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Sempre que falou de seus namoros ou de seu casamento, Nilce foi econômico. O assunto nunca deslanchava. Quando, aparentemente, uma história mais densa surgiria, algo o freava. De início, estranhei essa diferença em comparação às outras histórias, tão detalhadas e narradas sempre com empolgação. Algo ali não convergia com a rotina de suas atitudes durante minhas visitas.

O que primeiro me ocorreu pensar a respeito de tais conversas ficarem tão magrinhas é que em seis ou sete encontros visando entrevistá-lo jamais foi possível que conversássemos a sós. Ou uma das filhas esteve por perto, ou Dona Maria101; quando não, eram os moços que estavam trabalhando como pedreiros na reforma da cozinha. Dessa maneira, Nilce pode ter estado constrangido para desenvolver temáticas que lhe parecessem espinhosas. Mas não só.

Nilce sempre foi muito discreto, desde a época em que o conheci e durante todo o tempo em que estivemos juntos na limpeza do campus da USP. Era característica sua opinar só em situações em que não se veria comprometido ou em má situação com os outros colegas. Era especialista em evitar conflitos. Dos companheiros de varrição, talvez fosse o mais bem quisto pelos outros do grupo. De uma maneira ou de outra, o fato é que moderação e comedimento sempre foram duas de suas características mais marcantes.

Ainda assim, e tomando por base o entusiasmo com que o depoente abraçava suas narrativas, não considero suficientes tais hipóteses. Recorro mais uma vez à professora Ecléa:

Uma forte impressão que esse conjunto de lembranças nos deixa é a divisão do tempo que nelas se opera. A infância é larga, quase sem margens, como um chão que cede a nossos pés e nos dá a sensação de que nossos pés afundam. Difícil transpor a infância e chegar à juventude. Aquela riquíssima gama de nuanças afetivas de pessoas, de vozes, de lugares... Pode às vezes a pessoa fixar-se no ponto de vista de um certo ano de sua vida.

O território da juventude já é transposto com o passo mais desembaraçado. A idade madura com passo rápido. A partir da idade madura, a pobreza dos acontecimentos, a monótona sucessão das horas, a estagnação da narrativa no sempre igual pode fazer-nos pensar num remanso da correnteza. Mas, não: é o tempo que se precipita, que gira sobre si mesmo em círculos iguais e cada vez mais rápidos sobre o sorvedouro.

Chama-nos a atenção com igual força a sucessão de etapas na memória que é toda dividida por marcos, pontos onde a significação da vida se concentra: mudança de casa ou de lugar, morte de um parente, formatura, casamento, empregos, festas102.

Não obstante, embora cauteloso, Nilce narrou duas situações reveladoras. A primeira delas, a referência a uma ex-namorada. A segunda, acerca de seu casamento.

Essa segunda eu sentia um pouco de paixão, sim, por ela. Essa que é falecida. Chamava Maria. Maria Aparecida. Não deu certo porque eu gostava dela, mas eu percebia que ela não gostava muito de mim, não. Fui ficando assim... ... ‘Tudo bem, deixa para lá’. Inclusive, quando eu ia numa festinha onde ela estava, ela se jogava mais no braço de outro. Quando tinha uma festa assim, parecia que ela tinha outro parceiro. Como eu não gostava de confusão, preferi deixar pra lá. Saí fora. E acabou que ela casou com um bandido. Morava lá em Itaquera. Morreu, tudo... Deixou filho... ... ...

Enquanto falava dessa ex-namorada, foi possível perceber sua mágoa: Ela se

jogava mais no braço de outro. Nada que não pudesse, bem a seu modo, ‘resolver’. Preferi deixar pra lá. Não obstante, lembrando e comentando dos bailes, das festas,

Nilce parecia bem ressentido. Fui ficando assim... ... Tudo bem. Deixa pra lá.

Em seguida, a conversa chega ao dia do casamento. Nilce fica um pouco mais solto, mas nada que se comparasse às narrativas de suas histórias de criança.

Foi ótimo. Foram duas festas: uma lá, outra aqui. Uma de forró, outra de música jovem. Veio muita gente. Nossa! Encheu lá e encheu aqui também. Eu ia um pouco lá, um pouco cá. E eu alegre pra caramba. [Ri]. Casei em 1971, com vinte e nove anos.

Quando contou que se casou em 1971, com quase trinta anos de idade, cometi um deslize: Nossa! Pra’quela época, você se casou tarde, não é? A sorte foi que contei com um amigo compreensivo durante todos os dias de entrevista.

É que eu era muito apegado com a minha mãe. Eu tinha muita preocupação com ela... Por causa dos momentos que ela passou. Então, eu nem tinha vontade de casar. Mas de repente deu o estalo.

O compromisso de Nilce com Dona Antonieta era coisa bem séria. Aquele menino de cinco anos – abandonado pelo pai junto com todos os seus irmãos – parece ter assumido consigo mesmo uma promessa de fidelidade eterna à sua mãe.

Se pudermos recordar, era ele quem não via a hora de chegar dia de domingo

pra ter futebol. Minha mãe fazia os doces que eu ia vender lá no campinho pra ajudar ela. Mais adiante, testemunhando todo o seu sacrifício – trabalhava em casa o dia inteiro

e costurava para clientes à noite – o adolescente não recusou se mudar da Fazenda do Recanto para ser empregado doméstico dos patrões, agora na casa deles na cidade. Desejava sentir sua mãe não tão sobrecarregada de serviço.

Poucos anos mais tarde, nova mudança, e agora para terra grande e desconhecida. O motivo? Eu achava que ia chegar, começar logo a trabalhar pra

ajudar minha mãe lá. O que eu estava ganhando lá não estava dando pra eu ajudar minha mãe. Então, eu vim pra ver se tinha alguma melhora.

E não parou por aí. Estabelecido em São Paulo, tratou de logo mandar buscar Dona Antonieta.

Depois de três anos que eu estava aqui, eu trouxe ela pra cá. A gente foi morar aí na favelinha no Jardim Tropical. Foi a maior alegria! [...] Eles arrumaram um caminhão pra ir buscar minhas coisas lá em casa, lá em Minas e não cobrou nada? [...] Minha mãe veio de caminhão, chegou aí naquele barraquinho de madeira tão assim... Pacato. Sair de uma casa de sete cômodos pra morar em dois cômodos, de terra ainda... A situação lá pra ela já estava difícil, já. Situação financeira.

Tão preocupado com sua mãe, seria mesmo esperado que sua vida amorosa ficasse em segundo plano. Desde criança, seus projetos sempre estiveram ligados ao desejo de proporcionar à Dona Antonieta uma vida digna. Trazê-la para São Paulo foi um passo importante por um lado, porque aqui ela teve assistência médica mais freqüente e de melhor qualidade. Não obstante, como o próprio Nilce ressalta, materialmente falando as coisas continuaram bem difíceis: Chegou naquele

barraquinho de madeira tão assim... Pacato. Sair de uma casa de sete cômodos pra morar em dois cômodos, de terra ainda...

Curioso e tocante. No que consistiu a retribuição do filho?! Não em bens materiais tanto quanto em lealdade e amor pela família. A retribuição consistiu na nova reunião da família: reunir outra vez a família que se havia temporariamente dispersado com a migração atrás de melhoras econômicas. Ela dizia [a mãe] que estava tudo bem,

que ficava contente de eu estar feliz, e eu dizia que ia trazer ela pra cá. Depois de três anos que eu estava aqui, eu trouxe ela pra cá. A gente foi morar aí na favelinha no Jardim Tropical. Foi a maior alegria!

Como é comum para as famílias pobres, Nilce e Elza se casaram, mas não tiveram lua de mel. Como é mais comum ainda, não foram morar sozinhos: abrigaram irmãos, sobrinhos, cunhados... E a própria Dona Antonieta. Tudo o que minha tia fez

pra mim, depois eu fui retribuindo pros outros também. Todos os irmãos de Nilce foram

morar em São Paulo. Todos passaram um tempo em sua casa. Todos naquele barraquinho pacato de dois cômodos.

O casamento frutificou três filhas. São elas: Angélica, Renata e Ana. Embora estivesse tímido, falar sobre elas fez embargar sua voz. Com os olhos avermelhados, Nilce comentou de como o nascimento delas modificou sua vida.

Olha, eu casei num ano, no outro já nasceu a primeira. [Angélica] [...] Mais carinho. Mais apegado ainda. Com a esposa e a alegria da criança. Ela nasceu quase que sem peso: teve que ir pra estufa. Nasceu no tempo certo, com saúde, tudo, mas... Nossa! Precisou ficar uns tempos na estufa.

Angélica é atualmente sua única filha casada e a única também que não mora mais no mesmo terreno com os pais. As duas histórias que contou sobre ela são bem

dramáticas. Entretanto, a primeira – sobre a necessidade da bebê permanecer algum tempo na incubadora – não lhe causou tanta angústia quanto a segunda.

A Angélica, óia, eu não cheguei ver, mas... ... A Angélica ainda era solteira, e vieram falar pra mim – essas ruas aqui eram todas de terra, mas já subia ônibus aqui – ela tentou suicídio. Falaram pra mim, na época. Ela tentou se jogar na frente do ônibus e o ônibus segurou. Eu nunca tirei esse parecer com ela. Mesmo depois do acontecimento... Eu fiquei chocado. Poxa! O que eu fiz pra poder passar uma coisa dessa aí?! Isso aí eu fiquei chocado. A gente não conversou sobre isso. Nem na época, nem depois. Mas eu fiquei com isso na memória. Ela era adolescente ainda, chegando nos seus dezoito, vinte anos. Mas eu fiquei com isso gravado em todos os momentos. A gente não esquece: e se tivesse acontecido?! E naquele tempo, essa pista aqui subia e descia. Não tinha asfalto, não tinha nada. Era um perigo do caramba! A pessoa não falou se o ônibus estava descendo ou se estava subindo. E eu não nem quis ir a fundo assim. Quem contou foi um vizinho aí, pessoa de confiança. E não tinha motivo. Sei lá, foi alguma coisa que passou na cabeça dela naquele momento. Como muitos fazem, volta e meia aí a gente fica sabendo: um se jogou no rio, o outro se enforcou... É um negócio meio esquisito. [...] Fica marcado isso pra gente. Eu não esqueço também não. Nunca citei nada, mas tenho tudo guardado na minha memória.

Renata, a única que ainda não teve filhos, é descrita por Nilce como a mais levada. Quando fala dela, vê graça nas suas artes, mas não é difícil perceber que tiveram bastante trabalho com a menina.

A Renata até hoje ainda é a mais rígida. Aqui na frente da minha casa onde tem aquela lajinha ali, tinha uma árvore, perto do portão lá em cima. O que ela fazia? Ela fazia tanta arte... Um dia, ela sumiu de casa. Sumiu. Saí procurando por aí, a Elza saiu procurando... Onde será que ela está? Onde será que ela está? Onde será que ela está? Estava em cima da árvore. E todo mundo procurando na rua. A árvore era bem fechada assim. Ela subiu e ficou lá. [Ri]. E a gente procurando.

Sua caçula, Ana, é descrita como a mais manhosa das três, a que exigiu mais paciência até que se sentisse uma criança segura.

A Ana era muito chorona. Pra ir pra escola... Ela era grandona já, a mãe precisava pegar ela e pôr no braço. E pra comer tinha que ir assim pela rua, dando comida na boca. A Ana é de primeiro de janeiro de 1980.

De maneira geral, ouvir Nilce falar de suas famílias leva à constatação de que sua vida sempre esteve direcionada exclusivamente à sobrevivência e conforto dos seus. Não ouvi dele nenhuma mudança de emprego ou projeto profissional que não estivessem diretamente orientados para que sua mãe, suas filhas, a família de maneira geral, pudesse gozar de melhores condições de vida, melhores condições do que ele próprio pudera ter.

Naquele tempo, eu estava com as duas meninas na escola: a Renata e a Angélica. E o salário não estava dando mais pra mim... É... Sustentar a casa e dar o estudo pra elas: pagar a escola pra elas. Tudo pago, né?! Eu saí, peguei o... ... [...] Aí, eu chamei eles num acordo. [...] Peguei aquele dinheirinho, levantei fundo de garantia e comecei a trabalhar por conta.

A gana e a tenacidade de Nilce são marcantes. Salta aos olhos em todos os trechos da entrevista. Aquilo que naturalmente se insinuou durante todos os anos em que estivemos juntos na varrição volta a se destacar em suas narrativas: seu brio e sua determinação.

A luta de um homem por sua sobrevivência e de sua família é fato comovente. Não faltam relatos ao longo dos tempos em que personagens anônimos são lembrados pelas batalhas diárias contra a fome e a miséria. De onde vem a força que impede seu esmorecer? Às vezes, esquecemos seus nomes, mas jamais deixamos de recordar suas histórias.

Dona Jovina103, depoente no belíssimo trabalho de Ecléa Bosi, frisa um nome que lhe marcou durante os anos de escola: ‘o grande geógrafo Reclus’. A professora, intrigada com a referência, procurou saber sobre o tal estudioso com os especialistas da área, na própria USP. Não logrou êxito. A memória daquela senhora humilde tinha fundado uma razão bem específica para o que mencionava. Reclus não havia

inaugurado nenhuma nova concepção teórica. O geógrafo também não foi conhecido em sua época pela extensa produção científica. Não obstante, era impossível se esquecer de um sujeito que comia somente pão e água, porque era o que a humanidade

pobre podia comer. O engajamento de Reclus teve motivações elevadas. Nilce também

tinha as suas.

O leitor me perdoe a comparação. Não faltarão observações quanto ao despropósito da analogia. Também não creio que poderia me defender satisfatoriamente dos argumentos contra o que me ocorre afirmar. É que não pretendo defender o fato de que meu amigo age como ninguém talvez o fizesse. Entre os próprios trabalhadores da USP – amigos meus, ou não – poderia elencar um bom número deles. O altruísmo pode até mesmo ser coisa corriqueira nas periferias pobres. Sabemos disso. Não obstante, recusar ver Nilce como um homem abnegado é forjar a importância de suas ações bem como de todos os seus pares, também capazes de grandes renúncias. É nossa cegueira com respeito à guerra travada em nome da vida – guerra que sacrifica milhões de trabalhares pobres em nosso país – que amortece a violência da dor que deveríamos sentir quando qualquer um de nós passa fome ou frio. Não foi por outra razão que Nilce manteve-se firme mesmo enfrentando tanto revés.

O menino machadense que cresceu sem pai e viveu em função de aplacar o sofrimento da mãe não admitia ver sua história repetida. Bastava de angústia em sua família. Antonieta, Elza, Angélica, Renata e Ana. Nilce não poderia fraquejar.

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