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Apesar do projeto rumo à modernidade, lançado pelo governo JK, nem todas as classes sociais brasileiras estavam bem servidas com a política econômica. Na verdade, os problemas já sucediam desde o governo Getúlio Vargas, quando entre os anos de 1953 e

1954, buscou-se revigorar a força de produção interna e houve uma acentuada rejeição das elites que estavam associadas ao capital norte-americano. Na queda de braço política, a situação era clara: aumentava a dependência do capital estrangeiro, enquanto a situação do povo piorava a cada dia.

Júlio José Chiavenato, em seu livro O golpe de 64 e a ditadura militar (2004), nos oferece um relato que serve de base para entendermos o contexto brasileiro daquele período: da década de 1950 até a tomada do poder pelos militares, com seus métodos repressivos durante a ditadura.

Em 1951, bastava uma hora do salário mínimo para comprar 416 gramas de carne de primeira; em 1962, uma hora equivalia a 224 gramas. Em números reais, entre 1958 e 1961, os salários da indústria paulista baixaram, proporcionalmente, de 10 para 4, ou seja, apresentaram uma queda de 60%. (CHIAVENATO, 2004, p. 74)

Sob o famoso slogan “cinquenta anos em cinco”, o governo JK (1956 a 1961) patrocinou um tipo de desenvolvimento que incrementou o aumento da dívida pública; a indústria automobilística teve um grande avanço, em detrimento do desenvolvimento de ferrovias. Aumentava a produção industrial — consequentemente, os lucros dos patrões — mas o salário da classe operária não crescia na mesma proporção e a inflação disparava.

Esse cenário sócio-econômico, e suas contradições, se agravariam ainda mais na década de 1960. Em janeiro de 1961, Jânio Quadros assumiu a presidência, tendo como vice João Goulart6. Logo após a posse, começaram a aparecer as incoerências da administração de Jânio. Muitos setores, inclusive as forças políticas que o apoiaram, começaram a não aceitar algumas medidas polêmicas do novo presidente.

A política externa de Jânio foi um exemplo. Defendeu com vigor o direito de autodeterminação de Cuba, no momento exato em que os Estados

6 Na época, votava-se separadamente para presidente e para vice. João Goulart era do lado adversário de Jânio Quadros, mas logo a dobradinha foi defendida e eleita com o aval da elite brasileira. (CHIAVENATO, 2004, p. 13-14)

Unidos precisavam de aliados — principalmente do Brasil — para liquidar o regime cubano. Usou e abusou do discurso de independência, conquistando o respeito pela soberania da sua política externa.

Não ficou só nas palavras: reatou relações diplomáticas com os países do Leste Europeu; mandou representantes às conferências do Cairo e de Belgrado, defendendo posições hostis aos Estados Unidos; e, talvez o mais importante, apoiou o ingresso da China Popular na Organização das Nações Unidas (ONU).

(...) Condecorou o astronauta soviético Iúri Gagárin e, culminando, fez o mesmo com Che Guevara, o símbolo da revolução cubana.

Parecia um governo de esquerda... (CHIAVENATO, 2004, p. 15)

Essa menção a algumas das medidas de Jânio Quadros talvez ajude a explicar sua renúncia com menos de sete meses na presidência. Era a época da guerra fria, quando o mundo estava divido entre o bloco capitalista de um lado, comandado pelos Estados Unidos, e do outro o bloco socialista, capitaneado pela ex-União Soviética. Se o Brasil, àquela altura, já possuía estreita relação (ou dependência mesmo) econômica e política com os EUA, difícil conseguir sustentação na presidência com práticas que desagradassem aos líderes norte-americanos.

Em tempo: não nos interessa, no presente trabalho, aprofundar a análise dos aspectos sócio-políticos que desencadearam a instauração e práticas da ditadura militar. Interessa-nos, exclusivamente, um breve resumo do contexto histórico que servirá como pano de fundo para as análises das canções, verdadeiro propósito desta pesquisa.

Com a renúncia de Jânio, João Goulart deveria assumir a presidência, de acordo com a Constituição. Entretanto, ministros militares tentaram impedir que Jango assumisse a cadeira em Brasília. Houve tentativa de golpe, logo fracassada pelo posicionamento de deputados e senadores que corroboraram com diversas manifestações populares, a favor do cumprimento da Constituição. A solução encontrada para resolver a crise política foi realização de um acordo que permitiu a posse de João Goulart, mas sob o regime

parlamenterista, no qual o presidente teria os poderes diretamente vigiados pelos parlamentares.

Como relata Júlio José Chiavenato, o governo João Goulart é fundamental para que se entenda o golpe de 1964. Para não prolongarmos a discussão política neste espaço, abreviaremos acontecimentos complexos que provocaram a tomada dos poderes pelos militares.

Apesar de ser um rico criador de gado, latifundiário e com um histórico de resolver as questões políticas na base da conciliação, Jango começou a tomar medidas que entusiasmaram as camadas populares, mas que desagradavam às elites brasileiras e ao governo norte-americano. Algumas das medidas, segundo relato de Chiavenato:

A marca principal do governo de Jango foram as tentativas de reformas. (...) Existiam planos para as áreas eleitoral, administrativa, tributária, urbana, bancária, cambial, universitária e, certamente a mais polêmica, a agrária. No entanto, seria ingenuidade esperar medidas efetivas ou radicais para atenuar a crise social brasileira. Afinal, tratava-se de um governo de conciliação, liderado por um latifundiário que, no máximo, poderia ser classificado de “humanista social-democrata”.

(...) Mas, mesmo “no papel”, ainda em projeto, as reformas do presidente assustavam as elites.

(...) A proposta que mais sensibilizou a nação e irritou as elites sociais — e religiosas — foi a Reforma Agrária. (...) A mera divulgação de que o projeto da Reforma Agrária estava sendo remetido ao Congresso praticamente derrubou o presidente João Goulart. (CHIAVENATO, 2004, p. 21-22)

A realidade é que o governo de João Goulart provoca uma enorme insatisfação na direita brasileira. O populismo do novo presidente, puxado pelas medidas que dariam direito de voto aos analfabetos e soldados, irrita profundamente as elites políticas e a hierarquia militar. Começaria, então, uma campanha da direita e da alta patente militar, patrocinada em boa parte pelo capital norte-americano7, para a imediata troca de governo.

7 Como já citamos anteriormente, desde a década de 1950 eram cada vez maiores os investimentos americanos no Brasil. Mas, além da relação comercial, os EUA tinham interesse no controle do território

Intelectuais foram cooptados e assinavam artigos em jornais e revistas, criticando severamente o governo de Jango; a Igreja Católica promovia grandes marchas; governadores aliaram-se a cúpulas militares; todos unidos numa campanha contra um governo que eles denominavam comunista. Esta campanha “denunciou João Goulart como um irresponsável agente do ‘comunismo mundial’ ou, quando mais moderada nas críticas, como fomentador de uma ‘república sindicalista’” (CHIAVENATO, 2004, p. 26).

Em 1964 já era previsível que haveria a tentativa de tomada de poder através de um golpe. À medida que o governo de Jango procurava investir em medidas que desagradavam às elites e ao governo norte-americano, não procurava se defender de possíveis contra- ataques patrocinados por essas forças.

Jango não preparou a defesa. Ou melhor, não pôde preparar defesa alguma, porque a sua política ambígua contribuiu para liquidar as bases populares de onde sairia a sua sustentação militar. Isso quer dizer: só seria viável uma defesa revolucionária, mas o governo de João Goulart não era revolucionário. (id. ibid., p. 38-39)

Sem força, até mesmo internamente, o governo de Jango não pôde resistir ao golpe militar patrocinado pelas elites, por governadores como Carlos Lacerda (do Estado da Guanabara, atual município do Rio de Janeiro) e pelo capital estrangeiro. No dia 31 de março de 1964, tropas do Exército partem de Juiz de Fora (MG) em direção a Brasília.

O governo federal pouco fez: errou na tática defensiva ou foi incapaz de reagir. O golpe desabou rapidamente sobre a nação. O famoso “dispositivo militar” do general Assis Brasil mostrou-se tão inoperante que muitos acreditam ele nunca existiu de fato.

(...) Em resumo: a defesa foi tão precária que não considerou sequer os avisos de que o golpe tinha data.

(...) Digno e “duro” ou medroso e “mole”, o fato é que o governo caiu. (id. ibid., p. 69-70)

brasileiro: tempo de Guerra Fria e os países comunistas, liderados pela ex-União Soviética, não deveriam, no pensamento do governo norte-americano, ter aceitação em territórios próximos aos Estados Unidos, o que poderia representar uma ameaça política e bélica.

Com o golpe, João Goulart asila-se no Uruguai e os militares preparam um novo governo. A influência americana mais uma vez mostra-se evidente quando, três dias após o golpe, “os Estados Unidos reconhecem o ‘novo governo’, antes mesmo de ele se formar” (CHIAVENATO, 2004, p. 72).

Passou-se a entender a realidade brasileira como se existisse uma “guerra revolucionária”, o que intensificou a aplicação da Doutrina de Segurança Nacional. O resultado foi uma repressão jamais vista, em um estado policial que se utilizou de torturas, ignorou os direitos humanos e quebrou totalmente as noções do direito constitucional, criando a sua própria e espúria “legalidade” por meio de “atos institucionais”. (id. ibid., p. 93)

A partir da tomada do poder pelos militares, o que era para ser uma medida de segurança nacional contra o “perigo vermelho” (denominação à “ameaça comunista”), passa a representar um cerco contra a liberdade de expressão e dos direitos políticos da população. Desde o primeiro mês no poder, os militares passam a promulgar Atos Institucionais, que avalizam as medidas autoritárias adotadas em prol do controle do poder no Estado.

Os militares logo trataram de desprezar políticos, instituições, assinalando a existência de um regime ditatorial e subsequentemente uma verdadeira repressão, sufocando a liberdade da população. Para Chiavenato, uma característica peculiar na condução da ditadura implantada no Brasil, se comparada a regimes ditatoriais em outros países, foi o verdadeiro desprezo pelo povo8. A ditadura militar no Brasil fez amplo uso da brutalidade, havendo total ausência de autocrítica, como exemplifica Chiavenato: “seus

8 Chiavenato exemplifica citando que: “Mussolini queria ‘conduzir’ o povo porque o julgava vítima, incapaz de defender-se das elites. O fascismo italiano, como o português do ditador António de Oliveira Salazar, menosprezava a competência política do povo e o intimidava, mas não o desprezava. (...) Se quisermos um exemplo mais próximo no tempo e no espaço, podemos lembrar a ditadura do general Alfredo Stroessner, no Paraguai. Uma ditadura brutal quem, no entanto, ‘acarinhava’ o povo: falava literalmente a sua língua (o guarani) e o oprimia afagando, para mantê-lo como aliado contra a pequena oposição que enfrentava” (CHIAVENATO, 2004, p. 104).

burocratas olhavam a nação de cima, sentindo-se super-homens sobre uma legião de pretos, baianos, paraíbas, banguelas, etc.” (CHIAVENATO, 2004, p. 103).

Logo foi chegado o momento no qual a própria elite passa a se assustar com as medidas adotadas. Acentuava-se cada vez mais a concentração de poder nas mãos dos militares, afastando a sociedade dos mecanismos políticos. As classes culturais começam a reprovar as violentas medidas de censura.

O cenário brasileiro a partir de 1964 indicava este desprezo pelo povo e cerceamento dos direitos básicos, como a liberdade de expressão. Mas a produção artístico- cultural não podia parar, como de fato não parou, ainda mais quando levamos em conta que a década de 1960 é historicamente associada a um dinamismo cultural (PERRONE, 2008, 43-62).