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5 SER CRIANÇA: OBSERVAÇÕES SOBRE EDUCAÇÃO NOS TINGÜI-

5.2 ANTIGAS CRIANÇAS

Para melhor contextualizar os sujeitos deste estudo, serão utilizados os relatos sobre histórias de vidas dos “antigos da aldeia”, a partir do registro imagético realizado com estes, aos mais novos, também através das conversas informais. Nas entrevistas realizadas com os “antigos”, ao final das perguntas e respostas provocadas por aqueles que guiavam as falas, Washington e Daiana, procurei perguntar a respeito das infâncias destas pessoas, especialmente pedindo que as diferenciassem da vivida pelos seus netos, bisnetos, etc. Algumas relataram de forma mais sucinta, outras com mais ânimo; mas o fato é que todas que comentaram sobre suas vidas quando crianças se referiram a um “tempo mais difícil”.

Nas falas de D. Celina e D. Vanusa, por exemplo, elas incluem em suas apresentações a quantidade de filhos que tiveram, vinte e catorze respectivamente. Tal fato aponta para uma mudança na própria formação da família onde “as coisas eram outras” como afirmaram estas senhoras. Das famílias Tingüi-Botó, cujos pais são de uma geração mais jovem (entre vinte e quarenta anos de idade), o número máximo de filhos que verifiquei foram quatro, naquelas que já eram consideradas como tendo “muitos filhos”, podendo haver exceções.

A presença da energia elétrica também está incluída como um dos fatores que faz com que a infância, hoje em dia, seja “muito diferente”. Tal fato é destacado também nas falas das mulheres como D. Salete, em torno dos cinqüenta anos, e mesmo de sua filha mais velha Joelma. D. Salete escolheu uma história de sua vida para elucidar esta questão:

A gente foi muito sofrida no começo, quando não tinha energia. Deixa eu te contar a história: uma vez meu marido tava viajando, eu não tinha gás pra botar na lamparina pra clarear a casa. Cheguei da roça, meus filhos estavam em casa já no escuro. Sabe o que eu fiz pra clarear a casa? Por que não tinha energia, eu também não tinha “gás”

pra botar na lamparina. Eu queimei a palha do milho, seca, pra fazer aquele claro enquanto eu dava café pra eles, pra poder a gente dormir no escuro. [...] Era todo mundo na candeia.

Joelma, explicou que “a diferença é grande” uma vez que “a gente não tinha a

civilização que a gente tem hoje”. A respeito da “civilização” ela se refere ao relativo isolamento das famílias e à falta de recursos tecnológicos que são acessíveis às crianças de hoje e que antigamente era diferente: “a gente vivia mais no mato, a gente não tinha

civilização, a gente não tinha televisão, a gente não tinha escola, a gente vivia mais isolado”. Joelma destaca elementos que demonstram que a “civilização” está relacionada ao acesso a serviços e bens de consumos que só foi facilitado a estes indígenas após se organizarem social e territorialmente como povo Indígena Tingüi- Botó. Mas, para ela, essas mudanças apresentam dois lados: a vida se tornou “mais fácil”, como afirmou Joelma, porém, a atuação da FUNAI como órgão oficial que proporciona essas mudanças gera, muitas vezes, disputas entre os próprios indígenas que podem ter como conseqüência o faccionalismo.

As mudanças nas brincadeiras infantis também fazem parte da fala de Joelma: “a

gente brincava e nossas brincadeiras eram mais inocentes, as crianças eram mais inocentes (...) antigamente as crianças faziam tranças, chapéus, o artesanato. Hoje em

dia mudou muito”. Ela acrescenta que as crianças atualmente querem brincar “com

brinquedos dos brancos mesmo”: “as nossas brincadeiras eram do nosso povo mesmo”. Além disto, “nossa convivência era diferente, era na pesca, no mato, na roça”.

Para D. Maria e D. Vanusa a “desobediência” de seus netos e bisnetos é um fator diferenciador de suas infâncias. D. Vanusa se refere a isto mais brandamente, explicando que as crianças de hoje “não tomam os conselhos que os pais dão, mas a

gente vai debatendo! A gente vai chegando quase igual”. Já para D. Maria, a diferença é fundamental uma vez que “meus netos não foram criados no meu tempo de jeito

nenhum”, se refletindo no respeito com os mais velhos: “hoje em dia tão aí, a gente

chama, eles não dão ouvido. [...] Graças a Deus o meu pai me criou que se chegasse um mais velho, uma mulher de idade, mandava dá benção”. Nos castigos que eram aplicados nas crianças por esta desobediência, “eu não posso andar batendo em filho de

ninguém, nem brigando!” e na reunião da família em horários como almoço, janta: “se

D. Maria fala também sobre o fato de não ter estudado, apontando para outra modificação, a educação formal e o trabalho infantil: “e nisso me criei, minha filha!

Graças a Deus o meu pai me criou bem. Agora, a pena que eu tive é dele não ter botado a gente na escola. A escola que ele deu foi o cabo da enxada”.

A mortalidade infantil é tema nas falas de D. Celina, que afirma que dos vinte filhos que teve “se criaram” treze, e de D. Maria, que explica que duas filhas suas, gêmeas, nasceram mortas. Esta questão aponta para o fato de que a mortalidade infantil fazia parte de suas realidades de forma mais marcante, uma vez que houve outros relatos que se referiam a isto. Tal fato não se trata de uma característica particular dos Tingüi-Botó, fazendo parte de um contexto abrangente onde o alto número de mortalidade infantil faz parte da história do país, começando a ser minimizada apenas recentemente. A própria criação do posto de saúde na área, com assistência pré-natal e acompanhamento da saúde das crianças pode ser apontado como elemento fundamental em relação à sua queda, apesar de estar longe ainda de prestar um serviço de excelência.

Quando questionadas a respeito dos “costumes de índio”, D. Maria e D. Celina apresentam respostas diferentes: D. Maria explica que “não conhecia”, seu pai só a mandava “pr’a roça!”, que só tomou “conhecimento de índio” depois que casou com Sr. Francisquinho. D. Maria enfatiza a educação que recebeu: “no tempo que meu pai

me criou as coisas eram outras. Agora tá tudo desembestado, não fazem as coisas direito não. Por que meu pai me criou e ele me dava ensino, dizia: é assim, assim, assim”. Nesta fala ela se refere ao papel disciplinador que seu pai possuía em sua família e ao trabalho como a principal prática educativa. Em seguida ela explica como é feita a “criação” de seus netos: “Meus netos tão se criando desse jeito: brincando Toré.

Tem um Davinho, eita meu pai do céu! Aquele é danado! Quando é de noite chega ali debaixo daquele pé de pau, a gente só vê a toada dele. Agora, eu acho bonito! Eu acho lindo, lindo, lindo o Toré deles”.

Já D. Vanusa considera que, em relação ao conhecimento indígena, “eu acho quase

igual. Do meu ritual, de mim para os meus filhos, eu acho que não tem diferença não, graças a Deus!”. Deste modo, ela parece enfatizar que a transmissão de um conhecimento que é exclusivamente indígena, a despeito da transformação do comportamento social das crianças no cotidiano, tem sido realizada com maestria.

Sobre os cuidados com as crianças pequenas, o Cacique Eliziano enfatiza a vivência no ritual:

Nossos filhos homens sempre permanecem com a gente. Não discriminando a feminina, [ela] permanece com a mãe. Não se mistura. Feminino e masculino, tem um local. [...] No momento que ele completa um ano, ele já pode tá junto conosco, separado da própria mãe os dias necessários: 15 dias, 8 dias, 4 dias, sempre tá junto com a gente. A gente sai do nosso local masculino pra se alimentar, tomar café, mas pra dormir, dorme só nós juntos mesmo. [...]. Quando a criança tá mamando, traz aquela criança, enche a barriguinha, e volta pra sua esteirinha, dormir no chão, levar o sol, a poeira, o sereno, certo? E saúde que nós, estando lá, é muito saudável. Eu não tenho essa preocupação que se tiver um problema, as árvores são medicinais. A gente sabe o que fazer se tiver uma dor de cabeça, enxaqueca, uma febre.

Sobre a separação dos filhos pequenos de suas mães durante o ritual, a fala do Cacique parece refletir mais uma situação ideal, especialmente em relação às crianças que ainda são amamentadas. Durante a realização da pesquisa de campo, ouvi de várias mulheres que, geralmente, seus filhos pequenos ficam sob sua responsabilidade, até que seja feita a transição “para o lado do pai”, sem haver uma idade ou acontecimento específico para isto, ao menos que estas tenham se referido.

Já D. Salete, sobre este mesmo tema, o cuidado com as crianças pequenas, escolhe outros elementos para falar, referindo-se a diferença entre “quando a gente ia ganhar os filhotes da gente” e hoje em dia:

Não tinha fralda descartável, nem tinha fralda Jhonson não. Pegava aquelas bandas de calça do marido, daquelas que já não prestava mais pra ele trabalhar, aproveitava aquelas sainhas velhas que vestia por baixo da outra aí costurava, arrumava os paninhos pra os nenéns. Hoje em dia, só quer Jhonson, só quer isso, só quer aquilo. Até eu mesma, se fosse ganhar menino agora só queria do melhor.

Silvestre, filho de D. Lindaura, explica em sua fala que: “o índio considerado é

aquele que preserva nossa cultura, as nossas tradições, os nossos cantos lingüísticos, os nossos costumes que nós vamos passando de pai para filho”. Assim, ele enfatiza a transmissão de conhecimento: “eu tenho um filho desse tamanho, os meus costumes já

...”. D. Lindaura interrompe: “os índios mais velhos aqui se foram há muitos anos”. Quando perguntei como ocorre a transmissão de conhecimentos, Silvestre afirmou que “a gente aprende no dia à dia de trabalho”. Sua mãe, então, complementa: “a senhora

não ver dizer que puxe pelo trabalho que o trabalho ensina?”.

Assim, a infância, construída historicamente, vai se delineando a partir das concepções destas populações. Neste sentido os modos de vidas das diferentes gerações que compõem uma determinada sociedade dão as dimensões necessárias à compreensão antropológica sobre as relações, seja de aprendizado ou de tensão, que estas desenvolvem entre si, comunicando a respeito das recorrências e mudanças de determinados eventos ou pensamentos que as constituem.