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5 SER CRIANÇA: OBSERVAÇÕES SOBRE EDUCAÇÃO NOS TINGÜI-

6.1 TRANSMISSÃO DE CONHECIMENTOS

Os Tingüi-Botó possuem um espaço territorial ritual, o Ouricuri, que sendo local e nome do próprio ritual realizado, é, como dizem os indígenas, “outra aldeia”. Em meu Trabalho de Conclusão de Curso da graduação (FERREIRA, 2007), interpretei esta afirmação de José Nunes, indígena Kariri-Xocó 32, de que “o ritual é outra aldeia” como se referindo a uma demarcação de fronteiras, tal como concebe Barth (1969). Possuindo uma dimensão simbólica, enquanto espaço de coesão grupal, e outra política, onde se tomam as decisões mais importantes para o grupo e o acesso a não-índios é proibido. Considero pertinente esta interpretação, porém, acredito que pensarmos na afirmação de José Nunes apenas nestes termos é limitar a análise e desconsiderar o que efetivamente ele quis dizer. Toren afirma que

Esse choque de idéias é o quinhão reservado a todos os antropólogos em campo, e podem se passar muitos e muitos anos antes que sejamos capazes (se é que algum dia o seremos) de verdadeiramente dar crédito àquilo que nossos informantes nos dizem ser fato. Desse modo, podemos acabar caracterizando como crença aquilo que nossos informantes sabem e, ao fazê-lo, os representarmos impropriamente (TOREN, 2006, p. 449).

A partir da consideração de Toren (2006), deve-se rever o que José Nunes nos disse sobre o Ouricuri. Assim como falou o diretor da escola nos Tingüi-Botó, que as crianças gostavam “de andar só no Ouricuri”, como todos na aldeia afirmam que no Ouricuri “é que a gente é verdadeiramente índio”, se deve entender que, efetivamente, trata-se de outra aldeia. Ou seja, é um espaço de socialização entre índios, onde não- indígenas não tem acesso e, tampouco, o Estado pode fiscalizar determinando quais

práticas são de índios ou não, apesar do próprio Ouricuri se constituir numa espécie de “modelo” de indianidade difundido entre alguns grupos indígenas no Nordeste 33.

Com a afirmação de que o Estado não fiscaliza o ritual, faço referência a uma dimensão secreta que o permeia ou, melhor dizendo, o fundamenta. O antropólogo Edwin Reesink 34 chamou atenção para a resistência que os Tingüi-Botó tiveram em “revelar o ritual”, o segredo, mesmo que esse “limite de revelar”, como disse Reesink, dificultasse o processo de reconhecimento oficial 35. Reesink sugere que

De certa maneira, esse é o segredo do sagrado: ter um segredo para segregar e unir, de forma que o conteúdo poderia, em última instância, ser um vazio. Em contrapartida, essa parte do segredo que induz a que seja o sagrado do segredo, a função étnica e sociopolítica do segredo o torna, por sua vez, sagrado (2000, p. 391).

Assim, quando D. Lindaura afirma que “se não fosse o Ouricuri” os Tingüi-Botó continuariam sendo índios, mas não seriam reconhecidos, acredito que esta “antiga” enfatiza que, além do Ouricuri ser considerado um importante meio através do qual se obteve reconhecimento, houve um tempo que sua prática não era possível, mas que nem por isso se deixou de ser índio. Entretanto, o Ouricuri é considerado a ponte que (re) liga os Tingüi-Botó aos espíritos ancestrais, fortalecendo a “força do grupo”, sendo uma espécie de fonte que revigora os indivíduos e o todo.

Quando os Tingüi-Botó se referem a “força”, eles se remetem ao domínio de elementos rituais e sua eficácia em termos de “cura” espiritual e física, bem como de organização social advinda de uma coesão que o ritual deve proporcionar ao grupo, religiosa e politicamente. Assim, os Tingüi-Botó consideram que sem a prática do Ouricuri eles “perdem a força”. Para Reesink o “ritual” é o que demarca o “ser índio” para fora, mas é muito mais uma re-ligação com os ancestrais. Analisando o caso Kiriri, este autor sugere que “a religação se processa basicamente no domínio da religião” (2000, p. 386).

33 Para uma discussão mais aprofundada sobre a difusão de práticas ritualísticas entre os povos indígenas

situados no Nordeste ver Reesink (2000).

34 Professor da Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco. 35 Em comunicação pessoal, 2010.

O “ritual” para os Tingüi-Botó pode ser considerado uma categoria interna que designa as práticas secretas e sagradas desenvolvidas num local específico, com datas também específicas para sua realização. Mas também é o próprio local, independente da finalidade de quem o esteja freqüentando, e é neste sentido que os indígenas se referem quando dizem que vão para “o ritual por que me sinto mais a vontade por lá”, ou para descansar, ou como disse o pajé e sua esposa que “a gente prefere dormir no chão lá Ouricuri”, do que dormir na cama, em casa, mas enfatizando que lá eles dormem separados.

Neste sentido, entre os Tingüi-Botó há dois espaços de socialização: a “aldeia” e o “Ouricuri”. Desta forma, houve sempre uma parte da vida, do cotidiano, das crianças que me permaneceu inacessível, tratando-se, como elas indicaram muitas vezes, da parte “mais importante”. Daquilo que nos foi possível ver ou participar, podemos destacar que, assim como Cohn nos chamou atenção no caso dos Xikrin, “não seria exagero dizer que todos os momentos cotidianos são de aprendizado, mas isso significa também que não há na vida cotidiana espaço e tempo específicos de ensino e aprendizado” (2000, p. 106).

Para desenvolver tal perspectiva, retoma-se a proposição de Fernandes (1976) de que a transmissão de conhecimentos se dá também entre as próprias crianças. Neste sentido, pode haver aquelas que se destacam e assumem determinadas “atitudes”, não se tratando necessariamente de assumir uma “posição”, de “mestre” em relação às outras.