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Não seria exagero afirmar que a casa é o centro do mundo para uma criança. A casa da infância – se ainda existir – permanece como referência de lugar para quem ali cresceu. Nossos passeios com os filhos ou com os netos transitam sempre por ali, senão concretamente, mas pelas histórias.

A casa de um vizinho chegado faz lembrar um prato especial que sua mãe preparava. A austeridade do tio que morava próximo conduz à memória do jeito engraçado como penteava os cabelos. A pipa presa na árvore traz de volta a recordação da molecada ali debaixo, disputando para ver quem ficaria com o prêmio. Tudo vem e vai como se jamais tivesse deixado de estar ali.

A criança cresce, e junto cresce a cidade. Os arredores se expandem para ruas e lugares que pareciam não existir. O mundo se transforma, e passa a alcançar outras fronteiras: um bairro novo, uma escola que não é a sua, outra feira livre.

Esta transposição – processo que não é instantâneo nem livre de percalços – começa a marcar mais expressivamente nossos lugares sociais. Se moro em um lugar privilegiado, posso perceber que em um bairro distante do meu as casas são mais simples, não têm telhados, não foram pintadas. Ou, se moro na periferia, reparo que em determinadas lojas nós aparentemente não somos bem vindos, e ouço de meus pais: Nós

não temos dinheiro para comprar o que tem aí. A cidade mostra-se dividida.

Uma cidade segregada só pode admitir cidadãos segregados. Os lugares freqüentados – públicos ou não – parecem marcados por cancelas psicossociais: lugares nos quais me sinto à vontade, lugares nos quais pareço despencar. Em sua dissertação de mestrado, José Moura Gonçalves Filho104 narra duas experiências opostas. Uma, em que a empregada doméstica recém-chegada na capital paulista diz simpatizar com um bairro miserável, sem urbanização, abandonado: Eu senti que ali dava pra crescer. Outra, em que cidadãos pobres sofrem de maneira cortante o impacto de estarem diante de um lugar no qual só são aceitos como serviçais. Os relatos são impressionantes, e o

104 GONÇALVES FILHO, J. M. – Passagem para a Vila Joanisa – uma introdução ao problema da

humilhação social. Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 1995.

leitor não deve dispensar o encontro com o que – densamente – o professor apresenta e discute.

A cidade – pelas formas como se encontra dividida e desmembrada – evidencia quem foi posto para fora. Os lugares dos excluídos, existem sinais os mais diversos, são tão marcados quanto os dos abastados. Não há disfarce. A cidade está cercada. Não são somente os muros altos e as guaritas de contenção e segurança. Não são simplesmente os pedágios urbanos, os quilômetros a serem vencidos. É algo no próprio olhar das pessoas, e que pode mesmo avançar para expressões de recusa do outro, verbal e corporal. Isso produz conseqüências.

No bairro rico, o pobre sofre de maneira involuntária, muitas vezes invencível. Não recusam a graça do passeio, mas não raramente amargam sentimentos desagradáveis e aparentemente sem explicação. [...] Podem cair num estado de grande inibição emotiva e corporal. Um estado psicomotor difícil de abandonar, uma mistura de mudez e enrijecimento muscular. É um enrejecimento que faz lembrar o enrijecimento de um cadáver muito mais que de um neurótico comum. É enrijecimento de um corpo que parece drástica e subitamente desabitado. Como um feitiço, que viesse transformar gente em pedra. Os braços grudam-se ao tronco, rigidamente, como caramelos ao dente. O andar torna-se estranhamente lento e pesado, as pisadas encurtam-se. O rosto assume uma imobilidade excepcional. Os olhos fixam-se ao chão, abandonando toda visão lateral, toda contemplação. Quando cruzam os abastados, os olhos fecham-se ou piscam de um modo esquisito e epilético. [...] São fenômenos disparados em ambientes públicos onde a presença dos pobres não pode contar, a não ser como a presença de subalternos, a serviço dos que despendem dinheiro e ordens105.

Moisés, Nilce, Tião, Chico, Joãozinho, Bahia. Todos os outros companheiros também – varredores ou não. Nenhum deles deixou de mencionar o assunto. Ninguém ali era indiferente a quanta coisa os separava dos outros uspianos. Ninguém ali estava indiferente à sua condição de cidadão impedido. O que os marca indelevelmente é o enigma da divisão de classes, uma separação orientada por razões econômicas, mas que faz reverberar – repercussão dilacerante – nas pessoas rebaixadas.

105 GONÇALVES FILHO, J. M. – “Humilhação Social: um problema político em psicologia”. In:

Sentir-se em casa fora dela depende de uma comunicação personalizante,

comunicação larga com o ambiente e com as pessoas. Em uma cidade dividida, repleta de lugares segregados, formada pela expulsão maciça de sujeitos subalternizados, como fazê-lo? Como sentir-se em casa em locais projetados a partir da exclusão?

Ambientes que poderiam parecer atrativos, tornam-se lamentáveis para os pobres quando carregam os signos da exclusão. Pensemos nos “shopping centers”. [...] Nada é mais angustiante ou amargo, para essa gente que conhece a vida comunitária, do que participar de um bem privatizante. “Despencam”. Isto nada tem a ver com a rejeição de uma satisfação pessoal, mas é o índice de que a fruição de um bem só pode se perfazer quando está mantida a possibilidade de distribuí-lo, de fazê-lo circular sem que deixe de ser meu. Para que seja meu é preciso experimentar a possibilidade de que seja, em alguma medida, não apenas meu. Um bem tanto mais me pertence (e não eu a ele) quanto maior a chance de entregá-lo livremente. É quando fica evidente que vivo destes bens terrestres, mas minha vida deixa de confundir-se com a posse excludente de coisas: quando as coisas se transferem, é minha vida que deixa de ser coisa, uma coisa entre coisas – experimento um deslocamento relativamente às coisas e que é condição de humanidade. É preciso que a posse de bens não represente um apego para que possamos existir no meio deles, liberando-nos: liberando-nos da coincidência com coisas. Para experimentá-lo seria preciso que nossa satisfação pessoal não se fundamentasse na insatisfação dos outros, na exclusão e no servilismo do outro: nada mais difícil numa sociedade de classes.

A cidade que não acolhe, a cidade que segrega, é habitada por gente tornada coisa, que necessita reprimir o que sente, que vê e finge que não vê, que dissimula. Nada tão estranho quanto isso para quem se habituou ao convívio ombro a ombro com familiares e vizinhos.

Para os estudantes do IPUSP, a experiência de um dia trabalhando junto à pessoas subalternizadas foi uma chance de ouro. Para os trabalhadores, também era algo que gerava expectativa. Nilce falou acerca do assunto. Não esquece do dia em que teve estudantes da USP como colegas de varrição. Vamos ouvi-lo.

Eu lembro deles, que trabaiaram o dia lá. Parece que eles ficaram meio assim... Não gostaram do movimento. É... ... Deixa eu ver... Isso aí foi uma coisa que... Foi mais o Moisés que passou lá pro departamento. Mas eu acho que ele deu uma dica, sim: ‘Ó, vai vir uma turma aí pra trabalhar no campo com o pessoal da limpeza...’. Eles aceitaram e tudo bem. O supervisor... O Moisés foi legal nesse ponto aí, de apresentar vocês, de mandar a gente explicar pra vocês o serviço como é que era. Os outros logo desistiram e você segurou. E aqueles outros? Será que eles se formaram? [...] Será que eles fizeram outro tipo de trabalho? Daquele nosso eles não gostaram, não... ... ...

Experimentaram e não gostaram? Provaram do que é meu e não quiseram voltar? O que teria acontecido? A distância causa espanto, intriga, a distância dos que estiveram perto106. Vieram e não quiseram voltar? Não puderam voltar? Não gostaram do meu gosto? Que gosto tenho eu?

Os trabalhadores não se esquecem dos que estiveram entre eles, mesmo daqueles que por poucas horas, um dia: isto chama tanto a atenção; é comovente. Aqueles homens parecem recordar os que não voltaram como se tivessem exatamente provado, apreciado cada um dos que passaram ali, parecem guardar um gosto deles como gosto de gente – não pretendemos exagerar, a coisa é bem sensível, falam de um gosto de gente próxima e amargam o afastamento. Tudo se passa como se o afastamento, talvez tão neutro, entretanto valesse como desprezo. Ah! Essa gente humilde e humilhada, como que sempre assombrada pelo desprezo reiterado: os signos traumáticos de desprezo, mas também os signos mais anódinos podem facilmente devolvê-los a um sentimento renitente de desprezo, um ressentimento assíduo, todos os dias, o dia todo107.

Fico sem jeito com a constatação de Nilce. O que eu tinha em mente era uma outra série de assuntos. São treze anos! Imaginava – ingenuamente – que fosse ouvir dele detalhes inusitados a respeito da inabilidade daqueles varredores recém-iniciados. Ou, então, algo acerca daquela própria experiência. E o que veio? Ouvi dele algo que poderia ser prontamente tomado como uma preocupação infantil.

106 Cf. sobre o assunto: COSTA. F. B. - Homens Invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo,

Globo, 2004.

Diga-se, antes, que um sofrimento infantil não é desprezível. Ainda menos desprezível quando é dos mais intensos. Uma criança sofre intensamente quando geralmente duas condições se reúnem: aquilo que se internalizou possui uma intensidade traumática extraordinária e, ao mesmo tempo, o homem pequeno não conta com os recursos pelos quais safar-se da dor interior. As duas condições estão presentes na humilhação social: o rebaixamento político internaliza- se no oprimido com força traumática extraordinária, ao mesmo tempo que, exteriormente, constitui a exclusão do homem para fora do âmbito do reconhecimento intersubjetivo – a exclusão que se internaliza, ela mesma interrompe as condições pelas quais o humilhado enfrentaria sua humilhação. A humilhação age destrutivamente pelos dois extremos do psiquismo. Estes fatos externos-internos caracterizam assiduamente a psicologia do oprimido. As formas deste desencadeamento podem variar: são lágrimas, o emudecimento, o endurecimento, o protesto confuso, a ação violenta e até o crime108.

E vem a conversa:

- Ó Nilce, sempre que a gente se encontra, acaba falando daquela experiência com vocês, principalmente dos outros estudantes não reconhecerem a gente... [Nilce me interrompe pela primeira vez em mais de cinco horas de entrevista].

- Por causa do uniforme. Você entrou de frente com a pessoa que você estudava lá junto e não te olharam. [...] Eu acho que você ficou muito deprimido. E qualquer um da gente ficaria. Você vê, é o meu caso também109. Dependendo do lugar que eu for, se eu estiver com o uniforme de trabalho assim diferente... Ou se eu estiver bem trocado, o pessoal me olha com um olhar. Mas se estiver com um uniforme assim de

108 GONÇALVES FILHO, J. M. – “Humilhação Social: um problema político em psicologia”. In:

Psicologia USP. São Paulo, v. 9, n.2, 1998, pp. 11-67.

109 “O sentimento de dignidade parece desfeito. Deixa de ser espontâneo. É preciso um esforço de atenção

para conservá-lo. Um esforço nem sempre eficaz para o humilhado – o proletário não é humilhado porque sente ou imagina sê-lo: o sentimento e a imaginação estão fincados numa situação real de rebaixamento. A situação imediata é sempre a situação mediada pela longa história de rebaixamento que atravessa sua classe e atravessa sua família. Na condição proletária, a submissão é que se torna espontânea. Diríamos melhor: torna-se automática”. GONÇALVES FILHO, J. M. – “Humilhação Social: um problema político em psicologia”. In: Psicologia USP. São Paulo, v. 9, n.2, 1998, pp. 11-67.

firma, o pessoal já fica meio assim com receio. Aí é que ele se engana. Por isso que às vezes tem algum – não misturando as estações – a pessoa se engana muito: o cara entra num lugar assim e não está bem vestido direitinho, é uma pessoa muito humilde, que não tem intenção de nada. Aí, chega um cara de gravatinha ali, não sabe que aquele é o maior pilantrão, ladrão mesmo da pesada. Trata lá: ‘Ô Doutor...’, e de repente... ‘Vai passando a grana pra cá!’

- E os que não vêem?

- É... Pra mim, é um tipo de pessoa que... É orgulho isso. Quer dizer: te viu e fez que não viu. Viu você e disfarçou. É um disfarce. Acontece isso com a gente. Até a gente andando aqui na avenida tem pessoa que – nossa! – está de frente assim, e quando está chegando perto da pessoa dá até uma olhadinha de lado assim... E a gente que está ali no movimento, a gente percebe. Por que não?! Esse meu causo que está lá na página da revista110; até hoje eu não perco esse ritmo. Se eu encontro uma pessoa sozinha, eu não deixo de cumprimentar. Agora, quando acontece da pessoa não querer falar comigo, eu deixo quieto. Vou fazer o que?! [...] Ó... É uma coisa que não dá nem pra entender, porque eu não sei fazer isso. Eu posso estar do jeito que estiver, esteja com quem eu estiver, a pessoa que eu estou acostumado a conviver com ela a todo momento, posso estar com quem eu estiver, eu procuro cumprimentar ele e o outro também. Toda a pessoa que tem esse tipo de conhecimento, esse tipo de educação, esse respeito que a gente tem, a gente observa essas coisas. Então, coitadinho daquele que faz esse tipo de coisa. Dá até dó. É que ele não sabe: às vezes, ele vai precisar da ajuda até de um mendigo. Até um mendigo, às vezes, ajuda a gente levantar. Eu passo nesses lugares onde fica aí, onde tem essa parte de mendigo. Eu passo, eu dou atenção pra eles. Eu não sei o meu dia de amanhã. Jamais eu vou passar. Às vezes, eles vêm pegar minha mão, eu dou a mão pra eles, cumprimento eles. Por que não? Porque eu não sei o meu dia de amanhã.

A ponderação de Nilce a respeito do assunto é que o afastamento entre as pessoas deriva de um desnível social – senão verdadeiro, ao menos aparente. Um uniforme de gari, em geral, não consegue que o indivíduo assim trajado seja espontaneamente bem quisto. Ao contrário, terno e gravata abrem muitas portas. Engana-se quem toma por base os trajes de outrem: O cara entra num lugar assim e não está bem vestido

direitinho, é uma pessoa muito humilde, que não tem intenção de nada. Aí, chega um cara de gravatinha ali, não sabe que aquele é o maior pilantrão, ladrão mesmo da pesada.

Não obstante, o engano que não poupa a aparência atinge também a alma de quem se viu tomado por inferior. Impossível ficar indiferente ao impacto do golpe: Eu

acho que você ficou muito deprimido. E qualquer um da gente ficaria. Nilce retoma a

idéia de que não é um sofrimento individual. Você vê, é o meu caso também.

Dependendo do lugar que eu for, se eu estiver com o uniforme de trabalho assim diferente... Ou se eu estiver bem trocado, o pessoal me olha com um olhar. Mas se estiver com um uniforme assim de firma, o pessoal já fica meio assim com receio.

Desejaríamos supor que o fenômeno fosse de âmbito individual, notável naquela que fosse muito suscetível, por razões as mais idiossincráticas. Mas o fenômeno é de tal modo corriqueiro, acertando ora um, ora outro, que é impossível duvidar de uma determinação psicossocial bem larga para o sofrimento geral. O mal, assíduo e onipresente, obriga considerar que, nesta circunstância em que a angústia se multiplica e à qual respondem variavelmente, existe reedição de um sofrimento antigo, amplo, e que não estanca: a humilhação social – sem coágulo, sempre corrente, insinuando- se nas hierarquias iníquas, nos espaços públicos divididos, mas também nos encontros e espaços mais insuspeitos111.

Circunstâncias de desigualdade econômica e social, fato que em geral fica pareado a relações de sujeição e espoliação, podem até mesmo provocar a ruptura do poder instaurado quando seres humanos pretendem se comunicar. O senhor é quem

sabe. O senhor é quem manda. Sim senhor. Isso não constitui conversa. O rebaixado e o

soberbo permanecem distanciados: pensamentos e frases ficam reduzidos às ordens, contra-ordens e execuções das mesmas. A comunicação encolhe-se e os sujeitos mantêm-se encurralados por suas posições hierárquicas. Permanecem adequados às conversas esqueléticas e empalidecidas, anoréxicas. É porque nos tornamos, em alguma medida, também anoréxicos, não admitindo o sabor dos outros – azedume ou doçura, tanto faz – e ficando impedidos, por isso, de provar a presença das pessoas. A conversa

111 GONÇALVES FILHO, J. M. – “Humilhação Social: um problema político em psicologia”. In:

reduzida e estéril, magra por assim dizer, é efeito de olhar estreito – também magro – que no mundo capitalista admitimos, em geral, embotados.

Do lado de cá, depressão. E do lado de lá, o que se passa? Pra mim, é um tipo de

pessoa que... É orgulho isso. Quer dizer: te viu e fez que não viu. Viu você e disfarçou. É um disfarce. [...] Coitadinho daquele que faz esse tipo de coisa. Dá até dó. É que ele não sabe: às vezes, ele vai precisar da ajuda até de um mendigo. Até um mendigo, às vezes, ajuda a gente levantar.

A segregação entre ricos e pobres requer exame profundo, exige que sempre encaremos o tema como algo enigmático. Para tanto, é indispensável a palavra do oprimido. Somente quem foi posto abaixo é que melhor pode nos ensinar sobre o fato cru.

Ó... É uma coisa que não dá nem pra entender, porque eu não sei fazer isso. Eu posso estar do jeito que estiver, esteja com quem eu estiver, a pessoa que eu estou acostumado a conviver com ela a todo momento, posso estar com quem eu estiver, eu procuro cumprimentar ele e o outro também. Toda a pessoa que tem esse tipo de conhecimento, esse tipo de educação, esse respeito que a gente tem, a gente observa essas coisas.

Respeito é o termo.

O que o amor é em sua esfera própria e estritamente delimitada, o respeito é na esfera mais ampla dos negócios humanos. Respeito é uma espécie de “amizade” sem intimidade ou proximidade; é uma consideração pela pessoa, nutrida à distância que o espaço do mundo coloca ente nós, consideração que independe de qualidades que possamos admirar ou de realizações que possamos ter em alta conta. Assim, a perda do respeito nos tempos modernos, ou melhor, a convicção de que só se deve respeito ao que se admira ou se preza, constitui claro sintoma da crescente despersonalização da vida pública e social112.

Se falta respeito, é justo afirmar com a filósofa que nada resta. Sem a consideração nutrida pelo outro à distância, o que é possível? A despersonalização da vida pública e social nos faz fantasmas de nós mesmos.

Em psicanálise, o nome para afetos inomináveis é sempre o mesmo: angústia, o mais desqualificado dos afetos, moeda dos afetos traumáticos. Veio como um gesto, um olhar, uma palavra: são comportamentos verbais e pré-verbais que alcançam o sujeito e vêm invadi-lo, governando-o de dentro como uma força física, uma energia que perdeu significado, sem que o próprio sujeito possa agora decifrá-la. E, além disso, freqüentemente as mensagens enigmáticas, que confundem e angustiam o destinatário, são enigmáticas para seus próprios mensageiros. Quem se dirige ao pobre como um inferior saberia dizer o que lhe autoriza rebaixar com tanta naturalidade? Saberia dizer onde foi que começou o rebaixamento?113

Nilce conhece algumas coisas a esse respeito, e ouvi-lo sempre significa alterar roteiros prontos, alcançar outros lugares, pensar diferente. Quando menos se espera, lá vem ele com uma revelação importante ou uma nova teoria. Foi dessa maneira que me ocorreu, por exemplo, pensar novamente114 na cidade como expansão geográfica e psicológica da casa. A cidade que habitamos pode – ou não – ser sentida como nossa casa. Um ambiente público que segrega cidadãos também expulsa alguns de seus moradores.

Perguntei ao Nilce qual era seu lugar preferido em casa, na Fazenda do Recanto. Primeiro, ele só sorri. Depois, o sorriso permanece enquanto ele detalha o que recorda.

Olha, a cozinha. De manhã cedo, quando a gente levantava, tinha um pé de árvore. E naquele pé de árvore – a gente tinha criação de galinha – elas dormiam nesse pé de árvore. E esse pé de árvore – o pessoal daqui não conhece: é uma fruta parecida com pinha, mas o pessoal não conhece. Chama chicuta. E as galinhas pousavam ali. Então, de manhã cedo – a partir de cinco e meia, seis horas – as galinhas começavam a descer. Ficavam no terreiro esperando a gente jogar o

113 GONÇALVES FILHO, J. M. – “Humilhação Social: um problema político em psicologia”. In:

Psicologia USP. São Paulo, v. 9, n.2, 1998, pp. 11-67.

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