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e antirracistas: possibilidades de intervenção Pedagógica na Educação Física

No documento Da Descolonização ao Pós-colonialismo: (páginas 49-57)

A Lei n. 10.639/2003 assemelha-se a uma “alforria curricular” (Araújo and Car- doso, 2003), resultante da longa história do protagonismo do Movimento Negro. Todavia há de se tomar medidas concretas para que ela não se torne o engodo trazido pela alforria da escravidão. Nesse contexto é urgente o ensino da história e cultura Afro-Brasileira, sem promover a hierarquização dos saberes e enfrentar o preconceito e discriminação racial — imenso desafio para a escola e para os professores de Educação Física, que podem contribuir de forma significativa, ao problematizarem os conteúdos.

Poderíamos elencar diversas passagens na história dos esportes que tratam sobre racismo e preconceito, mas vamos apenas destacar dois fatos. A primeira são os Jogos Olímpicos de Berlim (1936), quando Hitler utilizou de forma escra- chada a força do Estado para divulgar a ideia de superioridade ariana para o mun- do, desbancada quando o afro-americano Jesse Owens venceu quatro provas do atletismo. A segunda passagem é um conteúdo clássico nas aulas de Educação Física — o futebol. Ao fazermos uma retrospectiva histórica, evidenciaremos que o racismo está presente na história do futebol brasileiro, evidenciado inclusive pela sua linguagem racista (Silva, 1998). Ao interpretar notícias veiculadas em jornais após as derrotas da seleção brasileira em Copas do Mundo, perceberemos o pa- pel da mídia na reprodução e construção do racismo no futebol brasileiro, sendo recorrente nas derrotas da seleção o sentido construído socialmente para deter- minadas metáforas que desclassificam o jogador, sobretudo, como ser humano e não apenas como atleta. O sentido desclassificatório dirige-se com mais ênfase a grupos de jogadores, geralmente negros e/ou mestiços.

No decorrer das aulas de Educação Física emergem inúmeras situações ra- ciais problemáticas, como a nomeação de apelidos pejorativos — uma prática que pode prejudicar a autoimagem dos alunos. Não prestar atenção e não interferir de forma concreta sobre as práticas corporais poderá colaborar com este prejuízo. Se não houver intervenção, o professor será cúmplice por omissão, o que significa igualar-se ao comportamento de quem age de forma pejorativa (Rangel, 2006).

Citamos a passagem de uma entrevista (Marques, 2013) realizada com uma pro- fessora de Educação Física, que retrata a indiferença com a questão da discrimina- ção racial. Quando indagada sobre a presença do preconceito nas aulas, declara:

Às vezes a criança se ofende muito sabe, não sei se estou cer- ta a dizer dessa forma, mas é que às vezes um aluno vem e reclama chorando, os pequenos e falam: — Professor, fulano me chamou de preto. Dependendo da situação eu falo: — que cor que você é? Ele se olha e fala: — sou preto. Então respon- do isso não é ofensa nenhuma, porque você se sente ofendi- do se te chamou de preto? (Professora de Educação Física). Fica evidenciado que a escola ainda é uma instituição reprodutora do racismo no Brasil. A indiferença e a inércia de não combatê-lo fomenta a baixa autoestima das crianças negras e influencia, de forma negativa, a formação da identidade.

Para que o professor de Educação Física seja capaz de trabalhar de forma mul- ticultural em suas aulas é necessário que esteja preparado para coibir e discutir a prática de atividades discriminatórias nas mesmas, no momento em que elas ocorrem, através do diálogo franco com seus alunos, jamais tentando escondê-la. Manifestações estas que podem ocorrer de forma, teoricamente, bastante sutil como por meio da colocação de apelidos, da realização de gestos, da troca de

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olhares, das brincadeiras realizadas entre os alunos, pois, os elementos discrimi- natórios existem até nas brincadeiras (Barbosa and Candau, 2003).

No trato à perspectiva multicultural traz desafios muito grandes. O desafio da escola e dos projetos educativos que orientam nossa prática está no fato de que, para compreender a cultura de um grupo ou de um indivíduo que dela faz parte, é necessário olhar para a sociedade onde o grupo ou o indivíduo estão e vivem (Gusmão, 2003). É aqui que as diferenças ganham sentido e definem o papel da alteridade nas relações sociais entre os sujeitos. Nesse sentido, para haver mu- danças na educação e na prática docente, as questões referentes à diversidade de culturas, serão necessárias mudanças de postura e atitudes, reformulações de currículos e engajamento dos professores. Portanto, a formação de professores deve ser multicultural, por meio de uma pedagogia crítica e práticas pedagógicas interculturais.

Há diversas formas de oportunizar o aprendizado da História e Cultura Afro- -Brasileira na Educação Física escolar. Propomos aos professores o desenvolvi- mento de atividades que façam parte da cultura corporal dos seus alunos, asso- ciadas às origens africanas, que poderão operar de maneira interdisciplinar com as outras áreas de conhecimento.

No caso do jogo, do esporte, da ginástica, da dança e das lutas, o multicultura- lismo se faz presente desde a história de sua criação, cada uma das manifestações reflete um momento de determinada cultura. São várias as possibilidades de se trabalhar com esta temática, dentre elas, a de vivenciar as diferentes manifesta- ções da cultura corporal (Rangel et al., 2008). Um exemplo seria a experimentação de danças típicas dos diversos grupos étnicos que compõem o Brasil, demonstran- do, assim, a riqueza e a diversidade de expressões existentes. Outras alternativas possíveis são a prática do Batuque, Capoeira, Danças, Jongo, Puxada de rede, Sam- ba de roda, Frevo, Maculelê, Dança do coco, Tambor de crioula, Bumba meu Boi, Dança afro, Maracatu rural.

O mesmo se aplicaria às ginásticas e às lutas, que ainda conseguem manter suas raízes ligadas às regiões de origem, o que também possibilita o conhecimento por parte dos alunos da diversidade cultural. É necessário discutir com os alunos as raí- zes (condicionantes históricas) dessas lutas a fim de não hierarquizar ou estereoti- par. Trata-se neste caso de buscar ancorar socialmente a questão, ou seja, explicitar as origens, construções de determinados conceitos (Barbosa and Candau, 2003).

Entendemos ser necessária a observação sistemática sobre as atitudes dos alunos (bem como a do próprio professor). Nesse percurso, o professor pode questionar os alunos se existe respeito pelas diferentes culturas; ou, ainda, se os alunos estão assimilando outras culturas e, ao mesmo tempo, valorizando a sua em sala de aula, no sentido de respeito às diferenças. Partimos do princípio que a Educação Física escolar deve, principalmente, auxiliar o professor a melhorar cada vez mais o seu planejamento (Darido, 2005).

Considerações finais

O desafio posto aos professores de Educação Física é desenvolver práticas pedagógicas que contemplem as diferenças culturais de cada povo e etnia, para dar sentido e tornar possível a discussão da diferença étnico-racial no cotidiano escolar. A atuação do professor de Educação Física para a decolonialidade do cur- rículo e desconstrução do racismo e do preconceito na escola poderá contribuir para a educação das relações étnico-raciais no sentido de respeitar e valorizar a formação do povo brasileiro, composta por negros, índios e brancos. Poderemos contribuir com a formação da identidade das crianças negras e fortalecer a ances- tralidade africana, com os traços presentes na sociedade brasileira.

Nessa perspectiva, desenvolver uma prática pedagógica que contemple a di- versidade ético-racial, demonstrando e vivendo no respeito às diferenças, repu- diando o preconceito e a discriminação racial é tarefa de todos para a construção de uma sociedade pluriétnica, democrática e intercultural.

A formação de professores por meio de uma pedagogia crítica pode balizar valores morais e éticos, que possam em sua ação docente dar significado sobre o mundo atual sem a lente do etnocentrismo, pautada na superação das marginali- zações e injustiça sociais. As reflexões advindas da diversidade e da alteridade são necessárias às aulas de Educação Física, a fim de educar sem inferiorizar o outro e combater o preconceito e a discriminação racial.

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