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No início da década de 90, os arranjos institucionais decorrentes da descentralização fiscal no Brasil traduzem-se numa anelada delegação, para os níveis inferiores de governo, de poder decisório em matéria financeira, cuja primazia fora até então das autoridades políticas centrais. No âmbito dos estados, pelo menos dois efeitos decorrem deste novo padrão institucional: primeiro, dada a redemocratização, as demandas sociais sobre os governos crescem em velocidade maior do que a sua capacidade de atendê-las e, segundo, a ausência de controles fiscais rigorosos fornece incentivos para os governos subnacionais elevarem seu nível de gastos com políticas distributivas e clientelistas. Governadores e prefeitos passam a fazer uso dos orçamentos como forma de honrar promessas de campanha e ganhar suporte político (Samuels, 2001). Isto porque eles sentem-se agora no mister de dar respostas diretamente ao eleitorado, o que os torna sensíveis às preferências dos eleitores, ou seja, extremamente vulneráveis à pressão dos ciclos eleitorais.

Pela ótica macroeconômica, os principais problemas passam a ser o déficit e o endividamento dos estados, visto que a devolução de autoridade fiscal acarreta menor

controle sobre uma importante variável da economia nacional – o gasto público – em razão da maior partilha de recursos com os governos subcentrais. Com efeito, ao receberem mais transferências federais, os governos dos estados têm incentivos para desconsiderar as conseqüências macroeconômicas das suas escolhas fiscais. Em outras palavras, os governadores passam a optar pelos benefícios imediatos e concentrados da elevação dos gastos, uma vez que os custos de tais escolhas, ainda que maiores, seriam arcados de forma difusa, em vagos termos de instabilidade macroeconômica.

Na verdade, tal cenário é promovido pelos conflitos inerentes aos sistemas federativos, porquanto as esferas de governo escalonam suas preferências fiscais de maneiras incompatíveis entre si. Para as abordagens tradicionais sobre o federalismo fiscal (Buchanan, 1970; Musgrave & Musgrave, 1980), os interesses nacionais girariam em volta da estabilização monetária, do crescimento econômico e da provisão de bens públicos de alcance nacional, enquanto os estados estariam mais interessados em obter autonomia política e fiscal, discricionariedade de gastos e produção de políticas públicas distributivas e locais. Na visão de Alston et al. (2006), as conexões eleitorais do Presidente da República o impelem ao atendimento de demandas de alcance nacional, como a redução da inflação e aumento do nível de emprego, o que depende do equilíbrio fiscal agregado, enquanto os governadores, que respondem perante um eleitorado mais reduzido, buscam sobrevivência política mediante gastos maciços em investimentos infraestruturais localizados, o que reprime os esforços federais de estabilização fiscal.

Além disso, como lembra Gama Neto (2007), a incerteza gerada pela volatilidade parlamentar nas assembléias legislativas concorre para a desventura fiscal dos estados. “A falta de apoio político-partidário construído nas eleições induzia os governadores de estado a adotarem políticas expansivas de gastos como forma de construção de apoio político”

(2007: 18). E o ajuste fiscal no nível estadual é tarefa difícil de se realizar, uma vez que há incertezas e muitos riscos associados à medida. Aplica-se o raciocínio de Melo (2005b: 98), para quem “os formuladores de políticas fiscais são tipicamente avessos ao risco. Na ausência de consenso sobre o impacto das reformas, eles preferem o statu quo à reforma”. Regras de equilíbrio fiscal até que existem, tais como limites de endividamento emitidos pelo Banco Central e regulações do Conselho Monetário Nacional e do Senado Federal. No entanto, essas regras “ou eram solenemente desrespeitadas ou suas punições não eram aplicadas” (Gama Neto, 2007: 18). Teria sido como se os políticos não temessem os ameaços de castigo, por em tempo algum se efetivarem.

Os custos de tamanha indisciplina fiscal não tardam a aparecer nas finanças dos estados: ainda na primeira metade da década de 90, a insuficiência das receitas tributárias para financiar os gastos públicos é visível e os valores mensais despendidos com o funcionalismo público e com o sistema previdenciário, ao invés de fixos, são crescentes, tudo refletindo na trajetória ascendente de sua dívida pública interna e externa. Em tal contexto, a execução orçamentária dos estados é normalmente viabilizada com o auxílio de recursos extraordinários gerados pela via inflacionária, como nos casos do reajuste da folha de pessoal em percentuais inferiores à taxa da inflação e o alongamento dos prazos de pagamento de credores. Outro curso de ação preferido dos governadores vem a ser o expediente de empréstimos não saldados junto aos bancos estaduais, na forma de emissão de títulos públicos, ou “moeda podre”. Os incentivos para tal rotina são óbvios: colhem-se os benefícios das operações no curtíssimo prazo e lançam-se os seus custos para momentos futuros e incertos. São óbvios também os efeitos negativos para a estabilização da economia nacional.

Em face disso, a União engaja-se em operações de socorro financeiro dos estados (os chamados bailouts). Considerando-se apenas os dois maiores bailouts do período anterior a Cardoso, as dívidas sobem dos estados para o governo central em 1989 e 1993 (Bevilaqua, 2000). As transações, além de onerarem demasiadamente o erário federal, acabam dando origem a falhas no controle do endividamento dos estados. A perspectiva de “federalização” do déficit funciona como incentivo à elevação dos gastos (Bevilaqua, 2000; Loureiro, 2001) porque os governos estaduais computam ganhos políticos ao se beneficiarem das dívidas que são posteriormente absorvidas pela União. E crescem ainda mais os fatores de pressão sobre as finanças dos estados com a implantação do Plano Real em 1994: reduzem-se substancialmente as receitas decorrentes de aplicações financeiras, até então utilizadas pelos governos estaduais para cobrir despesas de custeio. Não apenas isso: a própria política federal de elevação da taxa de juros encarrega-se de alçar o estoque da dívida subnacional a patamares excessivos, com tom ferino para o próprio equilíbrio macroeconômico nacional.

A crise fiscal, que já é generalizada, se intensifica e a solução se impõe urgentemente, à semelhança do prescrito por Drazen & Grilli (1993): a própria crise antecipa a estabilização, por forçar uma solução. Contudo, os políticos dos diversos níveis estão divididos sobre a matéria e o Executivo Federal éo único ator com interesses universalistas em relação aos problemas de common pool do país, i.e., a inflação e os custos reputacionais no cenário internacional. Com isso, nos anos que se seguem ao Plano Real o Presidente Cardoso tem como prioridade impor disciplina fiscal aos entes subnacionais, como meio de dar continuidade ao processo de liberalização econômica e ampliar suas possibilidades de reeleição. O sucesso das políticas de estabilização monetária fortalece o governo federal junto à opinião pública, conferindo respaldo às suas decisões de natureza

fiscal. Outro fator crucial é a possibilidade de aprovação da Emenda da Reeleição, alento para os governadores e um trunfo na manga do governo federal:

“A instituição da reeleição mudou o cálculo estratégico dos governadores frente às exigências do governo federal de maior controle das relações federativas. Com a perspectiva de continuar no poder, os chefes dos executivos estaduais passaram a endogeneizar nas suas preferências amplos acordos de renegociação das dívidas e privatização de empresas públicas estaduais com o governo federal, trocando restrições institucionais a futuros gastos pelo alívio financeiro no ano eleitoral de 1998.” (Gama Neto, 2007: 24)

Em razão disso e da grande vulnerabilidade fiscal dos estados, o governo federal adquire o tônus político necessário para convencer os estados a reverter o comportamento em favor do ajuste de suas contas. Em certa medida isto se aproxima das análises institucionais que apontam para a necessidade de um chefe do Executivo federal forte com capacidade institucional para anular a resistência de grupos políticos contrários às reformas (e.g., Mainwaring & Shugart, 1997; Alston et al., 2006). Tais análises creditam aos poderes constitucionais do Presidente a capacidade de impor suas preferências e implementar reformas em ambientes políticos hostis, superando, assim, os entraves do jogo político intergovernamental. A lógica por trás da força do governo central seria clara: problemas intensos de ação coletiva impediriam os governos subnacionais de formarem um bloco uniforme em prol de seus interesses, o que lhes gera perdas.

De fato, a força política do presidente Cardoso fica evidente quando vários governantes subnacionais são convencidos a aceitar mudanças que certamente limitariam a autonomia fiscal de estados e municípios. Se, segundo Rezende & Afonso (2006: 143), a intercessão dos governos estaduais e municipais no Congresso gera a oportunidade de se barganhar para compensar a redução de sua autonomia financeira, ainda que os governos subnacionais não tivessem influência direta na formulação das políticas, é do entendimento de Melo (2005a: 855) que “o Executivo federal teve que conciliar suas preferências fiscais com medidas que teriam conseqüências na sua sobrevivência política, inclusive nas áreas de políticas pelas quais eles arcariam os custos políticos no caso de fracasso.” Então, conforme entende Dillinger (2002), o apoio conseguido no Congresso pelo presidente Cardoso é crucial para vencer a resistência das elites estaduais à instituição das novas regras fiscais intergovernamentais.

É possível sumarizar as medidas idealizadas no primeiro mandato de Cardoso com o fim de esgotar as principais fontes geradoras de déficts subnacionais, lançando os fundamentos do ajuste fiscal dos estados: a renegociação de dívidas junto ao governo federal,4 as reformas do setor financeiro e a privatização dos bancos estaduais. O arremate é

a criação do Programa de Estabilidade Macroeconômica, composto de nova sucessão de medidas que se consolidariam em 2000 com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal. À vista disso, Alston et al. (2005) consideram difícil a tarefa de isolar o efeito da LRF de outras mudanças intensas ocorridas na economia e na estrutura de poder, embora

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De conformidade com a Lei 9496, de 1997, o governo federal assinou acordos de negociação de dívidas com a maioria dos estados brasileiros, os quais ficaram impedidos de emitir títulos até que suas despesas anuais se tornassem menor que as receitas. Os acordos e os programas de ajuste fiscal dos governos subnacionais serviram de base para a criação da LRF e foram por ela reforçados. Em 2000, apenas os estados de Tocantins e Amapá não haviam assinado acordos de refinanciamento (Goldfajn & Guardia, 2004).

reconheçam que a regra forçou grandes mudanças nos ritos procedimentais da execução orçamentária no Brasil.

E na arena política fica flagrante que o governo federal conseguira alterar a estratégia dominante dos atores subnacionais diante gasto e do endividamento. Nada assegurava, porém, que as novas regras seriam auto-suficientes, dado que “a reforma dos sistemas tributários e fiscais depende da capacidade dos atores em assumir compromissos críveis, no sentido de absterem-se de comportamentos oportunistas” (Melo, 2005b: 101). Assim, em que pese a moldura institucional da LRF e regras afins passar a guarnecer os contornos da agenda fiscal da Federação, restava saber se obstaria ela o oportunismo fiscal dos governantes aquando de assumirem compromissos eleitorais.