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5 SER CRIANÇA: OBSERVAÇÕES SOBRE EDUCAÇÃO NOS TINGÜI-

5.4 AS CRIANÇAS E O TRABALHO

Um dos principais efeitos do acesso à educação pode ser a mudança sobre a percepção do trabalho infantil. Como afirma Rizzini

O Brasil tem uma longa história de exploração da mão- de- obra infantil. As crianças pobres sempre trabalharam. Para quem? Para seus donos, no caso das crianças escravas da colônia e do império; para os “capitalistas” do início da industrialização, como ocorreu com as crianças órfãs, abandonadas ou desvalidas a partir do século XIX; para os grandes proprietários de terra como bóias-frias; nas unidades domésticas de produção artesanal ou agrícola; nas casas de família; e, finalmente, nas ruas, para manterem a si e as suas famílias (RIZZINI, 2007, p. 376).

Pires constatou em sua pesquisa que o trabalho doméstico possui “como objetivo educar a criança para exercer atividades que lhe serão essenciais quando adulta. No caso de uma menina, a capacidade de gerência familiar e de organização doméstica podem, em muitos casos, ser qualidades mais apreciadas que a educação formal” (2007, p. 59). Nos Tingüi-Botó, um exemplo deste pensamento pode ser dado através da fala de D. Maria: “a escola que ele [seu pai] deu foi o cabo da enxada”, como vimos acima.

Farias e Martins (1998, p. 277), que realizaram pesquisa nesta área em 1996, destacaram que os Tingüi-Botó “se consideram bastante ‘trabalhadores’” e constataram a participação das crianças na lavoura. Rizzini (2007, p. 389) chama atenção para esta perspectiva, bastante difundida entre “classes populares”, onde o trabalho é visto como disciplinador, “capaz de afastá-los das companhias maléficas e dos perigos da rua”. O que vigora é a “escola do trabalho”. Segundo esta autora, “as histórias das crianças mostram que em muitas regiões miseráveis do país, incluindo os bolsões de pobreza nas grandes cidades brasileiras, o estudo tem pouco valor frente à necessidade de sobrevivência” (RIZZINI, 2007, p. 403). Apesar de considerar esta perspectiva, é importante destacar que não se deve descartar o “saber prático” destas populações. Entretanto, o que pude perceber entre os Tingui- Botó foi que, através das histórias de vidas registradas, o trabalho, no sentido de desenvolver atividades direta ou indiretamente relacionadas com a economia familiar, para as diferentes gerações possuem significados semelhantes.

O trabalho educa tanto para o “antigo”, como para o jovem, mas é vivenciado de forma bastante diferente para essas gerações. Se para os mais velhos ele fundamenta a educação, para aqueles nascidos já numa situação jurídica (enquanto indígenas) e territorialmente (com território demarcado) diferenciada, o “trabalho” é mais um dos elementos que constituem a educação destas crianças. Cohn (2000, p. 125) percebeu que entre os Xikrin “não se pode dizer que a participação das crianças nas atividades produtivas seja crucial. A das meninas talvez seja mais necessária, já que, cuidando das

crianças menores, possibilitam às mães realizar suas tarefas cotidianas”. Esta observação feita por Cohn entre os Xikrin parece se assemelhar ao que constatei entre os Tingüi-Botó.

As meninas muitas vezes ajudam nos cuidados de seus irmãos mais novos. Apesar desta ajuda variar entre as famílias, uma vez que umas requisitavam a presença destas garotas mais que outras, na maioria das vezes elas o fazem entre outras atividades, como brincar, por exemplo. Participam também nos afazeres domésticos, mais isto não implica na prioridade destes sobre a escola. Rizzini também chama a atenção para o programa Bolsa- escola resolver o “problema da exploração infantil” apenas a curto prazo. Neste sentido, a autora chama atenção para o fato se fazer necessária uma avaliação sobre o que ocorre com os adolescentes depois de atingirem a idade limite, 14 anos (2007, p. 393).

É bem verdade que os jovens começam a se encaixar mais efetivamente em torno desta idade no sistema econômico local, mas, segundo Sabaru, “a gente trabalha

nas roças uns dos outros” 31. Talvez este sistema de reciprocidade favoreça para que, nos Tingui- Botó, o trabalho infantil seja mais educativo do que propriamente indispensável para a lavoura. Quando estes índios necessitavam trabalhar nas terras dos fazendeiros, talvez a presença das crianças fosse mais necessária do que é hoje, já que as famílias precisavam realizar estes serviços com o objetivo de terem algum lucro. E, atualmente, enquanto comunidade eles podem dispor de uma mão-de-obra adulta que se responsabiliza pela plantação “da aldeia”, o que faz muita diferença!

Assim, as meninas ajudam suas mães nas atividades que as mulheres desenvolvem no roçado e os meninos ajudam seus pais ou outras pessoas mais velhas. Porém, para as crianças, esta atividade muitas vezes é uma escolha ou, quando não atendem de pronto a um pedido, é preciso apelar: “é assim, não é, bichinha?” ou “olha como esse menino é!”. Deste modo, nesta população indígena as transformações causadas pelas políticas governamentais, que se referem aos “direitos indígenas” e forma como a infância é vivenciada na sociedade abrangente, causaram uma transformação na própria concepção sobre a infância. Entretanto, apesar de partir desta perspectiva, deve-se considerar que os principais fatores destas mudanças são

decorrentes apenas indiretamente dessas políticas. Porém, este fato, não minimiza a importância de tais iniciativas.

Devemos, então, buscar uma análise mais aprofundada das transformações ocorridas internamente neste povo, que estão relacionadas com a possibilidade de, “livres” das perseguições por parte do Estado e da sociedade abrangente que marcaram a trajetória destas populações, redimensionar o papel dos “costumes de índio”. Assim, quando D. Lindaura afirma que “puxe pelo trabalho que o trabalho ensina”, ela está se referindo, principalmente, à forma como ocorre a “transmissão de conhecimentos indígenas” nos Tingüi-Botó. É nisto que iremos nos concentrar no próximo capítulo.

6. “PUXE PELO TRABALHO QUE O TRABALHO ENSINA”

Os “conhecimentos indígenas” são considerados os saberes mais valiosos para os Tingüi-Botó. Apesar do ensino escolar ganhar cada vez mais importância na educação das crianças, a transmissão destes conhecimentos é fonte de sabedoria preciosa. Conhecer a história de seu povo, a “medicina indígena”, os elementos presentes nos rituais, é não apenas colocar-se enquanto índio, ou seja, posicionar-se jurídica e politicamente. Trata-se também de “situar-se no mundo”. De conhecer os elementos da natureza, interpretar os acontecimentos sociais, relacionar-se com o mundo a partir de uma perspectiva diferenciada.

A escola é vista como um saber que possibilita uma melhor comunicação com os “cabeça-secas”, ou seja, os não-índios. Neste sentido ela tem sido valorizada. Há uma conscientização crescente de que possuindo acesso à escolarização é possível se posicionar “melhor” na reivindicação por seus direitos, por exemplo. Entretanto, é preciso considerar que aqueles que se destacam no plano político, ou na “luta”, como os índios costumam dizer, representando para os “de fora” os interesses e necessidades da aldeia, geralmente, são vistos como bons conhecedores das “coisas de índio”.

Segundo Florestan Fernandes (1976, p. 77), nos Tupinambá, “havia épocas e situações mais apropriadas à transmissão das experiências das gerações mais velhas às gerações mais novas; esse era explorado sabiamente, para graduar o amadurecimento contínuo do homem ou da mulher”. Através desta afirmação podemos perceber que este autor considera que o “amadurecimento” é constante, ou seja, não se encerra ao atingir a idade adulta. Ao destacar que há “situações mais apropriadas” para a “transmissão das experiências” das gerações “mais velhas” as “mais novas”, pondera que a transmissão de conhecimentos não se dá apenas por via dos mais velhos.

Utilizando-nos desta compreensão a que chega Fernandes (1976), podemos afirmar que nos Tingüi-Botó, os agentes responsáveis pela transmissão de conhecimentos indígenas são variados, pertencendo à diferentes gerações, porém o saber dos “antigos” é considerado como o primordial. Deste modo, estes são valorizados e respeitados como os principais guardiões dos saberes indígenas. Além das atitudes cotidianas dos mais novos em relação a estes, esta valorização se evidenciou

nos momentos de assistir os registros feitos com os “antigos”. Enquanto com as demais imagens havia sempre motivo para brincadeiras, com estes o silêncio prevalecia e as observações tinham outro tom. Ouviam com atenção e seguiam confirmando: “é verdade!”, “ela falou bem!”, “olha a vovó falando!”, “olha o tio!”.

Desta forma considera-se que o momento histórico atual está sendo “apropriado” para esta “transmissão das experiências” dos mais velhos aos mais novos entre os Tingüi-Botó. Eles vivenciam uma situação territorial diferenciada em que esta possibilita uma maior organização enquanto população indígena e, em certa medida, com acesso à educação e saúde, fazendo com que surjam outras demandas. Neste contexto, o saber dos mais velhos é reverenciado como forma de conhecimento da história deste povo. Além disto, estes são considerados os portadores dos “saberes primeiros”, do tempo em que não se podia realizar rituais sem temer represálias ou, ao menos, intromissões de não-índios pondo em risco o segredo que é condição fundamental do Ouricuri, e as famílias se dispersavam em busca de trabalho.

Adultos, jovens e crianças costumam dizer que “muita coisa se perdeu”. E perdeu-se por que muitos dos “antigos da aldeia” morreram sem transmitir o conhecimento indígena para os mais novos. Um dia quando Sabaru se referiu a isto perguntei por que esta “transmissão” não havia acontecido se, como eu pensava, o que se espera é que haja o ensino deste conhecimento para outros. Entretanto ele explicou que não é uma questão simplesmente de “ensinar”, “não é como na escola”, “tem um

conhecimento que é de cada pessoa e que ninguém pode passar”, faz parte da sabedoria de cada um.

Porém, há ainda outra dimensão a se destacar: Sabaru explicou também sobre o que deve ser transmitido para as gerações mais jovens, não se ensina a “qualquer um”. Ou seja, há que estar preparado para receber este conhecimento. Nesse sentido, pressuponho que “muita coisa se perdeu” porque, num contexto em que “ser índio” era algo a ser velado, o momento não era propício para a transmissão desses saberes. As pessoas, sem estarem organizadas enquanto grupo e sem conseguirem cumprir suas obrigações rituais com afinco, como acontece hoje, não estavam nem preparadas nem em condições de se preparar para receber estes ensinamentos. Portanto, considero que o momento atual vivenciado pelos Tingüi-Botó é tanto propício para a transmissão desses saberes quanto para a prática de tais conhecimentos referentes às “coisas de índio”.

Assim, as crianças e jovens são ao mesmo tempo sujeitos privilegiados enquanto aprendizes, como para a difusão destes saberes entre elas mesmas e, possivelmente, para as futuras gerações, quando estas serão os “antigos da aldeia”.