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- Oi, Nilce. Tudo bem?

- Tudo ótimo! E melhor ainda agora, que você me ligou. Como é que tá o pessoal aí? Sua esposa, as crianças...

- Todo mundo com saúde.

- Graças a Deus! Estamos esperando aqui sua visita novamente, viu? A reforma continua. Agora a gente colocou forro na cozinha.

- Que beleza! Não tá cansado de tanta bagunça? - Que nada! Começou, aí eu não paro mais! O pedreiro que está me ajudando é ótimo, rapaz. Olha, não tenho do que reclamar. Deus é sempre muito bom comigo. Vou continuar a reforma até lá embaixo, até na casa das meninas.

- E a Elza?

- Ah, está muito bem. Tomou o café dela e está descansando lá no quarto. Aliás, está todo mundo bem! Todo mundo com saúde. Só alegria!

- Eu tava preocupado, porque liguei aí três dias e ninguém atendia...

- Ah, eu tô sempre por aqui. Só quando precisa fazer alguma coisinha na rua que eu saio, né?! Do contrário, eu tô sempre na área. [Risos].

Nilce é um otimista. Em geral, suas narrativas não deixam brecha para interpretações desfavoráveis. O otimista olha para frente com boa esperança; é o futuro que ele mira. O ex-lavrador vai além. Também o passado e o presente – suas lembranças e o dia-a-dia – são exaltados.

Reparei que a entrevista de Nilce tem essa cara o tempo todo. A cara dele. A situação pode ter sido cortante: ele fala do ferimento, mas prefere elogiar quem cuidou dele. O fato pode ter sido humilhante: ele refaz o trajeto como quem suspeita a fraqueza espiritual do opressor, mas não exagera a dor impingida por este. Nilce é inteligente, e parece confiar também na acuidade de quem o ouve. Embora possua teorias, não estanca nelas. Entretanto, escolhe a dedo os episódios mais reveladores.

É dessa forma que ele conta de sua mudança da Fazenda do Recanto para a cidade de Machado – depois de uma breve passagem como empregado doméstico na

casa dos mesmos patrões. Como já pontuamos em outras situações assemelhadas, Nilce não fará, aqui também, nenhuma elaboração política acerca do fato.

Só que eu não trabalhei muito na roça, não. Fiquei nesse movimento de mexer com gado, porco... Meus patrões tinham a fazenda deles lá e uma casa lá na cidade. Lá em Machado. Eu ficava mais lá em Machado, lá na casa deles ajudando as empregadas domésticas. Encerava a casa lá, limpava o quintal da casa. Era um casarão grande... Quando as empregada tava de folga, eu ficava tomando conta do casarão lá. Eu cheguei até a pajear as filhas do meu patrão. Dava folga pras empregada, eu saía pelo jardim empurrando as criançada no carrinho de mão55.

A chegada à Fazenda do Recanto representou abrigo estável àquela família abandonada pelo pai. Agora, todos tinham casa e comida. Não obstante, tão logo chegaram, os pequenos também começaram a trabalhar: o tempo de brincar foi restringido. De alguma forma, o sentido mais largo de ser criança ficou impedido. A enxada prevaleceu sobre o jogo e o brinquedo. Aqui, é bom que se ressalte o caráter paradoxal desta circunstância; pois se é verdade que não havia grande disponibilidade de tempo para brincar, é verdade também que as horas para isso reservadas eram vividas intensamente. E mais. As restrições materiais que impediram a aquisição de brinquedos industrializados levou – felizmente – à atitudes criativas diante da natureza circundante: um pedaço de tronco de árvore poderia ser transformado em estilingue ou jangada; o sabugo de milho, por sua vez, virava carro-de-boi, e assim por diante.

Passado um tempo, sem explicações ou aviso, Nilce é retirado da roça. Ele diz ter gostado, afinal o serviço parecia menos penoso. Permanece o tempo sem descanso: das tábuas a escovar e lustrar para a vassoura; da vassoura para o pano de chão; dali para as criações; de novo para a limpeza.

Mais adiante – depois de vinculado aos colonos vizinhos e ao lugar, depois de ter se misturado à terra e aos animais, depois de ter crescido junto com cada árvore ali, depois de anos enraizado, depois de tudo isso – o menino trabalhador é submetido a uma nova mudança: torna-se ajudante das empregadas que arrumam e limpam a casa dos patrões na cidade. Para Nilce – interessante – foi um presente. Melhor do que o

55 Interessante o ato falho: carrinho de mão x carrinho de bebê. O carrinho de bebê era também um

previsto, segundo narra, foi ter sido levado para Machado. Na cidade, Nilce diz ter se sentido ainda mais valorizado.

A visão sempre favorável dos fatos embriagou narrador e ouvinte. Nilce não forçava argumento, embora racionalizasse demais em certos assuntos. O tempo todo foi cativante ouvir suas histórias. O drama podia estar pesado, seus olhos já lacrimejavam, mas o semblante era leve. O choro raríssimo – e sempre suave – vinha como anúncio de reviravolta. Ninguém parecia definitivamente abandonado. Nenhum problema ficaria sem solução.

Seguindo a tônica, seus patrões foram apresentados de modo bem simpático, mas pouco substantivo. Nesse caso, Nilce parecia muito preocupado – como não esteve antes – em me convencer. A mãe e o avô, pessoas queridas por ele, chegavam protagonizando histórias. No lugar dos adjetivos, ou antes deles, vinham os fatos: o avô que reservava para o neto um pouquinho de comida no caldeirão em que almoçava; a mãe que trabalhava sem descanso para dar de comer e vestir aos filhos sem pai. Os patrões – sempre no plural – pareciam telas mal pintadas emolduradas com luxo.

Os patrão sempre foram muito bons pra mim. Nossa! Eu fui criado como... Como se fosse um filho. Isso aí eu não posso reclamar, não.

A relação de Nilce com o trabalho doméstico que agora desempenhava parecia afetado pelo mesmo fenômeno, uma racionalização que não permitia enxergar com liberdade suas dores menos óbvias.

[Os patrões] Eles depositaram assim uma confiança de eu trabalhar com eles lá na cidade. E eu sempre gostei de mexer com esse negócio de limpeza. Às vezes, quando as empregadas estavam de folga, eu mesmo fazia café pros visitantes que iam lá no casarão, lá na cidade. Levava, servia o café, limpinho. Tudo direitinho. E fazia a limpeza também. Eu ficava mais na cidade. [...] Fazia o café, varria o quintal. Tinha um quintal grande lá. Cuidava do jardim. [...] Nossa Senhora! O casarão deles lá... Nossa!... Só uma parte lá – quer ver – tinha onze cômodos! Afora os porões que tinha embaixo, garagem, tudo... Eles tinham um Chevrolet ’51. Bonito, pra’quele tempo. Não sei se você chegou a ver o Galaxy. Eles tinham um também. Tinha caminhão de transporte, tudo. [...] Pagavam um ordenadozinho. Era pouca coisa, mas já ajudava muito.

Era melhor do que quando eu estava trabalhando na fazenda.

Mas a conversa sempre progredia, e tomava rumos que nada tinham a ver com a pergunta feita. Nesses momentos, é que muitas vezes o depoente parecia mais perto de temas que – antes – só foram abordados timidamente. Era como se a realidade vingasse mais crua. Não que ele enxergasse a contradição entre limpar um casarão enorme e receber em troca um ordenadozinho, ou, nas noites de jogatina, ele ser copeiro e garçom para os abastados, um pessoal lá assim... da alta sociedade deles. Nilce me mostrava o que ele próprio não julgava mostrar.

As discrepâncias começaram a aparecer. Foi arrancado56 da casa na fazenda e levado à cidade. Teria sido de repente? Foi, como mais adiante ele diz, aos pouquinhos? Quando o aplicaram noutras tarefas, teriam os patrões levado em consideração os apuros e necessidades do menino ou simplesmente as necessidades da casa, que se beneficiaria de um moleque de serviços? A eleição do moleque para os trabalhos domésticos não foi casual e súbita? Sua ‘habilidade’ para trabalhar no interior das casas teria entrado em julgamento? Ou, diferentemente, teria contado mais sua ineficiência na roça, como ele próprio ressalta? Como saber?

Aí sim! Tirou eu da roça. De repente, me levaram pra trabalhar na casa deles na cidade, em Machado. Era rua Marechal Deodoro, onde tinha a casa dos ex- patrões. [...] Eles levaram eu, que eles viram que eu tinha jeito pra trabalhar limpando a casa... Foi devagarzinho, foi de pouquinho em pouquinho. Eu ficava mais na cidade de que na roça. Ia só de fim de semana em casa.

Aos treze anos, o garoto bisneto de escravos já lavava os banheiros dos patrões, varria o seu quintal, lustrava o chão em que pisavam, servia cafezinho aos convidados e, de quebra, era pajem. A partir dali, esteve longe dos irmãos, da mãe e dos avós. Como acreditar no que diz o ex-gari sobre ter sido acolhido como filho por aquela gente, seus patrões? Se ele próprio afirma que ‘ia só de fim de semana em casa’, como podemos supor que o casarão em Machado era tão acolhedor como a casa da paineira?

56 “Para a criança que ainda não se relacionou com o mundo mais amplo, a mudança pode ter caráter de

ruptura e abandono. Tudo o que ela investiu dos primeiros afetos vai ser deixado para trás, vai ser disperso e dividido. Só quando aquele primeiro lar já não existe é que o adulto compreende que ele se situava num contexto que o transcendia, irrecuperável talvez pelo presente”. BOSI, E. – Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo, Cia. das Letras, 1994.

Acerca do que aqui tratamos, há um trecho da entrevista que é especialmente marcante. Fiz uma pergunta a qual considerei que Nilce respondera muito timidamente. ‘A cidade de Machado, como era?’

Óia, tinha a igreja matriz que ficava assim na área central. É a primeira igreja que teve lá, da igreja católica. Ficava no meio da praça. Agora hoje não é mais. Eles tiraram ela da praça e colocaram ela do lado. Mudou de lugar. Ela ficou na praça mesmo, só que agora, como eles mudaram a igreja... Ficou pertinho. Como tinha uma área vazia, eles tiraram a igreja de lá e construíram nesse espaço vazio. Era tradicional lá da área da gente.

A despeito do assunto realmente não ter avançado, o depoente indica um caminho interessante a ser percorrido. Refaço a pergunta, agora de forma mais pessoal. ‘Se você fosse me convidar pra passear na sua cidade naquela época, onde você me levaria?’. O que vem surpreende pela extensão com que o assunto deslancha. Não creio que tenha havido outro momento na entrevista em que Nilce tenha tomado a palavra durante tanto tempo ininterruptamente.

O trecho é realmente longo. Aqui, a fim de priorizar o exame e a compreensão do que é relatado, apresentarei a resposta do depoente em frações temáticas, segmentos que falam por si mesmos e que atraem o que vem na seqüência.

Nilce inicia o passeio comigo. A cidade tem como centros muito encarecidos a igreja matriz e também a igreja de São Benedito; ao que tudo indica, para ele os lugares mais importantes de Machado.

Depois, tem a igreja de São Benedito, que tinha a festa tradicional da cidade. Então, a gente trabalhava na lavoura o ano todinho, fazendo aquela economiazinha pra poder participar da festa em agosto. Trabalhava na lavoura de café, fazia as colheitas tudo. E todo mundo que morava nas fazendas, tudo tinha a mesma idéia.

A festa tradicional da cidade – curioso – não acontecia na matriz, mas na igreja de São Benedito. A solenidade marcava o fim da colheita e tinha mesmo a vocação de celebrar o ano agrícola. A gente trabalhava na lavoura o ano todinho, fazendo aquela

tinha uma idéia fixa: participar da congada57. Não era sem motivo que o pessoal aguardava a festa em agosto. Doze meses trabalhando de sol a sol mereciam uma recompensa à altura. A expectativa em torno do acontecimento lembra o que, nas cidades, as pessoas sentiam com relação ao carnaval.

O pessoal armava as barracas. Tinham aquelas barracas tradicionais, lanche, todo tipo de lanche que você imagina. Ia pessoa aqui de São Paulo, fazia caravana pra lá pra montar barraca de vender as coisas, ambulantes lá dentro também. Eles compravam aquele ponto deles ali, igual tipo uma feira, armava tudo na porta da igrejinha de São Benedito. Tinha as horas de missa. Pessoal participava da missa e depois tinha a congada, que eu te falei. Pessoal fantasiava tudo igual esse pessoal que tem a fantasia de carnaval. Um tocando cavaquinho, o outro é... É... É... Pandeiro, tamborim, aquela zabumba, que eles falam. [Ri].

Os lavradores faziam grande sacrifício para participar da festança. Era raríssimo que pudessem contar com transporte para se deslocar das fazendas até Machado, e a distância não era curta. Nilce vai retomar o assunto mais adiante. A festa era longa e durava uma semana inteira. Além das danças e das brincadeiras, vendia-se de tudo: desde artesanato até lanches e quitutes. Neste momento da narrativa, o depoente nota algo que, por hora, deixaremos em suspenso: Eu nunca usei fantasia.

E era uma festa que – o pessoal morava numa distância como daqui... Vixe! Mais longe do que daqui pra Pinheiros58 ou pra cidade! Se não tivesse condução, na época que eu era criança, ia a pé mesmo! Fazia tipo uma novena. A festa ficava mais de uma semana. Eu nunca usei fantasia. Eu só participava das brincadeiras. Eles montavam parque infantil, tudo. Tinha roda gigante. Quando chegava naquela época... ...

A partir deste ponto, a fala de Nilce fica acelerada como nunca. É que agora ele está em cima de um brinquedo que faz correr rápido o corpo da gente.

57 “Esse registro alcança uma memória pessoal que, como se buscará mostrar é também uma memória

social, familiar e grupal”. BOSI, E. – Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo, Cia. das Letras, 1994.

Eu gostava daquelas balanças de puxar na corda. [Ri]. Era tipo um barquinho: um senta de cá, outro de lá, puxa a corda. Quem tiver mais força levanta o outro. Quanto mais você puxa a corda – dá aquele jogo no corpo assim – mais vai levantando. Tinha que pagar pra brincar. Tinha que pegar a ficha no caixa primeiro. Até hoje, você vai em qualquer diversão de parque infantil, você tem que pagar pra poder participar. A gente tinha esse tipo de brincadeira. Aquele que você senta e ele fica girando em volta assim: você sai dali, você sai tonto. [Ri]. Pior que beber uma pinga. Não, pinga é pior!!! [Gargalhamos].

Vem a constatação de que a brincadeira estava limitada ao que o dinheiro podia pagar. Em seguida, outra restrição: lanchar, só se levar de casa mesmo.

Eu não participava de muita coisa, não. Só dessas coisinhas assim banais, só. Lanche, eu também não ligava muito, não. Negócio de lanche, a gente... O pessoal da gente, a mãe da gente já recomendava em casa pra guardar aquele dinheirinho pra brincar. O lanche, a gente fazia em casa mesmo. Aquelas comidas caseiras da gente, e já ia preparado. Então, aqueles lanches lá a gente nem incentivava de ficar comprando aquelas coisas.

Eu não participava de muita coisa, não59. Num primeiro momento, Nilce nos

deixa em dúvida acerca de desejar ou não, ou sentir-se impedido de realizar o desejo. Devemos considerar, sobretudo, que mesmo a festa do padroeiro negro e humilde não era em tudo acessível aos trabalhadores muito pobres. Lanche, eu também não ligava

muito, não’. Não ligava? Ocorre que já havia falado sobre nunca ter usado fantasia e a

respeito de que os brinquedos eram todos pagos. Quando ressalta que participava só

dessas coisinhas assim banais, ficamos com a impressão de que havia muitos eventos

na congada que eram inacessíveis aos mais pobres, pessoas que, em geral, participavam daquilo que não exigia gastos, mais trivial ou banal, como Nilce diria. Não é difícil intuir que mesmo os brinquedos, havia os mais baratos e os mais caros. Mas não nos apressemos.

59 Esta frase – assim como outras no mesmo espírito – pode guardar o mesmo sentido de que tratamos

antes, aquele da felicidade e prazer com a comida parca e simples, repartida. A renúncia que paradoxalmente é acompanhada de satisfação, a satisfação muito essencial, muito despojada, que faz crescer o gosto de coisas e o gosto da companhia dos outros.

Ninguém era incentivado a comprar comida na festa, afinal, se o dinheiro era tão pouco e dava para levar de casa o de comer, que a reservasinha então pudesse se destinar a outro fim, especialmente aos brinquedos. A mãe da gente já recomendava em

casa pra guardar aquele dinheirinho pra brincar. O lanche, a gente fazia em casa mesmo.

A renúncia não parava por aí.

E quando a pessoa ia a pé pra participar desse evento da festa – a gente morava no interior, era tudo estradinha de terra – e não podia tomar condução. Não tinha dinheiro pra tomar condução. Já ia com aquela reservasinha pra participar do evento da festa. Então, a gente economizava o máximo. A gente andava – aqui fala quilômetro, lá falava légua – duas, três, quatro léguas. É longe! Uma légua, eu acho que é três quilômetros. O que a gente fazia? As estradas que a gente viajava – que ia da fazenda onde a gente morava até na cidade – dava mais ou menos isso aí: três, quatro léguas. Naquelas estradas tinha sempre umas nascentes de água: aquela água corria direto, da natureza mesmo. E a gente, o que a gente fazia? Quando ia pra cidade, naquela estradinha de terra, tirava o tênis que a gente tinha – naquele tempo nem tênis era, era aquela coisa de alpargata-roda, aquela coisa. Quem tinha sapato, tudo bem – amarrava o sapato, colocava assim nas costas e ia descalço. Fazia caminhada. Quando estava chegando perto da cidade, ia entrar pra cidade – tinha aquelas biquinhas d’água daquelas nascentes que eu estava falando – chegava ali, lavava o pé, calçava o sapato pra entrar pra cidade. [Ri]. Pra não cansar e pra não sujar o sapato. Porque você não agüentava fazer muita caminhada calçado. A gente já estava acostumado na fazenda a trabalhar descalço, ia daqui pra ali. Agora, quando ia pra cidade assim dava um outro pique. Pra poder chegar na cidade pra poder participar do evento da festa. A gente participava, tudo.

A excitação era tão grande a fim de viver a congada que mesmo dez quilômetros na ida e mais dez na volta – a pé, sem calçados – não desanimava a molecada. Quando tinham sorte, às vezes o fazendeiro colaborava com a condução. Entretanto, tudo era definido por ele mesmo, desde os horários de partida e chegada até o número de colonos que contavam com a carona.

Tinha vez que – na época em que lançou essas peruas ‘kombi’ – o dono da fazenda comprou uma ‘kombi’, fazia uma correria com a gente. Uma hora levava, outra hora levava de caminhão, que fazia os trabalhos da fazenda. Os patrão levava um grupo de pessoa num dia, outro dia levava outro grupo. E a gente aceitava desse jeito aí. Ele falava: ‘Tal dia vai tantas pessoas da colônia’ – as colônias, as casas de moradia da gente. Pra levar na festa. Tinha o motorista. O motorista ficava lá até meia-noite, dez e meia, meia- noite assim. E levava a gente de volta.

A Kombi (ou a carona do patrão depois do expediente) teria ligado os assuntos aparentemente desconectados: a congada e a chegada da televisão.

A televisão, também... – já é outro assunto. Quando lançou a televisão, ninguém conhecia. O pessoal falava: ‘Óia, tem um aparelho assim que coloca na praça assim, a gente vê o pessoal assim naquele aparelho...’. ‘É mesmo?!’. [Ri]. O patrão fazia de final de semana, de sexta-feira assim – a hora que terminava o expediente de serviço – fazia uma lotação lá na Kombi e levava a gente de graça. Pra assistir televisão na praça da cidade. Chegava lá, meu, você não enxergava quase nada, só aquele chuvisco assim. De vez em quando, aparecia uma imagem na televisão: preto e branco. A gente ficava tudo empolgado: ‘Noooooossa!’. E aí saía contando um pro outro: ‘Ah, quer dizer que você viu mesmo a pessoa naquele aparelho?!’. ‘Eu vi’. [Ri]. Ficava tudo empolgado! Era um chuvisco, mas a gente ficava empolgado. Então, cada final de semana o patrão fazia uma lotação na Kombi e levava a gente pra assistir. Depois, levava de volta pra casa, pra fazenda. Rapaz, eram uns momentos tão gostosos! ... ...A gente ficava tudo empolgado!

A memória evade a festa. De repente. Vai caminhando – interessante – em direção a um objeto de consumo que levou anos para chegar às casas dos lavradores. Nilce avisa: Já é outro assunto. Talvez o tema já fosse outro. Não a televisão nem a festa. Aqui há a oportunidade, novamente, de pontuarmos como gente pobre tira leite de pedra. A festa de São Benedito – como vimos – era o evento mais importante do ano. Toda a gente da região vinha para participar. Os muito pobres – como Nilce e seus

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