 2004, p. 227). O grande e talvez único compromisso do cancionista era encontrar a melodia ideal para cada letra, e vice-versa, aprimorando sua dicção.

Em 1971 e 1972, os festivais televisivos deram seus últimos suspiros na telinha da Rede Globo. Mesmo sem o apelo e expectativa da década anterior, foi possível revelar nomes que depois ganhariam espaço de destaque no mercado musical dos anos 1970. Falamos de Walter Franco, Raul Seixas, Fagner, Zé Ramalho, Belchior, Alceu Valença, Sérgio Sampaio, etc. Ana Maria Bahiana chama atenção para o fato de que, desta leva, apenas Walter Franco (paulista) e Sérgio Sampaio (capixaba) são do eixo Rio-São Paulo, que até então movera o cenário da música brasileira18. Somado a estes, cita as mulheres compositoras que ganharam maior espaço a partir da década de 1970, quando destacaram- se Rita Lee (ex-Mutantes), Joyce, Sueli Costa, Catia de França, Leci Brandão, Angela RoRo e Marina Lima (as duas últimas já no final da década). Bahiana menciona esta turma, dos homens e das mulheres, como a linha de frente do prosseguimento da linha evolutiva (BAHIANA, 2005, p. 41-52).

Charles A. Perrone, em seu Letras e letras da MPB, reserva um capítulo à análise de parte desta produção dos anos 1970. Intitulado “Variedades da experiência músico- poética nos anos 70”, o tópico lança mão de muitas das canções de Walter Franco, Gilberto Gil, Belchior, Fagner, etc. (PERRONE, 2008, p. 185-224).

18 Contudo, fazemos a ressalva que um dos principais nomes da Bossa Nova (João Gilberto) e os líderes do Tropicalismo (Caetano Veloso e Gilberto Gil) são baianos.

Não entraremos em detalhes sobre as dicções destes cancionistas. A partir deste ponto, nossa abordagem acerca do Tropicalismo e da música da década de 1970 (ou pós- tropicalista), partirá primordialmente da análise de canções do disco Eu quero é botar meu bloco na rua, de 1973, do cantor e compositor capixaba Sérgio Sampaio.