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A ponte ainda era de madeira. Isso foi em 1960. Vim pra cá dia quinze de outubro de sessenta.

Estas entrevistas que o leitor tem em mãos são o resultado do depoimento de trabalhadores que migraram para a cidade de São Paulo. Nenhum deles nasceu na capital paulista. Nilce veio do interior de Minas Gerais. Moisés – como veremos – caminhou mais: veio de Pernambuco. Ponto pacífico nas narrativas: não se sentiram acolhidos na capital financeira do país. O que se passa? São Paulo não é terra hospitaleira? Por que migraram?65 Por que permanecem? Retornariam à sua terra natal, se assim pudessem?

Eu vim sem medo. Vim numa aventura. Não foi difícil, não. Eu falei pros meus patrões que eu vinha morar aqui. Eles: ‘Pra que?!’. Eu disse: ‘A vida lá em São Paulo, eu quero ver como é que é’. Eu achava que ia chegar, começar logo a trabalhar pra ajudar minha mãe lá. O que eu tava ganhando lá não tava dando pra eu ajudar minha mãe. Então, eu vim pra ver se tinha alguma melhora. Demorou um pouquinho... Mas chegou! Depois de seis meses que eu estava aqui, eu fui lá passear, levei corte de roupa pra minha mãe, pros meus irmãos fazerem camisa, fazer vestido pra minha mãe.

Chamou-me a atenção Nilce não informar a verdade dos fatos aos antigos patrões: A vida lá em São Paulo, eu quero ver como é que é. Se havia tanta clareza de objetivo – O que eu tava ganhando lá não tava dando pra eu ajudar minha mãe. Então,

eu vim pra ver se tinha alguma melhora – o que teria feito o rapaz desconversar? Por

65 “Os deslocamentos constantes a que nos obriga a vida moderna não nos permitem o enraizamento num

dado espaço, numa comunidade. Trata-se de um direito humano fundamental para Simone Weil: ‘Um ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro’. O desenraizamento é uma condição desagregadora da memória: sua causa é o predomínio das relações de dinheiro sobre outros vínculos sociais. Ter um passado, eis outro direito da pessoa que deriva de seu enraizamento. Entre as famílias mais pobres a mobilidade extrema impede a sedimentação do passado, perde-se a crônica da família e do indivíduo em seu percurso errante. Eis um dos mais cruéis exercícios da opressão econômica sobre o sujeito: a espoliação das lembranças”. BOSI, E. – Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo, Cia. das Letras, 1994.

que não teria dito a verdade? Não confiava na compreensão daqueles? Não os tinha como confidentes?

Nilce não parece considerar o caráter arbitrário, enigmático, discricionário, da propriedade privada. Nilce concentra-se em razões e explicações econômicas para justificar a mudança de cidade (mas faz um juízo ingênuo sobre estas circunstâncias)66. Ao longo de sua entrevista, notamos sem dificuldade, são os mesmos motivos que não o animam a fazer o caminho de volta. O regresso à Machado significava regredir também financeiramente. Morar em São Paulo – e visitar os parentes em Minas Gerais com as malas cheias de presentes – guarda similaridade com o trajeto de quem na aridez da seca busca água para os próximos, a léguas de distância. Ninguém projeta morar ao lado da bica porque deseja se enraizar ali.

Juntei um dinheirinho e uns cortes de roupa pra ela... Nossa! Como ficaram! Fiquei mais seis meses e voltei com mais coisa ainda. Já tinha um empregozinho melhor, no restaurante aqui na Avenida Jaguaré. Ela dizia que estava tudo bem, que ficava contente de eu estar feliz. Eu dizia que ia trazer ela pra cá. Depois de três anos que eu estava aqui, eu trouxe ela pra cá.

É possível imaginar a agudeza das privações pelas quais passava a família de Nilce, mesmo todos os seus irmãos trabalhando de sol a sol. Um empregozinho em um

restaurante na Avenida Jaguaré mantinha o recém-chegado que – sem esquecer dos

que ficaram – os visitava como abastado: Juntei um dinheirinho e uns cortes de roupa

pra ela... Nossa! Como ficaram!

Em pouco tempo, o rapaz migrante já conseguia dar uma ajudinha para a mãe e os irmãos. Mas não foi fácil a chegada à cidade grande. Tudo era diferente e assustador: o tamanho dos prédios, a quantidade de gente, o vai-e-vem perigoso dos inúmeros veículos. Não obstante, de tudo que era estranho, nada poderia se comparar a um notável distanciamento na maneira como as pessoas se olhavam e se tratavam. Nilce quase ficou paranóico.

Naquele tempo ainda não tinha a rodoviária, não. Estava em projeto a rodoviária perto da Estação da Luz. A parada de ônibus era na porta

desses bar grande assim. Desci na Avenida Ipiranga. E agora?! Eu tinha marcado com uma pessoa que eu ia chegar tal hora aí. Eu nunca tinha vindo pra São Paulo. Falei: ‘E agora?!’. Desci lá, olhei assim... Pra ver se meu parente estava lá. Ele morava aqui no Rio Pequeno. Eu liguei pra marcar com eles, mas nesse dia a firma deles não estava funcionando. Eles não sabiam o dia que eu ia vir. Cheguei lá e pensei que tinha alguém me esperando. Pensei: ‘E agora?!’. Naquele tempo era aqueles guarda civil de farda azul, aqueles bonésão tudo azul marinho também. Cheguei no guarda assim, falei: ‘Seu guarda, onde é que eu posso tomar o ônibus pra ir pro Rio Pequeno?’. Ele falou: ‘Rio Pequeno?!?! Não conheço, não!’. [Abaixa a cabeça e ri. Dou risada junto]. O guarda falou: ‘Olha, tem um lugar aí que tem um ônibus que vai pra Osasco. Você tem que ir lá no Anhangabaú e lá você se informa. Talvez eles possam te informar’. Ele achava que era perto de Osasco, mas não tinha certeza. Olha que situação! Eu falei assim: ‘Onde é que fica o Anhangabaú?’. Ele falou: ‘Você está vendo aquele prédio alto ali?’. Nossa! Só tinha prédio alto... ‘Então. Você segue até ali que você acha o Anhangabaú’. [...] Eu fui a pé. Um movimento daquele! E na hora de eu atravessar a rua?! Mesmo no farol... Eu fiquei esperando ter um monte de gente: ‘A hora que eles forem atravessar, eu vou aproveitar também!’. Lá em Machado nem farol não tinha. Quando estava aquele bolo de gente, eu me enfiava no meio e fingia que não estava acontecendo nada. Mas nem sabia onde eu estava. A hora em que eu cheguei no Anhangabaú – porque naquele tempo não tinha farol no Anhangabaú, não – tinha uma faixas, e os policiais ficavam com umas pranchetas assim ó [mostra o movimento com os braços e as mãos para cima]. ‘Siga!’, era pra gente atravessar. Quando precisava, ele virava pro outro lado, pra mudar o trânsito. Aí, virava e o trânsito continuava. Fazia a mesma coisa: entrava no meio do povão pra eu poder atravessar. Cheguei no Anhangabaú e não encontrei o ônibus que ia pra Osasco. Mas eu não sabia ler também! Aí, procurei informação e me disseram: ‘Aquele ônibus ali vai pra Osasco’. Entrei na fila. Era aqueles “sanfonão” que têm hoje, mas mais simples. Não era tão

sofisticado igual aos que tem hoje. Aí, tinha duas empresas: ‘Ó, tem aqueles ali ó ...’, que era uns ônibus Volvo que ia para Osasco.

A chegada à nova cidade teve dia, mês e ano registrados na memória! A chegada: ansiosa, desorientada, desolada, sem recepção garantida. Que queixas e esperanças este dia não terá condensado? O que Nilce trata neste trecho da entrevista concentra muita coisa já vivida ali e vivida – também – depois na cidade grande.

É muito interessante ouvir o que o mineiro conta a respeito da chegada à cidade de São Paulo. Há um encontro. Mas há, sobretudo, muito desencontro entre maneiras roceiras e maneiras urbanas, referências rurais e referências urbanas, modos rurais e modos urbanos de contato social.

Não foi possível, mesmo após muitas audições do depoimento, chegar a uma conclusão a respeito do seguinte fato: deveria haver alguém esperando o primo mineiro no terminal rodoviário? Sabiam que ele viria naquela data? Se sabiam, por que não foram recepcioná-lo? Esperavam que o matuto pudesse se virar sozinho? A memória parece não ajudar na precisão das informações: Eu tinha marcado com uma pessoa que

eu ia chegar tal hora aí. [...] Desci lá, olhei assim... Pra ver se meu parente estava lá.

[...] Eu liguei pra marcar com eles, mas nesse dia a firma deles não estava

funcionando. Eles não sabiam o dia que eu ia vir. Cheguei lá e pensei que tinha alguém me esperando.

Depois de atravessar um verdadeiro inferno, o caipira desconfiado encontrou um transporte que – talvez! – passasse perto de seu destino. O itinerário do ônibus era longo demais, praticamente uma nova viagem. Torçamos por Nilce.

Disse para o motorista: ‘Moço, você conhece um lugar que chama Rio Pequeno?’. Ele respondeu que sabia: ‘Ah, você quer ir pro Rio Pequeno’. Olha, meu, eu fiquei num ódio. E tá viajando, tá viajando, tá viajando, e nada. E eu, nem sentar, não sentei. Fiquei de pé do lado do motorista. De vez em quando eu perguntava pra ele: ‘Tá longe ainda o Rio Pequeno?’. ‘Tá longe, sim. A hora que chegar, eu te falo’. Eu cheguei a perguntar umas três vezes pra ele. Acho que ele se invocou... ...

Há quatro décadas morando na mesma região, ele lembra de como era tudo. Ficava claro, conforme se afastava do centro da cidade, as diferenças gritantes entre a urbanização nos bairros considerados nobres e o lugar para onde ele deveria ir:

A Vila Indiana tinha uma pista só, onde hoje é a Corifeu67. Que termina a Vital Brasil, onde tem uma seringueira graaaande, tinha uma pracinha ali. Saiu da Vital Brasil já era Vila Indiana, onde começa a Corifeu. A Vital Brasil já tinha asfalto, mas depois era tudo terra ainda. Aqui era tudo de terra, o quartel, a Corifeu.

Mas talvez não demorasse tanto assim para encontrar seus parentes. Tinha mais de hora que partira do Anhangabaú.

Eu perguntei pra ele [motorista] umas três vezes. Acho que ele se encheu, se encheu de tanto eu perguntar. Sabe onde que ele foi levar eu?! Chegou lá em Osasco, no ponto final. ‘E o Rio Pequeno, onde é que fica?’. ‘Ah, ficou lá pra trás. Esqueci de te avisar. Esqueci de te avisar, viu?’. Ah, foi de propósito!

Pode ter sido distração mesmo do motorista. O que poderia ser pior? Ao menos, estava perto do Rio Pequeno; tinha até passado pelo bairro. E seria muito azar chegar a São Paulo sem ninguém para receber, o guarda não saber onde fica o tal bairro, o motorista do ônibus esquecer de avisar o ponto para descer, e ainda acontecer algo mais. Entremos novamente no ‘sanfonão’.

Cheguei lá no ponto final. Você vê, naquele tempo a gente entrava no ônibus pela porta traseira e descia pela porta da frente. Você lembra? Tinha... Eu peguei... ... Entrei pela porta traseira e coloquei a mala e o saco de roupa perto do cofre do ônibus. Não sentei, não. ‘Agora você pode voltar nesse mesmo ônibus aqui. Só que você tem que entrar de novo pela porta traseira...’. Rapaz, eu fiquei com medo de eles me roubarem a mala de roupa e as coisas. Eu desci, peguei a mala, cheguei dali de onde eu

67 Avenida Corifeu de Azevedo Marques, que corta todo o bairro do Butantã (zona oeste de São Paulo)

estava, dei a volta e entrei pela porta traseira no mesmo ônibus. Tudo com as coisas na mão. Não podia ter deixado as coisas ali mesmo? [Ri]. Naquele tempo, eles davam um bilhetinho. Não tinha roleta. Tive que pagar outra vez. Tinha o cobrador. A gente ficava com o bilhetinho. Viajava um trecho e vinha o fiscal. Ele picotava o bilhetinho. Tinha que estar com o bilhetinho pra você provar que tinha pago. Às vezes, daqui pra cidade, você chegava a passar por uns três fiscais pra eles conferir. Naquele tempo era rígido! Tudo bem. Estou vindo, estou vindo: ‘A hora em que chegar o Rio Pequeno, o senhor me avisa?’. ‘Ah, tá bom’. O mesmo motorista. Estou viajando – não sabia nem por onde tinha passado – chegou... Não tem um mercadinho aí em cima, onde tem a Milani68? Terminando aquela subida, eu falei: ‘Ô moço, e o Rio Pequeno?’. ‘Uh, esqueci de te avisar! Ficou pra trás’.

Não é possível uma coisa dessas! De novo?! É muito revés para apenas três horas. Mas Nilce – tenaz como sempre – não voltaria atrás. A vida na Fazenda do Recanto, a vida em Machado, viver como roceiro ou como empregado doméstico, não compensava. Vamos acompanhá-lo, pelo menos até a casa dos parentes. Está perto?

Eu desci lá no mercadinho. Ele [motorista] mandou eu descer lá. Nem imaginava onde ficava o Rio Pequeno. Desci lá, cheguei até à mercearia. Perguntei se eles conheciam o Rio Pequeno, que eu estava procurando. Tinha um parente meu que morava no Rio Pequeno, mas eu não sabia onde. Eles perguntaram: ‘Como é que ele chama?’. Deu dei o nome da pessoa. ‘Ah, eu conheço. Ó, essa perua tá indo pra lá’.

Puxa! Finalmente, um bom sinal. Num lugar como São Paulo, encontrar alguém, uma pessoa que conhece quem você está procurando. No Anhangabaú e adjacências isso não seria possível. No Rio Pequeno, sim. Vamos subir na perua, então.

Era uma perua de padeiro tipo furgão. Chevrolet furgão antigo. Eu tomei aquela perua e desci. Um prapaparaprapá danado! Batendo lata do caramba, e o furgão fechado. Não tinha vidro. Eu falei: ‘Ih, esse pessoal vai me roubar,

ó’. [Ri bastante]. E tô viajando, tô viajando. A entrada do Rio Pequeno era uma estrada de terra estreitinha ali onde fica um posto de gasolina. Um matagal dos dois lados, assim ó [abre e levanta os braços]. ‘Agora eu estou pego!’. [Rimos os dois]. Eu só queria saber: ‘Onde é que esse pessoal vai me levar?’.

Já imaginou? Você chega a uma cidade cujo menor bairro é maior que o município inteiro de onde você vem. Seu parente, ao que tudo indica, esquece de você. Rio Pequeno – a única referência que você tem – é uma vaga informação para a enorme maioria das pessoas. Finalmente, você consegue um transporte. O ônibus não te levaria ao seu destino final, mas, ao menos, antes de sair de São Paulo, passa pelo bairro que você procura. Basta que o motorista – aparentemente solidário – possa informar o local exato de descer. O condutor – que previamente garantiu a ajuda – te deixa passar do ponto para descer. Duas vezes seguidas! Você pagou duas passagens pelo mesmo trajeto e não chegou aonde deveria. Quem esqueceu de você te indica um lugar aonde alguém talvez possa prestar algum tipo de socorro. Estranhamente, em uma cidade onde pouquíssima gente sequer sabe para que lado fica o bairro que você procura, um sujeito diz conhecer seu primo. Foram mais de duas horas de ansiedade desde a chegada a São Paulo até ali. O tal sujeito – um mero desconhecido – diz saber aonde trabalha seu parente e que vai te levar até ele, de graça. No veículo, sobem você e um pessoal meio mal encarado. A perua é fechada, sem vidros. Além de velha e mal conservada, chacoalha o tempo inteiro. Você foi colocado lá atrás, no bagageiro, justamente o lugar que, de fora, ninguém pode ver. Quanto mais o tempo passa, mais desconfiado você fica. De repente, quando pode se supor que o tal bairro está próximo, tomam uma rua à esquerda e se dirigem a um local ermo. Você só enxerga – pelo pára-brisa – matagal dos dois lados. Seis da tarde. Anoitecendo. Gente estranha. Lugar desconhecido. Meu Deus!

Pegou a Avenida do Rio Pequeno e veio. Parou perto da ponte da Vila Dalva, onde tem um bar-sorveteria. Aonde é o Banco Bradesco hoje, ali era um bar. ‘Aqui, tem essa pessoa que você falou, tem um primo seu que trabalha aí’. Eu desci lá. Agradeci ele, tudo... Aí, eu conheci ele... Meu primo. Quando cheguei aqui em São Paulo, lá na rodoviária, ali no Ipiranga, eram três horas da tarde. Fui chegar aqui no Rio Pequeno

eram seis horas. Estava escurecendo. Era a primeira vez que eu via ele. Eu conhecia o tio dele que era casado com a irmã da minha mãe. Eu ia pra casa dele. Esse era sobrinho dele. Ele ainda mora lá perto da ponte da Vila Dalva, nessa casa em que eu morei a primeira vez que eu vim pra cá.

Ufa!

Mantendo a inspiração otimista de sempre, o drama do primeiro dia em São Paulo não se constituiu para Nilce como baliza para outros e novos contatos, outras e novas experiências. O mineiro do interior, recém-chegado à capital paulista, manteve-se aberto. Não que ignorasse as diferenças acerca das pessoas e do lugar. Fosse algo corriqueiro ou não, nada lhe passou despercebido. Reparou no trânsito dos carros, mas também no passo apressado dos pedestres. Reparou na altura e na imponência dos prédios do centro da cidade, mas não lhe escapou o abandono e o descuido da periferia para onde rumou. Reparou nos ônibus novos e incomuns para ele, mas não deixou de considerar o descaso e o desinteresse de quem poderia guiá-lo ao seu destino.

A cidade grande, agremiação anônima e indiferente, levanta desolação – isolamento, desamparo – e desconfiança – medo de assalto. Isto se estende até o Rio Pequeno, bairro proletário, mas ali também vai arrefecendo: a exterioridade dos ambientes, a estranheza, vão diminuindo; surgem pessoas que se conhecem e que mantêm uma relação mais direta umas com as outras e com o ambiente; a orientação citadina, geral, abstrata, impessoal, altera-se em orientação mediada por pessoas concretas.

O tratamento pra mim sempre foi bom, a maneira de tratar. Mas até a gente pegar o ritmo do lugar demora. A gente é que tem que plantar pra colher. Procurar fazer amizade, tudo. Porque se você chegar num canto e ficar fechado, não quer amizade com ninguém, como é que vai saber se é bom ou se é ruim? [...] As pessoas... ... No interior, o pessoal é mais simples. É mais unido nos encontros. Cidade pequena, você sabe. Agora, aqui não. Lá, geralmente, a gente conhecia todo mundo na Igreja. Aqui, não. É diferente. [...] O pessoal em São Paulo tem outro ritmo, não nem dúvida. [...] É muito agitado. Até você pegar o pico daqui demorava um pouco.

Aqui é muita correria, como sempre foi. Não vai deixar de ser cada vez mais.

Quem corre perde tempo. Quem corre muito, quanto mais corre – pode reparar – menos tempo tem. A lógica do tempo acelerado desmancha o rosto das pessoas, embola o que ouvimos das vozes, confunde nossa percepção do outro.

Nos semáforos, a pressa sempre vence uma gentileza ao vendedor de balas. É a pressa também que – racionalizamos – não nos permitiria ouvir mais longa e atentamente o que nos diz um mendigo sentado no meio-fio, ou nos impediria de acompanhar as histórias que os velhos nos contam. Quase ninguém quer saber dos velhos. Quase ninguém quer saber de quem demanda demora. As pessoas... ... No

interior, o pessoal é mais simples. É mais unido nos encontros. Cidade pequena, você sabe. Agora, aqui não. Lá, geralmente, a gente conhecia todo mundo na Igreja. Aqui, não. É diferente.

Maldita pressa, que tanto nos atrapalha. Maldita pressa, que, solitária, assume responsabilidade por tanta negligência nossa.

Atenção é a palavra-chave. Foi o que Nilce não teve do primo quando desembarcou em São Paulo. Era o que o guarda metropolitano considerou não poder dispensar àquele recém-chegado. Foi o que o motorista do ônibus não levou em conta. No fim de tudo, também, acabou sendo o que Nilce teve do carona que o conduziu à Vila Dalva. E que boas coisas a atenção leva e traz!

Professora Ecléa Bosi, agora citando Simone Weil:

Para Simone Weil a atenção é uma forma alta de generosidade. Todas as outras vantagens da instrução são secundárias comparadas ao exercício da atenção: é um bem em si independente de recompensa ou aquisição de informações. Os estudos são nada mais que uma ginástica da atenção, seja qual for seu conteúdo. Ela nos convida a privar tudo o que chamamos de eu da luz da atenção e transferí-la para o que está fora de nós69.

A sociedade de massa tem o poder nefasto de rebaixar a capacidade de atenção de cada ser humano. A vida na metrópole corrompe nossa veia contemplativa transformando praticamente cada momento de vigília em expedições de consumo. Do

instante em que acordamos até a hora de dormir, sofremos o incansável bombardeio das mais diversas formas de publicidade. Os objetos biográficos perdem espaço aos que são

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