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2 OS MURA ATRAVÉS DA HISTÓRIA, ANTROPOLOGIA, LITERATURA E

2.2 A ANTROPOLOGIA E OS MURA

Figura 4 – O gentio Mura inalando o paricá

Fonte: FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. 2. ed. Manaus: Editora Valer, 2008, p.213.

Corsários no caminho fluvial, de Amoroso (2006)23, especialista no campo da etnografia Mura, apresenta a seguinte descrição:

... argonautas que habitavam originalmente o rio Madeira, índios de língua isolada, portadores de uma cultura material extremamente simples (...). Foram conhecidos como “gentio de corso”, imagem naútica utilizada no período colonial para definir os povos que permaneciam afastados dos povoamentos, constituindo uma ameaça aos empreendimentos coloniais, saqueando e roubando as Aldeias de índios domésticos e as embarcações coloniais (In: CARNEIRO DA CUNHA, p. 297).

Conforme a representação supraexposta sobre o Mura, considera-se alguns aspectos destacados pela autora também recorrentes na narrativa de Ferreira (2008). Amoroso, entretanto, expõe que estudos etnográficos e revisão das ideologias características do período, são perspectivas que possibilitam “recuperar criticamente o processo pelo qual representações historicamente datadas deformam o conhecimento de uma população (In: CARNEIRO DA CUNHA, p. 309)”.

Outra questão que reforça tal representação diz respeito aos constantes deslocamentos nos rios da região onde os Mura estão, entre os povos que navegavam pelos Rios Tapajós e Madeira no contexto de uma Amazônia assaltada pelo extrativismo colonial. Darcy Ribeiro destaca que

Os Mura habitavam primitivamente as terras da margem direita do médio Madeira, onde enfrentaram os primeiros brancos, que tanto subiam o rio vindos do Amazonas, como vindos de Mato Grosso. Graças ao sucesso de suas táticas de povo canoeiro contra invasores que navegavam em pesados batelões, os Mura expandiram-se passando a ocupar um extenso território ao longo do Madeira até sua foz e daí pelo Amazonas e Purus acima, concentrando-se principalmente na região do Autaz. Desta posição, dificilmente acessível pelo intrincado sistema de lagos, furos e canais, passaram a atacar, quase impunemente, as populações civilizadas do Amazonas, Solimões e rio Negro, obrigando mesmo algumas vilas a se mudarem para longe de sua área de ação (1996, p. 54).

O estabelecimento e a situação dos Mura na região é ressaltado a partir de Menéndez (2006), o qual localiza a presença Mura em meados de 1853, “aldeados na missão dos rios Purus e Quary na margem oriental do Solimões (p. 282)”, enquanto que no período anterior, “no Madeira, onde exerciam predomínio nesta época, não passando do rio Jamari. Desde 1784 tinham encerrado as hostilidades

23 In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.) História dos índios no Brasil 2ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992.

com o branco, são assinalados no curso baixo e médio, com sete Aldeias, em 1828 (In: CARNEIRO DA CUNHA, p. 285)”.

Em relação às situações de contato contextualizadas, o autor acrescenta ainda que

Para a segunda metade do século XIX, as fontes para o rio Madeira se referem quase exclusivamente aos Mura, Parintintins, Munduruku, Arara e Tora no curso baixo e médio desse rio, indicando as freqüentes hostilidades que esses grupos mantinham entre si e com o branco (In: CARNEIRO DA CUNHA, p. 287).

O período definido por Menéndez, contribui bastante ao levantamento de dados sobre as referidas etnias a partir das fontes historiográficas datadas daquela época, também à localização da região do Rio Madeira como ponto de estabelecimento Mura. Tais fatores tendem a corroborar com o pressuposto de que a desestabilização sobre as atividades extrativistas é representada pelo ciclo das “drogas do sertão”, e atribuídas aos Mura, entre outros, tal responsabilidade. Neste sentido, o autor contextualiza ainda que

Em 1749, na altura de Manicoré, já existem duas feitorias portuguesas, dedicadas ao cultivo de cacau. Posteriormente à expulsão dos jesuítas, porém, as hostilidades por parte dos Arara, Mura e Munduruku são apontadas como causa do despovoamento e do declínio da navegação do Madeira (In: CARNEIRO DA CUNHA, p. 288).

Assim, a permanência Mura que posteriormente evidencia-se na região, perpassa o período dos diretórios de índios após expulsão dos jesuítas em 1757 pelo Marquês de Pombal; as ondas de ataques relatados pelo ouvidor Ribeiro de Sampaio e Alexandre Rodrigues Ferreira; a pacificação que Wilkens (1993) narra na Muhuraida em 1785; como também a retomada missionária realizada pelos carmelitas em 1827, já no Brasil independente. Os Mura tiveram ainda participação na Cabanagem (1834-1836), o que, por sua vez, segundo Amoroso, “pouco se sabe, já que na literatura paraense sobre a revolta o índio é na maioria das vezes tratado de forma genérica (In: CARNEIRO DA CUNHA, 2006, p. 309)”. Todavia, Gomes corrobora descrevendo o seguinte:

A cabanagem aliciou muitas aldeias indígenas autônomas, que mal falavam algum português, mas que viviam sob o jugo ocasional de recrutamento de trabalho e apropriação de seus bens extrativos. Os Mura, os Mawé, os Sateré, junto com os genericamente chamados Tapuios,

formaram boa parte das forcas rebeldes que chegaram a tomar Belém, mas que traídas pelos interesses classistas dos líderes, recuaram, foram combatidas e perseguidas inclementemente por todo o Baixo Amazonas (1988, p.115).

Os constantes embates relatados sobre os Mura no momento anterior, após a pacificação cedem espaço ás observações e descrições etnográficas, cujo teor pode ser analisado a partir das informações apresentadas.

Entre as fontes para o século 20, pode-se recorrer aos relatos etnográficos do padre Constant Tastevin, que descreve a situação dos índios Mura da região do Autaz quanto ao modo de vida, crenças, cosmogonia, costumes, narrativas e conhecimentos geográficos. Tastevin, na ocasião de sua visita à região – década de 1920 –, oferece um panorama sobre a etnia neste período, discorrendo que

Nos dias de hoje, os costumes do Mura não mudaram quase nada. Ele viaja menos, todavia, se os caciques, obedecendo às ordens do governo de Manaus ou dos diretores da catequese laica, não permitem mais a seus homens longos passeios nem longas ausências (In: FAULHABER e MONSERRAT, 2008, p. 60).

Nimuendaju, que em 1926 colheu fragmentos de lendas24 na região do Autaz,

contabilizou para o período no máximo 1.500 indivíduos. Entre as lendas pode-se citar: constelações, o arco-íris, o dilúvio, o incêndio universal e a flauta dos porcos- do-mato (1986, p. 108-109).

Em O cru e o cozido, Lévi-Strauss menciona, a partir de Nimuendaju, a questão de um mito ora compartilhado entre alguma etnia e os Mura. Ele destaca que “os Mura também acreditavam que existiam dois arco-íris, um ‘superior’ e outro ‘inferior’ (2004, p. 285)”, enquanto que em Do mel às cinzas, outra contribuição de Lévi-Strauss, refere-se há um determinado aspecto linguístico e destaca no contexto da literatura dos viajantes, que

Há mais de um século, Bates (1892:169) escrevia a respeito de uma estada entre os Mura: “Quando índios, homens e mulheres, conversam entre si, parecem ter prazer em inventar novas pronúncias e em deformar as palavras. Todo mundo ri destas gírias e os termos novos são muitas vezes adotados (2004, p. 306)”.

24 Nimuendaju refere-se á lendas na sua compilação mas na atualidade a expressão corrente que valoriza manifestações desta natureza é narrativas. Nota do autor.

Tendo, portanto, lançado mão dos respectivos enfoques sobre os Mura a partir da abordagem antropológica, gostaria de enfatizar que tais referências tratam- se de possibilidades que podem vir a ser desenvolvidas posteriormente por meio de outros estudos.

Assim como a antropologia, a abordagem a partir da literatura propriamente dita consiste também em contribuições ao conhecimento sobre a etnia Mura e, deste modo, é que se justifica o esforço empreendido.