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As eleições importam, os ciclos persistem

5.1 Responsabilidade fiscal versus criatividade contábil

Em que possam pesar as diferenças políticas e partidárias entre os estados, tanto a Lei de Responsabilidade Fiscal quanto a Lei de Crimes Fiscais têm abrangência nacional. Além disso, os principais aspectos do sistema legal brasileiro são comuns a todos os estados, notadamente a supervisão das autoridades federais de controle, como o Ministério da Fazenda, o Banco Central e o Tribunal de Contas da União. Estes são os external enforcers, ou, no vernáculo, os agentes externos incumbidos da vigilância e aplicação de sanções aos casos de desrespeito às regras; são, em último grau, os baluartes da

responsabilidade fiscal no Brasil. Não se quer negar que a atuação efetiva ou potencial de tais instituições concorram para a elevação da performance fiscal dos estados, em especial ao se confrontar a média de resultado primário antes e depois da promulgação das regras. Entretanto, altercamos que o seu potencial coercitivo não se mostra suficiente para coibir a manipulação oportunista do orçamento público nos estados e período da amostra.

Os criadores da LRF miram a mosca na pretensão de exigir dos governantes maior transparência na utilização do dinheiro público. Quando se folheiam os relatórios apresentados pelos governos estaduais ao fim de 2002 e 2006, a impressão é de extremo zelo e rigor contábil, receitas casando com despesas e os grandes totais sempre em harmonioso equilíbrio. Casos há em que se extrapolam em muito as metas fiscais exigidas. Todavia, uma contumaz assimetria de informações entre os gestores públicos e os órgãos fiscalizadores da execução orçamentária gera oportunidades para a manipulação de conhecimentos fiscais, com maior veemência no período eleitoral.

Para Milesi-Ferretti (2003), boa parte dos ensaios teóricos partem da noção a priori de que as regras fiscais são plenamente efetivas no intento de induzir os governos deficitários a se engajarem num comportamento fiscal virtuoso. Entretanto, o autor argumenta que na ausência de transparência orçamentária a probabilidade de emprego de contabilidade criativa é grande, por gerar uma impressão falsa de cumprimento das regras. No Brasil, indícios da utilização de artifícios desta espécie são reportados pela literatura pátria já no nível federal. Silva & Cândido Jr. (2007), por exemplo, ao exporem os pormenores dos registros de apuração do resultado primário da União a começar de 2003, identificam situações reiteradas de postergação de despesas através do mecanismo contábil de inscrição nos restos a pagar. Dado que as despesas ali inscritas nunca entram no cálculo do resultado primário, o governo mostra repetidos superávits nas viradas de ano. Os autores

atentam para uma particularidade dos restos a pagar: são posteriormente inscritos na dívida consolidada, que também não se computa na apuração do resultado primário anual. Lima & Miranda (2006), por sua vez, advertem que os débitos com fornecedores inscritos como restos a pagar acabam funcionando como profícuos instrumentos de barganha política entre membros do Executivo e do Legislativo. Conquanto a circunspecta análise de Silva & Cândido Jr. se restrinja às contas federais, os autores vêem razões para presumir que a mesma artimanha contábil esteja sendo utilizada com constância pelos governos subnacionais: “no Brasil, a transparência das contas públicas estaduais está muito distante da transparência das contas públicas do governo federal”; e, ainda: “é difícil acreditar que os resultados primários dos governos municipais e estaduais possuem consistência maior do que o do governo central” (2007: 38).

Ou seja, na esteira do governo central, os estados também assumem obrigações financeiras em volume superior a sua capacidade orçamentária e preterem o pagamento mediante artifícios de contabilidade, notavelmente com o registro nos restos a pagar. É que, assim procedendo, os governadores demonstram estar cumprindo as metas de superávit primário contidas nas respectivas Leis de Diretrizes Orçamentárias, afastando, ao menos momentaneamente, o perigo de incorrerem no elenco de sanções da LRF. Isto se torna especialmente problemático nos anos eleitorais, quando os governantes contratam obras confiados em receitas futuras, adrede comprometendo os haveres do governo sucessor. Ao menos se prestam contas conforme reza a Lei fiscal, os prazos e limites são obedecidos de forma escritural e o governador sai ileso no ocaso do mandato. A contabilidade governamental nesses termos passa de criativa a enganosa e o Banco Central não percebe o ardil por medir o resultado fiscal apenas com base na variação do endividamento (ou da Necessidade de Financiamento do Setor Público).

Vêem-se nos estados da amostra vestígios de manobras escriturais em grande profusão. Outrossim, unidades federativas adicionais merecem citação: no Paraná, a queda do déficit primário acusada ao longo da administração de Roberto Requião (PMDB) muito se deve ao fato de não serem reconhecidas obrigações financeiras de exercícios findos. Nos relatórios de 2005, o governo do Paraná informa ter em conta um déficit de R$ 168 milhões. Ao acrescer os restos a pagar não-processados, porém, o TCE-PR notifica que o déficit dá um salto titânico para R$ 1,7 bilhão. Outra circunstância que põe em causa a autenticidade das escritas paranaenses de 2006: o valor de restos a pagar registrado no demonstrativo de disponibilidade de caixa é inferior ao publicado em outros relatórios, i.e., o Paraná divulga no início de 2007 duplas versões de prestações de contas do ano eleitoral, o que inspira a desconfiança da oposição: “Não sabemos mais quais dos números são verdadeiros ou qual o valor que há em caixa. O fato é que não temos como saber da real situação financeira do Paraná.”43

Outros exemplos de estirpe parecida: o Secretário da Fazenda de Sergipe Nilson Lima em 2007 assegura que o ex-governador João Alves (PFL) autorizara despesas que inexplicavelmente não aparecem nos relatórios descritivos do passivo financeiro do Estado, referindo-se a uma dívida aprovada pela Assembléia Legislativa, a ser amortizada em 60 meses, e que diz respeito a contribuições previdenciárias não recolhidas à seguridade social pelo governo sergipano. Menciona também a contabilização incompleta do custo de obras públicas iniciadas em 2006. Em função do sorrateiro artifício na conta patrimonial do Estado, João Alves propagara um “falso superávit”. E no Distrito Federal, decréscimos sensíveis e injustificados na qualidade de alguns serviços públicos na administração de

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Élio Rusch, deputado estadual (DEM-PR), em: “TC faz varredura nas contas de Requião”. Jornal do Estado, 29 de junho de 2007.

Joaquim Roriz (PMDB) são traduzidos pelo Tribunal de Contas Distrital como sinais da destinação de verbas para fins apartados do estatuído, embora sejam registradas sob a configuração regulamentar.

Para a literatura supracitada, a contabilidade criativa provém da falta de transparência nas finanças públicas. De fato, a divulgação das informações fiscais dentro da forma e prazo fixados na Lei nem sempre interessa aos governadores, já que a possibilidade de se avistar comportamento fiscal oportunista cresce com o grau de transparência do orçamento, o que explica atrasos e embaraços propositais nos processos de prestações de contas dos estados brasileiros. Além do Paraná, os governos estaduais do Amapá e Roraima não fazem circular por meio eletrônico seus relatórios de gestão fiscal de 2006 à maneira que estipula a LRF. Sergipe também retarda em 2007 a divulgação dos relatórios do ano eleitoral, mas o Secretário da Fazenda Nilson Lima do entrante governo petista imputa o evento à desordem administrativa da gestão precedente: “Uma coisa é governo reeleito. Outra coisa é governo chegando com a casa desarrumada”.44 A propósito, a literatura

teórica invocada no Capítulo 2 faz diferenciação entre governos que contam com grande possibilidade de se reeleger, ou de reeleger alguém de seu partido, e governos cuja possibilidade de reeleição é remota ou inexistente. Diferentes graus de disciplina e transparência fiscal podem, por conseguinte, emergir desta diferenciação.

Evidências como as descritas acima e no capítulo anterior reforçam a tese de contabilidade criativa nos estados brasileiros. Uma vez que as metas são impostas sobre o resultado fiscal mensurável (no caso, o resultado primário), ao contrário do resultado fiscal real (não mensurável por conta da assimetria de informações), as regras acabam sendo cumpridas de jure, mas não de facto. O mais forte indício do uso do artifício, nos termos

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sugeridos por Milesi-Ferretti (2003: 379), é, porém, a melhora rápida e momentânea nos resultados fiscais de final de mandato que, por serem aparentes, não conseguem se sustentar de forma intertemporal. Com isto, chega-se à súmula fatal de que “a contabilidade criativa está sabotando a responsabilidade fiscal”,45 o que em muito vai explicar porque vários

governadores terminam seus mandatos em 2002 e 2006 se gabando de deixar recursos suficientes em caixa, ao passo que seus sucessores os censuram por largar as finanças em estado deplorável.