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Em depoimento publicado no livro 1968: eles só queriam mudar o mundo, de Regina Zappa e Ernesto Soto (2008), Chico Buarque relata os primeiros anos da ditadura, afirmando que a classe artística começou a se opor ao regime militar desde o dia do golpe, em 1964. Nas suas palavras, até o ano de 1968, existia uma agitação política e certa liberdade para artistas: “lembro que os espetáculos em cartaz eram bastante fortes. Não se sentia o tacão da censura. Não havia a censura institucionalizada, a censura prévia. Esta se estabeleceu com o AI-5” (BUARQUE apud ZAPPA & SOTO, 2008, p. 24).

No período que vai de 1963/64 até 1967, destacamos na canção brasileira o surgimento de novos artistas que seguem no rastro da Bossa Nova e o advento da Jovem Guarda.

Como já havíamos citado anteriormente, depois de 1962 os principais nomes da Bossa Nova (João Gilberto e Tom Jobim) mudaram-se para os Estados Unidos, dando sequência às suas carreiras afastados do “olho do furacão” que se desenhava no território brasileiro. Muitos dos nomes da Bossa Nova que ficaram em terras tupiniquins, como Carlos Lyra, Nara Leão, Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, por exemplo, continuaram fazendo seus trabalhos, mas com uma menor preocupação na elaboração melódica e harmônica. Com a situação política do Brasil cada vez agravando-se mais, estes, dentre outros artistas, sentiram a necessidade de rebater os graves acontecimentos através da canção.

Uma das mudanças estéticas propostas era buscar se distanciar cada vez mais do jazz (com seus ornamentos instrumentais e harmonias bastante sofisticadas), para se aproximar cada vez mais do tradicional samba de morro, com harmonias mais simples, dentre outras mudanças. A alteração mais significativa estava nos temas das letras, pois estavam cansados de cantar “o barquinho”, “a praia” e outras maravilhas da zona sul carioca, enquanto viam a classe pobre sofrer cada vez mais com as políticas adotadas nos governos que se sucediam.

Importante destacar que, naquele momento, intelectuais de esquerda em parceria com a UNE (União Nacional dos Estudantes), haviam criado o CPC (Centro Popular de Cultura). A proposta do Centro era criar uma arte popular e revolucionária, fazendo com que seus membros “optassem por ser povo”, elaborando criações artísticas (dentre elas, música popular, obviamente) que “falassem a língua do povo”. Aconteceram vários espetáculos e obras com esse intuito. Um dos primeiros trabalhos com esta clara intenção foi a antologia Violão de rua, lançada em três volumes, entre os anos de 1962 e 1963.

As intenções sócio-políticas da poesia de Violão de rua estão evidentes no subtítulo do primeiro volume: Poemas para a liberdade. A identificação com o sofrimento e a luta dos camponeses é um tema

principal. A solidariedade artística com as massas é proposta pelo uso de formas da poesia popular e da auto-caracterização de poemas como canções de denúncia pública: “Poema para ser cantado” de Paulo Mendes Campos, “Canto angustiado aos plantadores de cana” de J.J. Paes Loureiro, ou “Canção do guerrilheiro torturado” de Ruy Barata. A voz narrativa de muitos dos poemas é a do violeiro ou cantador nordestino, que denuncia a exploração e os vícios governamentais. (PERRONE, 2008, p. 55)

Charles A. Perrone comenta que, apesar de existência de algumas variações estilísticas nos poemas — como o uso de verso livre nuns casos, ausência de rimas em outros e uma pequena inserção experimental, como pontos de fragmentação —, a série Violões de rua é pautada pela obviedade e pela busca do efeito moral e social. O tom didático se sobressai, na tentativa de “falar a linguagem do povo e para o povo”.

Heloísa Buarque de Hollanda resume em um parágrafo que o resultado estético obtido em tais trabalhos acaba não correspondendo às ideias de um projeto de “arte popular revolucionária”:

Poeticamente, esta opção traduz-se numa linguagem celebratória, ritualizada, exortativa e pacificadora. O laborioso esforço de captar a “sintaxe das massas” significa para o escritor a escolha de uma linguagem que não é sua. Programaticamente ele abre mão do que seria a força de seu instrumento de trabalho, a palavra poética — seu único engajamento possível9 —, em favor de um mimetismo que não consegue realizar, não

levando, inclusive, em conta o nível de produção do simbólico nessa mesma poética popular. Produz, então, uma poesia metaforicamente pobre, codificada e esquemática. (HOLLANDA, 1980, p. 26)

Na área da canção popular, enquanto proposta de engajamento, destacamos a realização do show Opinião, “primeiro espetáculo de resistência à ditadura e um marco no teatro musical brasileiro” (SEVERIANO, 2008, p. 407). Tendo à frente a cantora Nara Leão — que participara ativamente do surgimento da Bossa Nova na década de 1950,

9 Para Ezra Pound: “Os escritores, como tais, têm uma função social definida, exatamente proporcional à sua competência como escritores. Essa é a sua principal utilidade. Todas as demais são relativas e temporárias (...). Os bons escritores são aqueles que mantêm a linguagem eficiente. (...) Não importa se o bom escritor quer ser útil ou se o mau escritor quer fazer mal” (POUND, 1995, p. 36, grifo do autor).

quando muitas reuniões de músicos e compositores ocorriam no seu apartamento, na zona sul carioca —, contou ainda com a participação do sambista suburbano Zé Keti e com o maranhense João do Vale.

O espetáculo, que estreou em dezembro de 1964, no Rio de Janeiro, contou com grande apoio da classe estudantil, atuando lado a lado com o teatro e o cinema politizados. A canção acabava valendo-se da sua oralidade de base para “falar” dos problemas que ocorriam no país. Além do show Opinião — que chegou a contar com a presença de Maria Bethânia em substituição a Nara Leão — importantes nomes da música de protesto foram Edu Lobo, Sidney Miller e Geraldo Vandré. Segundo Luiz Tatit: “a música especificamente de protesto compunha com outras do mesmo estilo, mas menos direcionadas do ponto de vista ideológico, o gênero que passou a ser chamado de MPB” (TATIT, 2004, p. 52-53).

A partir de 1965, a canção brasileira ganha um grande espaço no meio de comunicação que ficava cada vez mais popular na época: a televisão10. A TV Record, em especial, possuía na sua grade programas com o comando de diversos intérpretes, como Elis Regina, Jair Rodrigues, Elizeth Cardoso, Agnaldo Rayol, entre outros. Afirma Luiz Tatit: “a Record era a casa da Tia Ciata da era televisiva” (id. ibid., p. 54), tamanha a variedade de cantores que ganhavam espaço na telinha.

O movimento estudantil estava representado na telinha através da música de protesto entoada por boa parte da MPB. Mas outra frente da canção brasileira ganhava cada vez mais espaço e embalava a juventude: o Iê-Iê-Iê. De imediato, os integrantes do movimento foram taxados de alienados, por estarem “despidos de qualquer engajamento de ordem social ou política, esses novos músicos encadeavam acordes perfeitos em suas

10 Segundo Jairo Severiano, nunca a música brasileira teve tanta interação com a televisão como no período entre 1965 e 1972 (SEVERIANO, 2008, p. 346-360).

guitarras elétricas e retomavam, agora sob a égide do rock, a música para dançar” (TATIT, 2004, p. 53). Na TV Record era visível a separação e “estimulava este tipo de embate, ao contrapor nacionalismo versus entreguismo no plano musical” (NAPOLITANO, 2003, p. 129). Afinal, naquela emissora, os cantores e compositores do Iê-Iê-Iê também ganharam um espaço: o programa Jovem Guarda, liderado por Roberto Carlos. O nome do programa acabou também por denominar o movimento.

A Jovem Guarda era uma expressão que seguia na esteira do sucesso do rock internacional, principalmente da primeira fase dos Beatles. Inclusive, muitas das canções do grupo inglês receberam versões em português, que se misturavam às músicas de compositores como Roberto Carlos e Erasmo Carlos. Como resumo da representação da Jovem Guarda, valemo-nos da citação de Luiz Tatit:

A Jovem Guarda personificava a primeira explosão de marketing rigorosamente planejado e com alvo definido: a juventude pré- universitária e os aficcionados do rock-Beatles (bem mais que o rock- Rolling Stones), da fase inicial, evidentemente. A esta altura, a MPB tinha menos da Bossa Nova, da qual originara, do que a Jovem Guarda. A leveza dos temas criados pela turma de Roberto Carlos, bem como seu modo de cantar, lembravam um pouco a dicção de João Gilberto (a primeira gravação do “rei da juventude”, “João e Maria”, era pura imitação do autor de “Bim Bom”), enquanto as inflexões regionais do protesto, além de carregarem nos temas engajados, deixavam transparecer recursos de uma oratória distante da fala cotidiana sobre uma harmonia tão simplificada quanto a dos guitarristas. (TATIT, 2004, p. 54)11

Em meio a esse embate MPB versus Jovem Guarda, apareceram os festivais da canção, realizados pelas emissoras de TV. Além dos nomes da música facilmente encontráveis na tela da TV Record, os festivais acabaram por revelar novos talentos. Através destes eventos que o grande público conheceu Chico Buarque, Paulinho da Viola,

11 Em artigo de 1966, Augusto de Campos já citava a aproximação do estilo interpretativo de Erasmo Carlos e Roberto Carlos com João Gilberto (CAMPOS, 2005, p. 62). Júlio Medaglia também corrobora com o ponto de vista, valendo-se de termos parecidos: “Por incrível que pareça, as interpretações de Roberto Carlos possuíam um despojamento muito maior e se aproximavam muito mais de João Gilberto que as daqueles que se diziam sucessores do bossa-novismo” (MEDAGLIA, 2003, p. 181).

Milton Nascimento, Tom Zé, dentre outros tantos que se consolidaram na história da canção brasileira.

Os festivais televisivos ilustravam bem o clima de tensão vivido pelo Brasil, ao exibir uma disputa artística que enveredava obrigatoriamente pelas questões político- sociais. Muitas vezes a platéia tomava partido (literalmente) por uma canção, de acordo com a posição ideológica revelada em sua letra. Vale lembrar que após o golpe de 1964, a cada ano que se passava, a repressão promovida pelos militares aumentava:

O engajamento da música de protesto contava com o respaldo da intensa luta dos estudantes, cuja organização, ainda livre de intervenção das autoridades (que já havia paralisado os sindicatos de classes), desencadearia quase todas as formas de contestação que tomaram conta do país, principalmente em 1968. (TATIT, 2004, p. 55)

Foi justamente em um festival da canção que os baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil apresentaram a nova estética tropicalista. Susto! O Tropicalismo chegou provocando uma verdadeira explosão, revolucionando a então recém denominada Música Popular Brasileira.